AS MENSAGENS PERDIDAS

 

Livro puxa livro, um traz outro, e assim se faz, se não um romance, pelo menos uma coluna [1].  Estava lendo sobre os últimos anos de Belchior [2]. Os autores citam a fuga de Tolstói, em 1910. O que leva um ancião de 82 anos a fugir de casa? Fiquei interessado. Fui ler Tolstói – a fuga do paraíso [3]. A arte de desaparecer é um tema que me atrai. Levou-me, por exemplo, a um escritor interessante como Enrique Vila-Matas, que tratou do tema no romance Doutor Pasavento [4] e nos livros de contos Suicídios exemplares [5] e Exploradores do abismo [6]. A arte de desaparecer compôs o pano de fundo das colunas que falaram de Belchior [7] e Robert Walser [8].

 

Mas conforme avançava pelas muitas páginas de Tolstói – a fuga do paraíso não era exatamente o tema em si que me chamava a atenção. O que me espantava era a capacidade do autor para reconstituir minuciosamente fatos ocorridos há mais de cem anos. Como reproduzir em detalhes acontecimentos do passado distante? Pável Bassinski opera o milagre da reconstituição a partir de cartas e diários de Tolstói, principalmente, mas não só. Utiliza, também, cartas e diários de familiares e amigos. Reconstrói fatos e personalidades de familiares, amigos e pessoas que conviveram com Tolstói. O que me levou a outro tema interessante, a luta da memória contra o esquecimento.  E daí retornei a um romance genial de Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento [9], que se passa na então Tchecoslováquia e é formado por sete partes, sendo duas intituladas As cartas perdidas.

 

Se Pável Bassinski está correto, foram desgastes familiares, especialmente com a esposa (Sófia Andrêievna), que levaram à fuga de Tolstói, aos 82 anos. Estavam em jogo os direitos autorais das obras do escritor e a posse dos diários dele. Mas por que pensei nas cartas perdidas? É que na parte final de Tolstói – a fuga do paraíso, Pável Bassinski reproduz uma carta de Sófia Andrêievna para o marido datada de outubro de 1895. Diz ela:

 

“Mas não posso deixar de lhe dizer (pela última vez, procurarei que seja a última) o que me faz sofrer tanto. Para que, em seus diários, cada vez que menciona meu nome, você se refere a mim com tanta raiva? Para que você quer que todos os nossos descendentes, nossos netos injuriem meu nome, como o de uma mulher leviana e maldosa, a esposa que lhe fez infeliz? Pois quanto mais isso aumentar sua fama como mártir, mais isso vai me prejudicar.

 

[...]

 

Quando nós dois não estivermos mais vivos, essa leviandade será interpretada de qualquer jeito por qualquer um, e eles jogarão lama em sua esposa...” [10]

 

Na primeira parte do Livro do riso e do esquecimento, intitulada As cartas perdidas, Mirek proclama: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” [11] Ele tinha, com sua a vida, a mesma relação que os artistas têm com suas obras. Mirek se reservava o direito de retrabalhar sua própria história, como os romancistas retrabalham os romances. Mas havia um problema. As cartas de amor que escrevera, quando jovem, para uma mulher simpatizante do regime estalinista e, pior, feia. Sim, ele havia cometido o erro imperdoável de escrever cartas apaixonadas para uma mulher feia, um “bucho”, na definição dele [12]. Mirek supostamente conhecia o segredo da vida (antes que sejam ligadas as sirenes das patrulhas ideológicas do bom-mocismo, atenção para as aspas, são palavras do Mirek e não do Cenek): “As mulheres não procuram o homem bonito. As mulheres procuram o homem que teve mulheres bonitas. Portanto, é um erro fatal ter uma amante feia.” [13] Paradoxalmente e contrariando sua máxima grandiloquente, a luta de Mirek é contra a memória e pelo esquecimento. Ele quer recuperar e destruir as cartas de amor que havia escrito para a mulher feia e apoiadora do regime. Ele sentia que o fim se aproximava, que não podia mais esperar, que precisava se livrar de parte do passado. É hilária a luta paradoxal de Mirek contra a memória e pelo esquecimento.

