ÁGUA PRETA

 

Era garoto. Sonhava com um rio que corria atrás do meu quarto. Mas da janela se viam apenas sobrados. Aquele rio entrou na minha imaginação pelas histórias que eu ouvia dos antigos. Eram velhos com diversos sotaques, alguns estrangeiros, todos saudosos. Eu gostava de ouvir. Não apenas as histórias. Às vezes ouvia os homens. Percebia a alegria deles. Contentava-me com a alegria deles e escutava. Apenas ouvia. Às vezes prestando mais atenção nos rostos – nos músculos da face, nas dentaduras, nas rugas – do que nas histórias contadas. Olhar nos olhos motivava os homens a falar. Eles sequer faziam perguntas para certificar que eu estava atento, apenas contavam. Alegravam-se com a companhia de um menino interessado no que eles diziam. Como eu não tinha nada para contar, apenas ouvia e, eventualmente, perguntava. Principalmente quando as histórias eram repetidas. Perguntava para identificar variações ou, como diria o poeta Manoel de Barros: invenções. Mas não questionava nada, só ouvia e prestava atenção nas curvas das histórias: que é quando se avistam as invenções.

 

Como disse, o rio entrou na minha imaginação a partir das histórias que eu ouvia dos antigos. Imaginava o rio com pedras e água corrente, com margens largas em que se podia brincar. As crianças que brincavam ali eram os velhos contadores de histórias. Eu me esforçava para fazer o tempo correr para trás e imaginá-los garotos. Na minha fantasia havia peixes, pássaros e outros animais no rio e perto dele. Isso eu imaginava porque alguns diziam ter caçado na região. Não me lembro dos antigos chamando o rio pelo nome, o que provavelmente tem relação com a canalização, o enterro e o esquecimento das águas. Como ninguém chamava o rio pelo nome, tudo era meio onírico. Mas, pensando bem, os indícios da presença do rio estavam lá, mas só que percebi tempos depois. Havia as enchentes que colocavam carros para boiar. Para se referir a uma rua que passava sobre o rio os antigos diziam “a pontinha”, “perto da pontinha”, “lá na pontinha” ... Como já estava tudo concretado e coberto, eu não associava uma coisa com a outra. Hoje penso como devia ser interessante a “pontinha”. Espiar as águas passando embaixo da “pontinha”... Namorar na “pontinha”... “Contemplar estrelas em cima da “pontinha”...

 

Tempos depois eu era homem feito e houve uma grande seca. Foi preciso escavar e buscar água no subsolo (“volume morto”) do sistema Cantareira. Matar a sede com água do “volume morto” era estranho. Alguns diziam sentir gosto de barro. Eu, que não tenho paladar aguçado, não me incomodava, inclusive porque o barro me atrai. O rádio e a televisão atualizavam diariamente a capacidade dos rios e represas, falavam também sobre a previsão para as chuvas. Ficamos sabendo que a maior parte da água consumida na cidade de São Paulo vem do sul de Minas Gerais. Para se ter água por aqui é preciso chover por lá. Ficamos sabendo, também, que o maior sistema de captação e tratamento de água da grande São Paulo é o Cantareira. Cantareira é uma palavra tupi que tem a ver com cântaros e armazenamento, além de nomear a serra verde que emoldura do concreto de São Paulo. No tempo da grande seca os rios viraram assunto popular. Havia o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí que tinham sido transformados em canais de esgoto a céu aberto, mas e os outros? E aqueles fluxos de água que desaguavam nos grandes rios de São Paulo? Que formam o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí? Passando nas autopistas que margeiam os grandes rios de São Paulo se viam as desembocaduras de pequenos cursos de água, alguns tinham até nome gravado no concreto. Não podiam ser apenas canais de esgoto.

 

Foi no tempo da grande seca que muita gente descobriu que os canais que deságuam nos grandes rios de São Paulo são, na verdade, cursos de água que foram enterrados e transformados em tubulações de esgoto. Há centenas de córregos e pequenos rios por baixo da cidade e, se é assim, por que faltava água nas torneiras? Foi quando desconfiei que sim, havia um rio atrás do meu quarto. Não fica exatamente embaixo da janela, mas, se não houvesse tantas construções, seria visível do meu quarto. Comecei a busca por aquele rio, em verdade um córrego, o Água Preta. Consultei os mais velhos, poucos do meu tempo de garoto estavam vivos, mas, mesmo assim, colhi informações importantes. Descobri mais ou menos onde nasciam e por onde corriam as águas pretas. Daí por diante bastava caminhar e imaginar. Repetidas vezes percorri o caminho das águas pretas, do fim para o começo, do começo para fim, trechos intermediários: sempre imaginando como era o local nos primórdios do bairro e da cidade.

 

Não fui o único a buscar a água preta. Outros – mais organizados e mais práticos – fizeram o que eu gostaria de ter feito: abriram as nascentes do córrego. Construíram pequenos lagos em praças, colocaram peixes, numa viela instalaram uma torneira que serve principalmente para quem mora nas ruas. Hoje é possível tocar a água preta. A água faltava nas torneiras das casas, mas corria nas nascentes libertadas. Quem abriu as nascentes do córrego da Água Preta? Teriam sido garotos que cresceram ouvindo histórias dos antigos, como eu? Garotos que tinham o rio atrás do quarto?