 

Na quarta parte do Livro do riso e do esquecimento, também intitulada As cartas perdidas, um casal foge da Tchecoslováquia após a invasão russa. Vão para uma viagem de férias e não voltam. Mas, para não serem notados, levam poucos pertences. Deixam um embrulho com diários e cartas para não chamar a atenção da polícia. Porque ninguém leva diários e cartas para uma viagem à praia. Sabendo que o apartamento em que morava seria confiscado após a fuga, Tamina deixa o embrulho na casa da sogra. Tempos depois ela fica viúva e a imagem do marido começa a desaparecer da memória dela. Ela tentava reconstruir a lembrança do marido morto a partir da foto carimbada do passaporte. Mas fracassava. As lembranças escapavam. Tamina queria recuperar diários e cartas porque “o edifício vacilante das lembranças caía como uma tenda mal levantada” [14]. Ao mesmo tempo, ela se apavorava com a ideia de ter a intimidade violada por estranhos. Tamina sabia que suas cartas e diários eram destinados apenas a ela própria. Se fossem lidos por terceiros o elo íntimo seria rompido. Ela tenta convencer algum turista francês a passar em Praga para buscar o embrulho, mas não podia explicar exatamente o porquê. A luta de Tamina contra o esquecimento passa por turistas desinteressados e uma sogra hostil.

 

Milan Kundera cria variações geniais sobre alguns temas, como as cartas perdidas e a memória. Mirek quer arrancar e rasgar uma página indesejada do passado. Tamina quer recuperar cartas e diários para reconstruir as páginas borradas do passado. Luta da memória pelo esquecimento. Luta da memória contra o esquecimento. Uma e outra produzindo o riso. Mas há um ponto que une Mirek, Tamina e até Sófia Andrêievna: o pior dos mundos é ter escritos íntimos lidos por terceiros. Os três conhecem os riscos que se corre quando palavras são retiradas do tempo e do contexto. Aqui saltamos das cartas perdidas para as mensagens perdidas.

 

Se ter escritos íntimos acessados por terceiros é um pesadelo; Sófia Andrêievna, Mirek e Tamina viveram nos tempos da delicadeza perdida. O que são a Rússia do final do século XIX e a Tchecoslováquia dos anos 1960 perto do tempo presente? Penso nas toneladas de mensagens trocadas, atualmente, por meio de redes sociais controladas por monopólios privados. Pior, no tempo presente se flerta – se é que se pode chamar isso de flerte – por meio de aplicativos controlados por monopólios privados. Sófia Andrêievna teve dificuldade com o marido escritor. Mirek teve dificuldade com uma mulher feia. Tamina teve dificuldade com turistas desinteressados e uma sogra hostil. Como será lidar com monopólios privados?

 

Outro tema explorado com genialidade por Milan Kundera no Livro do riso e do esquecimento é a litost. O romancista esclarece se tratar de uma palavra tcheca intraduzível. Os dicionários traduzem litost por arrependimento. Mas não é exatamente a mesma coisa. Kundera registra que a primeira sílaba se pronuncia de maneira longa e acentuada, como o lamento de um cão abandonado. Litost é um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa miséria subitamente revelada para nós mesmos. Como quando fazemos coisas que jamais imaginaríamos que seríamos capazes de fazer. Exemplo: agredir uma pessoa por nos sentirmos diminuídos pelas qualidades e pelo talento dela. 

 

Tamina sabia que, na então Tchecoslováquia, a imortalidade só existia nos dossiês policiais. Fico pensando que, no século XXI, a imortalidade existirá, será controlada e comercializada por monopólios privados. Não poucos tentarão, sem sucesso, arrancar e destruir páginas do próprio passado. A imortalidade no século XXI será o espetáculo da nossa miséria súbita, constante e comercialmente revelada. Uma espécie de litost agravada. Imagino Mirek tentando apagar mensagens apaixonadas enviadas – pelo Tinder – para uma mulher feia. Além de fracassar, seria acusado de gaslighting e irresponsabilidade emocional. No mínimo.

 

Notas

[1] O trecho de Machado de Assis, que inclusive já apareceu na seção de máximas deste site é: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução.

[2] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021.

[3] Pável Bassinski. Tolstói – a fuga do paraíso. São Paulo: LeYa, 2013.

[4] Enrique Vila-Matas. Doutor Pasavento. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[5] Enrique Vila-Matas. Suicídios exemplares. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[6] Enrique Vila-Matas. Exploradores do abismo. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[7] A longa viagem de Belchior.

[8] A arte de desaparecer.

[9] Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[10] A carta de Sófia Andrêievna está reproduzida na página 369 do livro referenciado na nota 3.

[11] A máxima está na página 18 da edição referenciada na nota 9. 

[12] A palavra bucho está na página 21 da edição referenciada na nota 9.

[13] O trecho está na página 19 da edição referenciada na nota 9.

[14] O trecho está na página 105 da edição referenciada na nota 9.


Publicado originalmente no Passa Palavra

TRÊS PASSEIOS NO INFERNO

  

[...] Caminhava de pijama entre as estações de trabalho. Os aparelhos de ar-condicionado funcionavam com capacidade máxima, resfriando o ambiente. Tocava música estadunidense. Easy listening.  Era uma sala grande, sem divisórias, com luz artificial. Não enxergava nada além das estações de trabalho. Os homens vestiam terno e gravata. As mulheres usavam roupas sociais e cachecóis. Todos se alternavam entre os telefones e as telas dos computadores. Falavam alto. Procurou alguma estação de trabalho vazia. Não encontrou. Tinha tarefas urgentes por fazer. Não lembrava quais. Perderia o emprego. Ficaria sem salário. Não teria como pagar as contas. Seria processado. Seria despejado. Seria preso. Chamou as pessoas. Mas ninguém ouviu. Tocou no ombro de um homem. Teve a mão empurrada e afastada com força e agressividade. Quis se refugiar debaixo de uma estação de trabalho. Foi chutado pela funcionária que trabalhava sem parar. Tinha frio. Tinha família. Tinha medo. Estava perdido. Seria demitido. Ouviu passos firmes e ritmados de sapatos italianos. Era o chefe. Seria xingado. Seria humilhado. Então, puxou um homem da cadeira. Tentou arrancá-lo à força. Precisava trabalhar. Trocaram socos. Levou cabeçadas e cotoveladas. Desmaiou [...] Caminhava de cueca entre os consumidores. O chão era limpo, frio, brilhante. Inclinou-se para frente. Viu o próprio rosto refletido no piso. Estava descabelado e com olheiras, como se não dormisse há meses. Passou por famílias bem vestidas. Era um corredor sem janelas, com vitrines e luz artificial. Não enxergava nada além das lojas.  Namorados passavam de mãos dadas, alguns tinham 100 anos. Crianças passavam correndo. Mulheres passeavam com cães topetudos. Todos exibiam sorrisos branquíssimos. Havia câmeras a cada 2 metros. Havia alto-falantes anunciando promoções. Quis se refugiar na loja de tapetes. Mas estava de cueca. Foi enxotado. Não via o final do corredor. Não havia saídas laterais. Seguiu no sentido contrário das pessoas. Elas vinham. Ele ia. Elas avançavam. Ele voltava. Seria denunciado. Ouviu um chamado para os seguranças pelos alto-falantes. Teria pernas e braços algemados. Seria arrastado. Seria humilhado. Estava frágil. Estava exposto. Tremia. O coração batia 180 vezes por minuto. Com as mãos abria caminho entre as famílias, os namorados, as crianças e as mulheres que passeavam com cães topetudos. Corria. Fugia. Mas o corredor se estreitava cada vez mais. Gritou [...] Caminhava nu entre as camas simetricamente posicionadas. O ambiente era limpo, frio, brilhante. Os aparelhos de ar-condicionado funcionavam discretamente. Médicos e enfermeiros vestiam jalecos brancos. Faxineiros trabalhavam com roupas brancas. Lençóis brancos cobriam as camas brancas. Pacientes usavam camisolas brancas. Brancura do vazio. Havia aparelhos médicos, frascos com líquidos e televisores sobre todas as camas. Era uma sala imensa, com luz artificial. Não enxergava nada além das camas brancas. Gemidos e gritos se misturavam com os apitos dos monitores multiparamétricos e os sons dos televisores. Todos sintonizados num único canal. Transmitiam o mesmo culto religioso. Procurou uma cama vazia. Chamou as pessoas. Elevou a voz. Ninguém ouviu. Tocou no ombro de um médico. Foi ignorado. Tentou puxar um lençol para se cobrir. Não conseguiu. Tinha tosse. Tinha dores. Estava cansado. Estava morrendo. Estava nu. Queria deitar. Reuniu as últimas forças e correu até uma cama que tinha o televisor e os aparelhos desligados. Levantou o lençol branco. Encontrou um corpo frio. Empurrou. Socou com as duas mãos. Queria arrancar o morto da cama. Não foi possível. Como se o corpo estivesse amarrado. Fracassou. Embranqueceu [...]