 

Com o tempo, algumas informações e caminhadas – há coisas que só conhece quem anda a pé – fui percebendo resquícios dos rios canalizados de São Paulo. Escadões, vielas e canteiros no centro de avenidas costumam esconder rios e nascentes. Quem caminha por esses locais se depara com umidade no concreto, mesmo em dias secos: é um indício da presença das águas. Aí basta parar, contemplar e imaginar a passagem dos rios e córregos. No caso do Água Preta, além da umidade perene, perto das nascentes; é possível observar a passagem das águas em dois pontos em que elas correm por baixo de grades, para que saiam sem causar maiores estragos nos dias de chuva. Às vezes eu vou até aquelas grades e fico observando a passagem das águas. Deve ser uma cena estranha. Os antigos observavam as águas pretas de cima da “pontinha”. Eu observo as águas pretas de cima de grades. “O que ele está procurando no esgoto” – deve pensar quem presencia a cena.

 

Às vezes brinco dizendo que, se um dia for a uma sessão de psicanálise, quando me pedirem para contar por que estou ali, vou explicar que nasci próximo a um córrego canalizado, que não cheguei a conhecer, mas percorre minha imaginação desde pequeno, córrego que em dois pontos pode ser observado debaixo de grades. Sinto que tenho alguma coisa a ver com o Água Preta. Também fui canalizado, também sou subterrâneo, também sou ignorado, também percorro da Vila Anglo e, sobretudo, queria transbordar. É porque me sinto um pouco como aquele rio que passei a ter outra relação com os transbordamentos dele, que é quando a água preta se revolta e retoma territórios. Não digo que me alegro com as enchentes, mas confesso que mais de uma vez saí caminhando na chuva para ver as águas tomando as ruas.

 

Não cheguei a fazer sessões de psicanálise para dizer que nasci perto de um rio canalizado, que só conheci depois de homem feito; mas quando acordo angustiado, antes de trabalhar eu caminho até as nascentes abertas do Água Preta. Tocar as águas geladas revigora. Só que observar o córrego nascendo livre e correndo para baixo do asfalto é triste. O percurso de quase cinco quilômetros por dentro da tubulação, junto com o esgoto, lembra a minha vida profissional. Como eu disse, me sinto meio canalizado. Daí a alegria com os transbordamentos do Água Preta.

 

Não cheguei a fazer sessões de psicanálise, mas quando fizer vou comentar que os grandes escritores têm suas cidades, mas também seus rios. Penso no Paraná e em Domingos Pellegrini [1]. Penso no Guaíba e em Moacy Scliar [2]. Eu que sou um escritor canalizado, não tenho um rio para chamar de meu, apesar de viver entre o Pinheiros e o Tietê, mas me sinto como o Água Preta. O córrego é um irmão para mim.

 

Depois que descobri nascentes e trilhas do Água Preta, conheci o seu córrego irmão, o Água Branca, que desce por baixo da avenida Sumaré. Curiosidade: as águas brancas correm no bairro nobre, as águas pretas correm no bairro em que moravam os operários. Água Preta e Água Branca foram canalizados e deságuam no Tietê, depois de passarem perto do estádio do Palmeiras. É exatamente naquela região que as águas se revoltam, transbordam e retomam territórios. Também naquela região fica o Sesc Pompéia. Há quem diga que o riacho preto que decorra um dos saguões do Sesc Pompéia é uma referência ao Água Preta – essa eu já não sei dizer se li em algum lugar, se ouvi dos antigos, ou se inventei, mas não importa.

 

É também perto do Sesc Pompéia que fica um dos pontos em que é possível ver as águas pretas correndo debaixo de grades. Ao lado há uma placa em que se lê: “Atenção sr. Motorista, em caso de chuva retire seu veículo. Perigo de enchente.” Ali as águas às vezes escapam das grades e carregam tudo. Ali costumo observar a passagem do córrego, como se fosse uma “pontinha”.

 

Foi num dia qualquer, caminhei e parei sobre as grades que cobrem as águas pretas perto do Sesc Pompéia, a minha “pontinha”. Fiquei observando. Mas naquele dia a minha presença atraiu um menino, que se aproximou e perguntou o que eu estava fazendo. Foi a primeira vez que me abordaram, apesar de ser comum eu parar ali para ver as águas pretas. Disse que estava observando um rio. Ele ficou intrigado e desconfiou. “Um rio?” Contei a história do Água Preta. Onde nascia. Por onde passava. As vielas e os escadões que escondiam nascentes. A canalização. Chamei o córrego pelo nome. Mostrei a placa que prevenia sobre enchentes. Se aquele local alagava era porque havia um rio. Ele não tinha visto alagamentos por ali? Sim, tinha visto. Morava na região e sabia que devia evitar aquele local em dias de chuva. É a “revolta das águas” – comentei. Isso de dizer a “revolta das águas” cativou de vez o menino, que retrucou com uma pergunta. “Mas quem fez isso com o rio?” Os idiotas que administram a cidade e fazem qualquer coisa para agradar quem tem dinheiro, mesmo ferrando todos os outros – respondi. “Como assim?” – perguntou o menino. Expliquei que córregos e rios de São Paulo foram canalizados e enterrados para abrir espaço para construções, bastava ver as marginais do Tietê e do Pinheiros. Colocaram prédios e avenidas nas margens dos rios. “Não viu o que fizeram nas marginais?” – questionei. Não era exatamente o caso do Água Preta, mas servia como exemplo. Foi quando ele me perguntou mais ou menos o que eu devo ter perguntado quando era garoto: “Você brincou nesse rio?” Respirei fundo. Lembrei do poeta Manoel de Barros. Não podia dizer a verdade. Não seria uma mentira, seria uma invenção. Por que não? Sim, tinha brincado nas margens do Água Preta. A gente empinava pipa ali. Eu, o Pagu, o Gabiru e o Gigio. No improviso, coloquei meus companheiros de infância na história inventada. Gostei. Segui inventando. A gente jogava bola e tomava banho no rio (Dava para se banhar no Água Preta? Na história inventada, por que não?). A gente pulava de cima da “pontinha”. Ele gostou. Deve ter sentido certa inveja. Mas aí veio a pergunta dura e inesperada: “Mas então por que você deixou fazer o que fizeram com o rio? Como fazemos para o rio voltar a ser o que era?” Respirei fundo. Cocei a cabeça. Coloquei mais uma curva na história inventada. “É que eu estava morando no exterior quando canalizaram o rio (eu que nunca fui para o exterior nem morei fora do bairro), ou não teriam feito, não teria deixado.” Ele respondeu com mais uma pergunta difícil: “Como fazer para o rio voltar a ser o que era?” Minha resposta: “Bem, teríamos que reconstruir a cidade e a vida. Não é fácil, mas é possível e necessário. Tudo começa por jamais esquecer que aqui corre um córrego chamado Água Preta.” Ele devia contar para os amigos. Precisava imaginar como era antes da canalização e como deveria ser depois. Arrematei falando sobre as nascentes libertadas. Era só ir na travessa Roque Adóglio, ou nas praças Homero Silva e Diogo Amaral (também conhecida como praça dos Cabritos), que daria para ver e tocar as águas pretas. “Não é longe, né? Podemos ir agora?” – perguntou. “Hoje não” – respondi satisfeito por perceber que havia cativado o menino. Outro dia sim. Primeiro pede para os seus pais.

 

Quando lembro do papo com o menino sobre o Água Preta, penso que o poeta Manoel de Barros era bom nos versos e nas contas: realmente só dez por cento é mentira, o resto é invenção. Que triste seria a vida se não fosse assim. Que triste será a vida quando não houver meninos dispostos a ouvir e velhos dispostos a inventar. Quando vejo pessoas atoladas em telefones celulares, penso que em breve não haverá espaço para muita coisa: nem histórias, nem invenções. Mas aí já é outro conto. Rever meus companheiros de infância na beira do Água Preta – na minha história inventada – foi mágico. Eles se alegrariam com a minha invenção? Continuariam a história? Onde estão meus companheiros de infância? Também foi mágico me ver refletido no menino que perguntava. Compartilhamos a mesma curiosidade e a mesma indignação. Nesse ponto envelhecer é uma vantagem, se não perdemos a curiosidade e a indignação. Sobretudo, foi mágico rever os antigos em mim. Sou um velho – curioso e indignado – que inventa histórias, como os que conheci. E eu pensava que nunca teria nada para contar. O tempo passa e a gente acumula histórias. O resto é invenção.

 

Notas

[1] Domingos Pellegrini. A sereia do rio Paraná. In: Maria José Silveira (org). Entre rios. São Paulo: FTD, 2014.

[2] Moacyr Scliar. Os piratas do Guaíba. In: Maria José Silveira (org). Entre rios. São Paulo: FTD, 2014. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

SÃO PAULO: A CAPITAL DO PIXO

 

Algumas perguntas e uma definição provisória

 

Primeiramente, um esclarecimento: pixo vai com x porque lembra lixo, e o ato de pixar não respeita as leis, muito menos as ortográficas.

 

São Paulo é outra coisa, não é exatamente amor, é identificação absoluta – cantou Itamar Assunção1. Mas o que é São Paulo? Identificação absoluta? Será?

 

Ninguém anda um quarteirão em São Paulo sem avistar muros, portões, pontos de ônibus e outros logradouros logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão. São os pixos. Já disseram que em São Paulo há edifícios que parecem cadernos de caligrafia gigantes. Dizem até que há quem visite a cidade exclusivamente para ver prédios pixados. Os pixos são uma espécie de anticartão do postal de São Paulo2, que também expõe frases políticas e até versos em suas fachadas, mas em menor quantidade.