Publicado originalmente no Passa Palavra


 

A LONGA VIAGEM DE BELCHIOR

 

Belchior (1946-2017) foi um compositor de Música Popular Brasileira (MPB). Nasceu em Sobral, no Ceará. O avô tocava sax e flauta. A mãe cantava na igreja. Tinha tios seresteiros. Ainda menino se apresentava como cantador repentista. Frequentou o Seminário dos Capuchinhos. Foi programador de rádio. Mudou-se para Fortaleza. Participou de festivais de música, se aproximou de outros artistas. Chegou a cursar quatro anos de medicina, mas abandou a universidade. Foi para o Rio de Janeiro e, depois, São Paulo. Viajou de carona num avião do Correio Aéreo Nacional, espécie de prenúncio do que viria depois na obra e na própria vida do artista. Ganhou o IV Festival Universitário da MPB com a canção Na hora do almoço. Criou um estilo próprio em que cabia sua voz peculiar. Teve canções gravadas por Elis Regina e deslanchou. Wilson Simonal, Lenny Andrade, Roberto Carlos, Vanusa, Fagner, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Ivan Lins, Zé Ramalho, João Bosco, Margareth Menezes, Ney Matogrosso e outros também gravaram canções de Belchior. Fez sucesso principalmente nos anos 1970, com os álbuns Alucinação (1976), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978), Era uma vez o homem e seu tempo (1979). Além de músico, foi poeta, pintor, desenhista e leitor de mão cheia. Estudou caligrafia. Dominava vários idiomas. Foi da poesia para a música. Fazia citações eruditas nas canções. Dizia ser um compositor brasileiro nascido no Nordeste que prezava mais suas raízes humanas – que eram amplas, estavam em todos os lugares e em movimento – que suas raízes regionais e folclóricas. 

 

Mais ou menos quando completou 60 anos, Belchior iniciou um movimento inusitado. Foi aos poucos cortando os laços que o prendiam à família, aos amigos, ao passado e à própria música. Separou-se e foi morar num flat com uma artista plástica. Viajaram e se hospedaram em hotéis saindo sem pagar. Moraram de favor em casas de fãs. Passaram um natal numa rádio abandonada. Ficaram por um tempo num mosteiro. Chegaram a morar com o Movimento dos Pequenos Agricultores e em uma comunidade alternativa. Belchior parou de fazer shows. Também parou de pagar pensões e outras despesas. Teve a conta bancária bloqueada e mandados de prisão decretados. Perdeu carros e outros bens. Passou uma noite debaixo de uma ponte. Sofreu com o sensacionalismo midiático. Foi caçado e forçado a dar entrevista para o principal canal de televisão brasileiro. Perambulou entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul. Morreu vitimado por um rompimento na aorta. Tinha 70 anos. A longa e última viagem de Belchior foi reconstituída e contada no livro Viver é melhor que sonhar, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti [1].   

 

O sumiço de Belchior intrigou muita gente. Há vários palpites explicativos. Desde que aspirava à santidade até que foi manipulado pela mulher que o acompanhou. Os autores de Viver é melhor que sonhar entrevistaram mais de 150 pessoas que foram próximas ou que estiveram com Belchior nos últimos anos do artista. Não conseguiram chegar a uma resposta sobre o sumiço. Mas deixaram uma pista interessante que resolvi seguir. A longa viagem do artista poderia ser uma possibilidade contida em algumas canções, como, por exemplo, Comentários a respeito de John.