 

As pixações não são exclusividade paulistana. Muito pelo contrário. Mas, parece-me que, quanto maior a cidade, mais pixos. Não é comum observar símbolos e palavras praticamente indecifráveis nos muros de cidadezinhas do interior. Talvez o fenômeno tenha a ver com a solidão aglomerada3 das megalópoles. Se for isso, é possível que minha impressão esteja correta e a maior cidade do hemisfério sul – São Paulo – realmente seja a capital do pixo, que é a estética da barbárie.

 

Se as pixações estão em todos os cantos, talvez tenham algo a dizer sobre a cidade. O que dizem os pixos? 

 

Hipótese 1

 

Havia centenas de nascentes e cursos de água em São Paulo. Com o crescimento desordenado, nascentes foram fechadas e cursos de água viraram escoadouros de esgoto canalizados debaixo do asfalto. Várzeas e lagoas foram aterradas pela especulação imobiliária. Para esconder vergonhas e aumentar lucros, foram construídos edifícios sobre várzeas e lagoas aterradas.

 

Nas últimas décadas do século XX, quando a cidade havia escondido suas vergonhas, os cidadãos desenvolveram o estranho hábito de logomarcar os muros com símbolos e palavras de difícil compreensão. Quanto mais punição, pintura e limpeza, mais registros praticamente indecifráveis. São as vergonhas da cidade reexpostas.

 

Hipótese 2

 

Gilles Lipovetsky enxerga um movimento de sedução superestetizada na arquitetura contemporânea, que empenha-se em surpreender, encantar e tocar as sensações visuais e táteis do público: a utopia foi suplantada pelo fetichismo da personificação da construção, o culto dos objetos singulares, a sedução das formas fluidas e as curvas livres, em sintonia com a cultura hedonista do consumismo triunfante4. O filósofo define o fenômeno como a arquitetura do espetáculo.

 

O pixo é um rechaço contra a sedução superestetizada da sociedade do espetáculo, incluindo a arquitetura. É um grito dos que não se sentem contemplados pelo capital, porque não têm dinheiro para consumir e/ou porque rechaçam a sociedade de consumo, ainda que não saibam como substituí-la.  

 

Existe amor por SP

 

Um amigo me contou que, tendo que trabalhar na Amazônia, começou a sentir saudade de São Paulo. Para matar a saudade, sintonizava programas policiais, que odiava, mas que às vezes mostravam as marginais, as ruas e as avenidas paulistanas, de forma que podia rever a cidade.

 

O exemplo do meu amigo mostra que existe amor por São Paulo. Mas é um amor estranho que se manifesta pelo avesso. São Paulo agride seus habitantes, que agridem a cidade. Como nos pixos?

 

Seja como for, uma coisa certa, o amor por São Paulo não tem nada a ver com o ufanismo bocó a la nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores5. É exatamente o contrário. Só não sei se chega a ser identificação absoluta, como cantou Itamar Assunção.

 

Algumas imagens e uma possibilidade

 

Gosto de andar por São Paulo. Com alguma atenção, é possível observar os caminhos percorridos pelos cursos de água que correm por baixo de escadões, vielas e canteiros. Todos canalizados e pixados. Como devia ser bonita a cidade antes do concreto e das canalizações, com centenas de cursos de água que corriam para interior...

 

Como é desagradável a cidade atual, com milhares de edifícios censurando o horizonte6, muitos logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão, o que indica, pelo menos, que alguém veio de longe, provavelmente da periferia, e se arriscou para esfregar na cara da sociedade que não concorda com as coisas como são e estão.

 

Há no pixo um quê de esporte radical, mas com uma diferença importante, a descarga de adrenalina não tem a ver apenas com a superação de limites físicos, é também um tapa na cara do Estado, das leis, da propriedade privada, da polícia, dos “cidadãos de bem”. Não é pouco. Dias Gomes afirmou que quem não veio ao mundo para incomodar não deveria ter vindo. Se é assim, o pixo está ontologicamente justificado.

 

Vejo o pixo como o vapor que sai pela válvula da panela de pressão. Se o pixo é o vapor, São Paulo é a panela de pressão, que pode explodir a qualquer momento, como em junho de 2013.

 Notas

[1] Versos da canção Persigo São Paulo.

[2] Ver os documentários Pixo, Pixadores em ação, Um grito em meio aosilêncio: pixo.

 [3] “Aglomerada solidão” é um verso da canção São, São Paulo, de Tom Zé.

[4] Lipovetsky, G., Da leveza. Barueri: Amaralys, 2016.

[5] Versos do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.

[6] Prédios:censuradores de horizontes. Sacada da camarada Danimar.


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

O LEITOR CLANDESTINO

 

Sempre gostei de bibliotecas. Queria dominar todos os livros das bibliotecas. Aos poucos fui percebendo se tratar de um sonho impossível: porque há muito livros nas bibliotecas e porque há muitas bibliotecas no mundo (mesmo que dominasse uma, haveria outras tantas). Conheço apenas alguns autores, a posição de uns poucos livros nas prateleiras (porque costumo flertar com as obras antes de iniciar a leitura) e só. Nem pequenos nichos do conhecimento posso dizer que domino ou que dominarei. É que na leitura sou anarquista. Sou leitor e não pesquisador. Uma capa atrai. Um título intrigante idem. Um livro puxa o outro: sem governo, sem continuidade e quase sem método.

 

O ensaísta André Comte-Sponville [1] registrou que o estilo é tônico. Ler uma frase limpa, sólida e bem construída revigora como o ar puro. Concordo. Mas não é apenas o estilo que reconforta, às vezes é a própria leitura: forma e conteúdo, ter o livro nas mãos, folhear, grifar, anotar. O poeta Carlos Drummond de Andrade [2] contou que recebeu uma carta de um homem que tinha pensamentos suicidas, mas mudou de ideia depois de ler o poema José. Os versos expressavam exatamente o que o homem sentia, mas não conseguia pôr para fora. Quando descobriu que aqueles sentimentos estavam registrados no poema José, percebeu que não estava sozinho no mundo. Sentia o mesmo que o poeta. Abriu mão do suicídio. É nesse sentido que a leitura é tônica.  

 

Com o tempo passei a me reconhecer como um leitor: um leitor que às vezes escreve. A escrita é, para mim, uma forma de compartilhar o que li. Daí as inescapáveis citações, que devem aborrecer os leitores. Há textos tônicos sobre a leitura. Ricardo Piglia [3]. Alberto Mangel [4] [5] [6]. Um dos ensaios de Piglia discute Che Guevara como leitor, a sacada final é daquelas que só os grandes romancistas são capazes de formular. Na lousa da escolinha boliviana em que foi aprisionado antes de ser assassinado, Guevara leu uma frase e indicou uma correção para a professora local, Julia Cortés, que lhe havia entregado um prato de comida (ela foi a única que se solidarizou com o guerrilheiro). Falta o acento em “Yo se leer” – disse o Che. O revolucionário que havia sido capturado com livros, porque nunca se afastou da leitura, nem quando cercado por tropas inimigas, encerrava sua passagem pelo mundo com um digno e preciso “eu sei ler”. Naquele segundo mágico, o leitor reencontrou o guerrilheiro. Manguel registrou notas para a definição do leitor ideal, compartilho algumas: “Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que, se não tivesse lido, o mundo seria mais pobre” [...] “O leitor ideal julga o livro pela capa” [...] “Quando lê um livro de séculos atrás, o leitor ideal se sente imortal” [...] “O leitor ideal não tem uma nacionalidade precisa.” [...] “O leitor ideal não se preocupa com anacronismos, a verdade documentada, a exatidão histórica, a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.” [...] “Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.” [...] “Pinochet, que proibiu D. Quixote por pensar que incitava a desobediência civil, foi o leitor ideal desse livro.”

 

As notas para a definição do leitor ideal, de Alberto Manguel, me fizeram pensar no leitor real em um país miserável em muitos sentidos, como o Brasil. Por aqui as pessoas consideram a leitura inútil e entediante, por isso costumam puxar conversa quando encontram alguém lendo. É como se fizessem um favor e uma caridade. Por aqui – se não se vive da exploração do trabalho alheio – a leitura é um ato de resistência, que se faz na clandestinidade, contra quase tudo e quase todos. É neste sentido que, partindo de Manguel, registro algumas notas sobre o leitor clandestino, que sou um pouco eu, mas não só (os leitores do Passa Palavra certamente podem ampliar e completar essas notas):

 

- Para o leitor clandestino, um dia sem leitura é um dia irremediavelmente perdido.

 

- O leitor clandestino frequenta pontos de troca de livros, principalmente os espaços que ficam em vias públicas e são discretos.

 

- O leitor clandestino prefere livros usados e com anotações.

 

- O leitor clandestino aprende a ignorar a poluição sonora para ler no transporte público.

 

- Quando está no transporte público e consegue viajar sentado, o leitor clandestino prioriza os livros maiores.

 

- Quando está no transporte público viajando em pé (maior parte do tempo), o leitor clandestino prioriza edições de bolso.

 

- O leitor clandestino nunca é visto sem mochila, porque sempre carrega livros.

 

- O leitor clandestino se alegra quando vê pessoas lendo, mas se consegue espiar as capas, costuma se frustrar por serem livros de autoajuda ou empreendedorismo.

 

- O leitor clandestino julga as pessoas pelos livros que leem e também pela falta de leituras.

 

- O leitor clandestino acha as leitoras atraentíssimas. Ele sonha em conhecer uma leitora de romances no transporte público para trocar impressões literárias e o que mais for possível.

 

- O leitor clandestino já viajou com leitoras de romances no transporte público, mas não percebeu a presença delas porque estava com a cara enfiada em um livro.

 

- O leitor clandestino é apaixonado por Emma Bovary e Ana Kareninna: em todos os sentidos.

 

- Para ler, o leitor clandestino acorda mais cedo que familiares e amigos.

 

- O leitor clandestino aluga filmes e paga canais fechados para a família se entreter enquanto ele lê.

 

- O leitor clandestino não é absolutamente contra o casamento e a família, mas teme e evita uma coisa e outra porque precisa de tempo livre.