 

Estradas, viagens e rupturas perpassam a música de Belchior. Um certo “meter o pé na estrada like a Rolling Stone”, como na canção Velha roupa colorida.  Talvez seja, inclusive, a principal linha de força na poética do bardo. Com um detalhe sugerido pelos acontecimentos posteriores: o que poderia parecer certo escapismo juvenil era, na verdade, um projeto, quase uma ética, como se a vida estivesse sempre em outro lugar. Não se tratava apenas da legítima necessidade de respirar num país bloqueado por uma ditadura empresarial-militar, era uma profunda necessidade existencial. Exemplificando com as canções do compositor. Mucuripe: “Vida, vento, vela, leva-me daqui”. Paralelas: “Dentro do carro, sobre o trevo a 100 por hora/ Oh, meu amor!/ Só tens agora os carinhos do motor”.  Comentário a respeito de John: “Saia do meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decida a minha vida”. Tudo outra vez: “Há muito, muito tempo que eu estou longe de casa” [...] “Sentado à beira do caminho pra pedir carona/ Tenho falado à mulher companheira/ Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil” [...] “E um cara que transava a noite no Danúbio Azul/ Me disse que faz sol na América do Sul/ E nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil” [...] “E eu vou viver as coisas novas que também são boas/ O amor, humor das praças cheias de pessoas”. Coração selvagem: “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/ Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente/ Sim, já é outra viagem/ E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver” [...] “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão/ O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver/ E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza/ E arriscar tudo de novo com paixão/ Andar caminho errado pela simples alegria de ser” [...] “Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”.

 

Dá para seguir a viagem pelos versos do bardo. Divina comédia humana: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”. Teria interrompido a carreira por não encontrar maneiras de dizer não? Belchior chegou a afirmar que associava a liberdade à possibilidade de dizer não [2]. Velha roupa colorida: “Você não sente nem vê/ Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. A rima implícita faz a palavra amigo, no segundo verso, sugerir comigo na sequência. Como se a mudança fosse acontecer com o poeta.  Brincando com a vida: “Vida, eu não aceito, não! A tua paz/ Porque meu coração é delinquente, juvenil/ Suicida, sensível demais” [...] “A vertigem, o abismo, me atrai/ É esta a minha brincadeira”. O que foi a longa viagem do bardo senão uma busca pelo abismo e uma brincadeira com a vida? Princesa do meu lugar: “Se me der vontade de ir embora/ Vida adentro, mundo a fora/ Meu amor, não vai chorar”. Espécie de alerta prévio do que viria tempos depois. O mesmo acontecendo na canção Passeio: “Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento/ Só têm o momento de fugir no disco voador”.

 

Se não for viagem minha, há uma coerência intrigante entre as canções de Belchior e o sumiço dele. A obra joga luz sobre a longa viagem do artista e o inverso é verdadeiro. Muito se falou contra a última mulher do compositor, que o teria isolado da família, dos amigos e da própria carreira. Pode ser. É uma possibilidade. Mas, pelas canções, percebe-se que o artista precisava de uma companheira para cair na estrada com ele, para ganhar “esse mundo de meu Deus”, como na canção Galos, noites e quintais. Ou, como em Coração selvagem, precisava de uma mulher que lhe compreendesse a solidão, o som, a fúria e a pressa de viver. Uma companheira capaz de deixar a certeza de lado e arriscar com paixão, andando caminho errado pela simples alegria de ser.

 

Os autores de Viver é melhor que sonhar estabelecem paralelos literários para pensar o sumiço de Belchior. Citam a fuga de Tolstói, aos 82 anos [3]. Como Hans Castorp, que foi ficando no sanatório por vontade própria, Belchior ia ficando nas casas de fãs e amigos que o abrigavam [4]. O desaparecimento teria sido tão inexplicável quanto o aparecimento do corvo no quarto, sempre a repetir “nunca mais” [5]. Eu, pelo meu lado, vi na longa viagem de Belchior um “preferiria não” à la Bartleby [6]. Repetidas vezes pessoas próximas tentaram convencer o bardo a tocar, arrecadar dinheiro e melhorar sua situação. Todas as vezes ele deu um jeito de recusar, como Bartleby, o funcionário que respondia “preferiria não” quando o chefe lhe dava ordens. Um fã e amigo que esteve com Belchior nos últimos anos do compositor afirmou: “Ele não queria mais voltar e não voltaria sob hipótese nenhuma. Ainda assim, alimentava-se desses sonhos.” [7]   