 

- O leitor clandestino lê livros eletrônicos no escritório como se fossem contratos e procurações, como se estivesse trabalhando.

 

- Porque é obrigado a ler clandestinamente no escritório, o leitor clandestino usa edições impressas e eletrônicas. Estas no escritório, aquelas no transporte público.

 

- O leitor clandestino lê no escritório da mesma maneira que um estudante cola na escola: com tranquilidade, sereno, como se não estivesse acontecendo nada anormal.

 

- O leitor clandestino não arrisca abrir um livro impresso no escritório, só quando cai a energia ou os sistemas operacionais.

 

- O grande pesadelo do leitor clandestino é o chefe lhe interromper a leitura clandestina no meio de um parágrafo. É quando ele tem vontade de pegar um livro de capa dura para bater no chefe.

 

- O leitor clandestino sabe que a palavra escritório tem a ver com escrita. Scriptorim era a oficina em que se produziam e reproduziam livros. Se é assim, ler no escritório é uma questão de coerência.

 

- O leitor clandestino está convencido de que Bartleby [7] era um grande leitor e não um simples escrevente.

 

- O leitor clandestino defende que o patrão de Bartleby interrompeu uma leitura clandestina do escrevente naquele escritório de Wall Street, seria essa a origem da fórmula “eu preferiria não”.

 

- O leitor clandestino sustenta que os filósofos não entenderam a fórmula de Bartleby porque nunca precisaram ler clandestinamente nem trabalhar, muito menos num escritório.

 

- O leitor clandestino suspeita que Bartleby disse “eu preferiria não” porque não podia dizer “me deixe ler em paz”.

 

- O leitor clandestino desconfia de escritores e poetas que comentam e explicam a própria obra. Apenas e tão somente os textos devem falar.

 

- Porque é obrigado a usar diversas edições e traduções, o leitor clandestino compara trechos e sabe valorizar o trabalho dos tradutores.

 

- Textos escritos de uma só vez, sem tópicos e divisões, dificultam a vida do leitor clandestino, que precisa se alternar entre edições impressas e eletrônicas.  

 

- O sonho do leitor clandestino é ter um cômodo silencioso e confortável para organizar uma biblioteca.

 

- O leitor clandestino é progressista. Às vezes até se aproxima de partidos e organizações socialistas. Mas ele aprecia mais as conversas literárias que ocorrem em bares, após as reuniões, do que as falas cronometradas sobre a conjuntura.

 

- As amizades do leitor clandestino giram em torno de livros.

 

- O leitor clandestino é discreto e pouco fala de si próprio. A única forma de conhecer minimamente um leitor clandestino é ler as anotações que ele faz a lápis nos livros que lê.

 

- Conta-se que um leitor clandestino quase apanhou no transporte público. Lia o Quixote e ria. Um passageiro se irritou e foi tomar satisfação. O leitor clandestino contou as aventuras do cavaleiro da Triste Figura. Riram e ficaram amigos.

 

- Conta-se que um leitor clandestino leu todos os volumes de ‘O Capital num escritório, numa edição eletrônica, como se o texto de Marx fosse o trabalho diário: apesar dos que dizem que O Capital não é um livro para trabalhadores.

 

Mas há quem dê marteladas nos leitores. Nietzsche [8] zomba dos “doutos” que nada mais fazem do que misturar livros, perdendo completamente a faculdade de pensar por conta própria. Se não se empanturram de livros, não pensam: “o douto emprega a sua força em dizer ‘sim’ ou ‘não’, em criticar o que já foi pensado por outros; quanto a ele, todavia, não pensa mais.” O filósofo define os doutos como decadentes. Chocava-lhe haver quem, de manhã – “quando o espírito reflui em leveza, ao despertar das energias” – se pusesse a ler: “Para mim, isto é um vício!” Nietzche encarava a leitura como uma “recreação”, um hábito que o afastava de si próprio: “Nas épocas em que eu trabalhava muito não se viam livros ao redor de mim: esquivar-me-ia bem de permitir a outrem de falar ou de pensar em minha presença. E ler, seria dizer precisamente isto...” Montaigne [9] não dá marteladas nos leitores, como Nietzsche, mas tampouco se empolga com eles, como eu. Para Montaigne a leitura é um consolo na velhice e na solidão, suaviza o peso do ócio enfadonho, livra de companhias que aborrecem, distrai de ideias inoportunas e até suaviza algumas dores. Pensando em Nietzche e Montaigne, registro mais três notas sobre o leitor clandestino:

 

- O leitor clandestino pode até ser um viciado em livros, mas não é um “douto” que lê para escrever artigos e bater metas acadêmicas. O leitor clandestino lê por paixão.

 

- O leitor clandestino lê para viver e não para matar o tempo. A grande luta do leitor clandestino é por tempo livre para a leitura.

 

- Leio, logo existo – diria o leitor clandestino, se fosse menos afeito ao silêncio; quiçá arrematasse com uma provocação –: quem lê para matar o tempo deveria considerar seriamente a possibilidade de se matar.