 

Mais um paralelo literário por minha conta e risco. Ricardo Piglia escreveu um livro saboroso intitulado O último leitor [8]. Vai de Kafka a Joyce passando por Emma Bovary, Ana Karenina e Ernesto Che Guevara. O último leitor, para Piglia, é justamente o revolucionário argentino: “Guevara é o último leitor porque já estamos diante do homem prático em estado puro, diante do homem de ação.” A conclusão do ensaio sobre Che Guevara é uma daquelas sacadas que só os grandes romancistas são capazes de formular [9]. Mas voltando. Enxerguei um paralelo entre Che e Belchior pela afirmação da identidade latino-americana e porque ambos foram grandes leitores que ficaram quase sem nada, mas nunca sem livros. Che carregava livros quando foi capturado na Bolívia. Belchior jamais se distanciou dos livros, passou os últimos anos lendo, trabalhou numa tradução popular para a Divina Comédia. Outra aproximação possível é pelas viagens. Diz Piglia sobre o jovem Ernesto Guevara, que ainda não era o Che: “Escrever e viajar, encontrar uma nova maneira de fazer literatura, um novo jeito de narrar a experiência.” O mesmo estava posto para Belchior. Como possibilidade nas canções. Como fato consumado e conquistado nos últimos anos de vida. Com a peculiaridade de que o compositor alterou a ordem natural das coisas. Muitos jovens latino-americanos, como Ernesto Guevara, caíram na estrada nos anos 1950, 1960 e 1970. Belchior fez o mesmo décadas depois, nos últimos anos de sua vida, já no século XXI.

 

Se estradas, viagens e rupturas estão nos versos de Belchior; se são uma das principais linhas de força das canções: o sumiço dos últimos anos foi um posfácio radical e coerente para uma obra que sobreviverá. Belchior não ficou em casa contando vil metal. Certamente a longa viagem confundiu fãs, preocupou amigos e magoou familiares. Mas era uma possibilidade contida na obra do compositor. O artista devia estar farto de cantar as mesmas canções para o mesmo público. Preferiu viver os versos na estrada, com outras pessoas, em uma longa viagem: para realizar possibilidades contidas na música, porque viver é melhor que cantar.

 

Notas

[1] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021. 

[2] A entrevista em que o artista associa a liberdade à possibilidade de dizer não está no documentário Belchior – Apenas um coração selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias.

[3] Tolstói abandonou a família no final de 1910. Fugiu de trem. Morreu de pneumonia poucos dias depois da partida.

[4] Referência ao romance A montanha mágica, de Thomas Mann.

[5] Referência ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe.

[6] Referência ao conto Bartleby, o escrevente, de Herman Melville.

[7] O depoimento está no livro citado na primeira nota.

[8] Ricardo Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[9] Trecho final do ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, de Ricardo Piglia. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

MULHERES E NÃO

 

Eduardo Galeano apreciava a grandeza das coisas pequenas. Dizia que teve pouca educação formal, teria se formado escutando histórias nos cafés de Montevidéu. Gostava de citar a poeta estadunidense Muriel Rukeyser, que dizia que o mundo é feito de histórias e não de átomos [1]. Era como se ao escritor coubesse descobrir e ouvir histórias para recontá-las. Quando leio os textos de Galeano tenho a sensação de estar diante de uma sabedoria, e não exatamente de uma literatura. Para ser capaz de falar, saber escutar. Para não ser mudo, começar por não ser surdo. A escrita de Galeano se aproxima de maneira interessante da oralidade, não exatamente pelas palavras e pela linguagem, mas pelo que é ouvido e, posteriormente, recontado. O título do último livro publicado por Eduardo Galeano é certeiro: O caçador de histórias.

 

1901. Espanha. Duas mulheres se encontram num curso para professoras e experimentam um amor urgente e proibido. Elisa Sánchez e Marcela Gracia. A mãe de uma descobriu e tentou separar a filha da outra. Mas tempos depois elas se reencontraram. Talvez por um veio anarquista, ou legítima vontade de cuspir na cara dos moralistas: decidiram casar na igreja. Elisa se transformou em Mario, casaram com direito à certidão. Há uma foto do casamento em que elas parecem rir por dentro. Tempos depois, descoberta a fraude, foram caçadas. Fugiram para Portugal, foram presas na cidade do Porto. Escaparam. Atravessaram o oceano Atlântico. Foram vistas pela última vez em Buenos Aires.