 

Enfim, se tive acesso às sacadas de Comte-Sponville, Drummond, Piglia e Manguel; se tive acesso às críticas de Nietzsche e Montaigne foi porque me dispus a ler na clandestinidade ou de manhã cedo, “quando o espírito reflui em leveza, ao despertar das energias”. Que outros falem em minha presença – inclusive os filósofos –, especialmente por escrito. Nietzsche provavelmente diria que meu leitor clandestino é um decadente viciado em livros, que lê muito e pensa pouco. Pode ser. Mas para pensar é preciso imaginar. Não há pensamento sem imaginação, assim como não há imaginação sem leitura. Por essas e outras que ler pode até ser um vício, mas não é apenas recreação e divertimento.    

 

Notas

[1] André Comte-Sponville. Do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

 

[2] A fala do poeta está em alguma das entrevistas disponíveis na net, mas não encontrei o link.

 

[3] Ricardo Piglia. Ernesto Guevara, rastros de leitura. In: Ricardo Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

[4] Alberto Manguel. Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

[5] Alberto Manguel. O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

 

[6] Alberto Manguel. Notas para uma definição do leitor ideal. In: Alberto Manguel. Notas para uma definição do leitor ideal. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020. p. 163 – 166.

 

[7] Herman Melville. Bartleby, o escrevente. Grua livros: São Paulo, 2014.

 

[8] Friedrich Nietzsche. Ecce homo. [S.l.] Edições de ouro. Coleção Universidade. [s.d]. p. 59 e 71.

 

[9] Michel de Montaigne. Sobre três relações. In: Michael de Montaigne. Os ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


Publicado originalmente no Passa Palavra


 

O KITSCH, A EXISTÊNCIA E O ROMANCE

 

Emma Bovary desperta paixões violentas, a favor e contra. Com essas palavras iniciei a coluna intitulada A grande adúltera. Ocorre que não apenas a personagem Gustave Flaubert, mas o próprio romance cobra posicionamentos. Não se lê Madame Bovary com indiferença. Em coluna intitulada Milan Kundera, registrei que uma das grandes sacadas do romancista tcheco foi explorar a dimensão existencial do kitsch [1]. Juntando uma coisa com a outra, é possível fazer uma leitura de algumas interpretações do romance de Flaubert usando a sacada de Kundera para destacar a potência da arte do romance.

 

As interpretações kitsch de Madame Bovary podem ser sintetizadas nas palavras do crítico literário Sainte-Beuve e da romancista George Sand [2]. Sainte-Beuve: “A crítica que faço a seu livro é que o bem está muito ausente”, o crítico questiona por que não há “um só personagem que tenha a natureza de consolar, de descansar o leitor com um bom espetáculo”? George Sand registrou que Flaubert escondia o “sentimento” que tinha pelos personagens e transmitia “desolação” aos leitores enquanto ela preferia “consolá-los”: “a arte não é só crítica e sátira”. Flaubert respondeu para Sand que nunca pretendeu fazer nem crítica nem sátira, apenas se esforçava para “adentrar a alma das coisas” [3].

 

Há nas palavras do crítico e da romancista uma dimensão moralizante, mas há, também, o kitsch. É que o kitsch se caracteriza exatamente por “consolar” e “descansar [...] com um bom espetáculo” [4]: “é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação” [5]. No reino do kitsch o bem deve estar ostensivamente presente. Se é assim, o kitsch é uma necessidade existencial dos consumidores de arte, não é apenas um rebaixamento estético.  Ou dito de outra forma, trata-se de um rebaixamento estético demandado pelos consumidores de arte. O fato é que: pelo desconsolo que provoca e pela ausência do bem, não há espaço para Madame Bovary no reino do kitsch.

 

Após publicar Madame Bovary e ser processado por ofensa à moral e aos bons costumes, Flaubert escreveu uma carta a um primo em que registrou: “Eu te confessarei, de resto, que tudo isso me é perfeitamente indiferente. A moral da Arte consiste em sua própria beleza, e eu estimo acima de tudo o estilo, e em seguida o Verdadeiro” [6]. Tivesse caído nas mãos do Ministério Público em tempo, a confissão de Flaubert certamente seria usada na peça de acusação. A “moral da Arte” teria levado o romancista e violar a moral e os bons costumes da sociedade francesa. Mas se o romance precisa “adentrar a alma das coisas”, os choques são inevitáveis, porque de acordo com a moral e os bons costumes há coisas que não devem ser investigadas nem muito menos publicadas.

 

Kundera notou que, para se sustentar, o kitsch exclui “toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério)” [7]. Kundera novamente: “É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para imagens-chave profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.” [8] Por tudo isso que um romance como Madame Bovary não cabe no reino do kitsch. O bem está ausente, o desconsolo é total e, pior ainda, há uma adúltera no primeiro plano. Curioso notar que, Flaubert foi inocentado da acusação por ofensa à moral e aos bons costumes, mas não porque “adentrar a alma das coisas” é fundamental para o romancista e não porque “a moral da Arte consiste em sua própria beleza”. Tese da promotoria: Madame Bovary é um livro imoral porque Emma não se arrepende. Tese da defesa: Madame Bovary é um livro moral porque o fim atroz da adúltera desautorizaria o adultério. Prevaleceu a segunda tese. Mas as duas condenam a arte do romance. Nem acusação nem defesa escapam do kitsch. A adúltera deve se arrepender e pagar pelo que fez. Ponto final.

 

Aqui surge uma questão interessante:  se o kitsch está em todos os cantos, é possível escapar dele? Recorro mais uma vez a Kundera. O romancista divide os homens em dois grupos: os que em alguma medida desconfiam e os que aderem à vida sem ressalvas. Os últimos se baseiam, conscientemente ou não, no ensinamento presente no primeiro capítulo do Gênese: o mundo é o que devia ser, as pessoas são boas e devem procriar. Se o mundo é o que devia ser, o bem é onipresente. Se as pessoas são boas e devem procriar, não há espaço para uma adúltera como Emma Bovary: que achava a própria filha feia e que arruinou a família. Quem adere à vida sem reservas firma o que Kundera definiu como “acordo categórico com o ser”, que é “a fonte do kitsch”. Mas é possível viver em desacordo categórico com o ser? A resposta é não: “Nenhum de nós é sobre-humano a ponto de poder escapar completamente ao Kitsch. Não importa o desprezo que nos inspire, o kitsch faz parte da condição humana.” [9] No romance A insustentável leveza do ser a pintora Sabina trava combate contra o kitsch, mas sem vitória definitiva. Quando assistia filmes sentimentais, os olhos dela se enchiam de lágrimas sempre que a filha ingrata se reconciliava com o pai abandonado. O kitsch da pintora tinha a ver com tudo que ela não teve: um lar sossegado, doce e harmonioso, com uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria.

 

Mas se não há como escapar totalmente do kitsch, é possível confrontá-lo. Kundera outra vez [10]: o verdadeiro adversário do kitsch é o homem que interroga, “a pergunta é como faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás.” Acrescento: outro adversário do kitsch, ainda que não seja imune a ele, é o romance. A arte do romance – entendida como um “adentrar a alma das coisas” – é uma manifestação de individualismo (não raro uma cusparada no rosto do senso comum), mas também de ceticismo (se o romancista recria o mundo é porque desconfia das coisas como estão e são) e ironia (o romancista leva a sério apenas a própria escrita). A arte do romance passa, sobretudo, por interrogar e recriar. Pode, exatamente por isso, confrontar o kitsch, que é a “mentira embelezante” mobilizada para descansar e consolar quem teme e prefere evitar “a alma das coisas”.

 

Notas

[1] Na sexta parte do livro A arte do romance, intitulada Sessenta e três palavras, Milan Kundera define o kitsch (os grifos são meus):

 

“Quando eu escrevia A insustentável leveza do ser, fiquei um pouco inquieto por ter feito da palavra kitsch uma das palavras-pilar do romance. Na verdade, ainda recentemente, essa palavra era quase desconhecida na França, ou então conhecida em um sentido muito empobrecido. Na versão francesa do célebre ensaio de Hermann Broch, a palavra ‘kitsch’ é traduzida por ‘arte de carregação’. Um contrassenso, pois Broch demonstra que o kitsch é coisa diferente de uma simples obra de mau gosto. Existe a atitude kitsch. O comportamento kitsch. A necessidade kitsch do homem-kitsch (Kitschmensch): é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação. Para Broch, o kitsch está historicamente ligado ao romantismo sentimental do século XIX. Visto que na Alemanha e na Europa Central do século XIX era muito mais romântico (e muito menos realista) que em outra parte, foi lá que a palavra kitsch nasceu, e que ainda é usada corretamente. Em Praga, vimos no kitsch o inimigo principal da arte. Não na França. Aqui, à arte verdadeira se opõe o divertimento. À grande arte, a arte simples, menor. Mas, quanto a mim, nunca me irritei com os romances policiais de Agatha Christie! Em compensação, Tchaikovski, Rachmaninoff, Horowitz no piano, os grandes filmes hollywoodianos, Kramer versus Kramer, Doutor Jivago (oh, pobre Pasternak!), é o que profunda e sinceramente detesto. E fico cada vez mais irritado pelo espírito do kitsch presente nas obras cuja forma se pretende modernista. (Acrescento: a aversão que Nietzsche experimentou pelas ‘palavras bonitas’ e pelos ‘casacos com ornamentos’ de Victor Hugo foi a repugnância pelo kitsch em seus prenúncios.) 

 

[2] Os trechos do crítico, da romancista e de Flaubert foram citados no ensaio de Milan Kundera intitulado Adentrar a alma das coisas, publicado no livro A cortina.

 

[3] Ensaio citado na nota anterior.

 

[4] Ensaio citado na nota 2.

 

[5] O trecho entre aspas está no texto citado na nota 1.

 

[6] A carta de Flaubert ao primo foi citada no livro A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary, de Mario Vargas Llosa

 

[7] O trecho está sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

 

[8] Idem nota 7.

 

[9] Os trechos entre aspas estão na sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

 

[10] Idem nota 7.


Publicado originalmente no Passa Palavra