 

A poeta Alfonsina Storni também foi para Buenos Aires na primeira metade do século XX, levava sapatos velhos e um filho novo. Trabalhou como pôde. Quando sobravam, comia migalhas dos pães que o diabo amassava. Mas abriu brechas e atravessou as muralhas do mundo masculino. “Sua cara de camundongo travesso nunca falta nas fotos que reúnem os escritores argentinos mais ilustres” – a frase é de Eduardo Galeano. Os poemas de Alfonsina falam do rio caudaloso e do mar enorme: “Yo tengo el corazón como la espuma. Mar, yo soñaba ser como tu eres.” Ela se considerava uma flor perdida, nascida na beira de um rio caudaloso, entre plantas e ervas. Com 43 anos, descobriu um câncer. Com 46 anos, se matou. Escreveu o poema Voy a dormir, enviou ao jornal da cidade e se lançou no mar: “Pela branda areia que lambe o mar, sua pequena pegada não volta mais”os versos estão na canção Alfonsina y el mar, de Ariel Ramírez e Félix Luna, mas poderiam ser de Eduardo Galeano. Imagino as pegadas de Alfonsina nas areias de Mar Del Plata: os passos levam para o mar, desaparecem aos poucos.

 

1904. Espanha novamente. Nasce uma menina que não foi batizada, o que não era comum. Matilde Landa cresceu e se aproximou do movimento popular. Em 1936, ingressou no Partido Comunista. Lutou ao lado dos antifascistas na guerra civil espanhola: recebeu treinamento militar, organizou hospitais, apoiou a retirada de combatentes, auxiliou os refugiados. Em 1939, foi presa: organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Em 1940, foi presa novamente: novamente organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Mas a tenacidade e a coerência de Matilde Landa eram um exemplo a apagar. Em 1942, o regime – apoiado pela igreja – decidiu batizá-la à força. Ela – que não acreditava em Deus – devia se arrepender de todos os pecados. Matariam dois coelhos com uma única cajadada: fariam propaganda e golpeariam o moral dos que resistiam. No dia marcado para o batismo, ela se lançou do telhado. A cerimônia foi realizada mesmo assim. Batizaram o corpo caído. Matilde Landa resistiu até o último suspiro. Morreu resistindo. Resistiu morrendo.           

 

1945. Itália. Elio Vittorini, escritor e membro da resistência, publicou o romance Homens e não [2]. O tema é a luta antifascista, a ação ocorre durante a segunda guerra mundial. É um romance curto, mas não deve ser lido numa única tacada. Perto do fim é preciso parar, tomar um café e respirar fundo antes de continuar a leitura. Os personagens não têm nome, como são combatentes, se tratam por apelidos, siglas e números. O título sempre me intrigou, talvez porque remete à Itália que aprendi a amar por conta de homens que resistiram, mas, sobretudo, pela palavra não estampada na capa espessa. O nome do autor quase não aparece. Quem passa o olho rapidamente lê Homens não. No romance de Vittorini também as mulheres compõem a resistência e são identificadas por apelidos, siglas e números.

 

Há uma edição com saborosos textos de Eduardo Galeano [3] sobre mulheres que, de diversas maneiras, resistiram e disseram não. Entre elas Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni e Matilde Landa. Às vezes fico imaginando um livro que gostaria de encontrar e ler. Seria meio Galeano, meio Vittorini. A sabedoria do escritor uruguaio, o realismo do escritor italiano. Seria infinito, absurdo, preciso. Entrariam Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni, Matilde Landa... Chamaria Mulheres e não. Contaria as histórias individuais e coletivas de todas as mulheres que resistiram e disseram não, especialmente as anônimas.

 

Notas

[1] Essa e outras falas do escritor uruguaio podem ser conferidas no documentário Eduardo Galeano Vagamundo.

 

[2] Elio Vittorini. Homens e não. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

[3] Eduardo Galeano. Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2015. 


Publicado originalmente no Passa Palavra