ATÉ SEMPRE, ALDIR!


Tomo a liberdade de dispensar as aspas, saberão reconhecer os versos das canções. Meu coração tropical está coberto de neve. Também eu bebo um pouquinho para ter argumento. Mesmo sentindo frio em minha alma, apesar do açoite contínuo da noite, bêbado, mas sem traje de luto e sem chapéu coco: arrebentar as correntes que envolvem o amanhã!

Morreu o compositor genial: Aldir Blanc. Boêmio. Vascaíno. Psiquiatra. Apaixonado pelo samba e pelo jazz. Homem grande em todos os sentidos: turrão, pavio curto, humano. Quase não saía de casa, mesmo assim foi vitimado pela Covid-19. Tinha a barba e a voz grossas. Não gostava de sol, ia à praia para beber cerveja. Subia o morro, seguia os blocos carnavalescos e frequentava centros espíritas pela batucada. Ainda garoto, construiu uma bateria de lata. Estudou medicina, tornou-se psiquiatra. Disse que a psiquiatria não ajudou o letrista, foi o contrário.      

Certamente está entre os maiores compositores da MPB: com Noel Rosa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme. Como, no Brasil, as fronteiras entre a canção, a poesia e a literatura são tênues: a morte coloca Aldir no devido time, com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e até Machado de Assis. Sim, o letrista da Zona Norte tem um quê do bruxo do Cosme Velho: o realismo, os detalhes, o band-aid no calcanhar, o dodói de Tolstói, a faca do crime, o ciúme que mata, o humor que redime, o banho de ervas, o nome da outra no pano vermelho, o cigarro molhado de chuva, a goiabada cascão no sonho do boia-fria, a toalha molhada no chão, os fios de barba na pia, os falsos votos de feliz casamento, a curiosidade pelos rancores siameses e pela cruel indiferença.

Não há, na MPB, verso mais machadiano do que: eu aprendi que a alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado. Três anos vivendo juntos. Ele é Vasco doente, ela grita Mengo no segundo gol do Zico. Não há, na MPB, crônica mais machadiana do que A Nível de: Wanderley e Odilon, nomes que Aldir Blanc sacou na onomatopéia de João Bosco, são muito unidos, vão juntos ao Maracanã; Yolanda e Adelina, as esposas, são amigas e se fazem companhia; até que se estrutura um troca-troca; mulher com mulher, homem com homem; só que o casamento continua a mesma bosta.

Na morte estúpida do artista, vê-se um paralelo fúnebre com a obra do mesmo. São os becos sem saída do tempo presente. Em vez de reza uma praga de alguém. Não a bala com a bala, nem a faca com a faca, nem o corpo estendido no chão. Mas os doentes sem leito, a falta de respiradores, os corpos nos corredores, as covas coletivas, as subnotificações. É a morte do malandro, da enfermeira do Salgado Filho, do latin lover, das Marias, das Clarices e até dos compositores geniais. "E daí? Eu não sou coveiro" – diz o presidente. O Brazil não merece o Brasil. O Brazil está matando o Brasil. Do Brasil S.O.S ao Brasil – diria Aldir.  

Os heróis do bem – cidadãos de bem? – levando a paz na ponta dos aríetes. A conversão dos infiéis. A nudez sem véus diante da Santa Inquisição. As carreatas da morte. Os burgueses dentro dos carros, exigindo sacrifícios dos trabalhadores. Empilhados nos hospitais: pais-de-santo, paus-de-arara, passistas, flagelados, balconistas, palhaços, marcianos, canibais, pirados dançando, todos dormindo de olhos abertos.

Aldir Blanc teve dezenas de parceiros: Paulo César Pinheiro, Moacyr Luz, Guinga, João Bosco. Com este compôs O Bêbado e a Equilibrista, que era uma homenagem a Chaplin e, com Elis Regina, virou o hino da anistia. Existe figura mais chapliniana do que o exilado político? – perguntou o compositor.

Adeus, Aldir. O tempo adormece as paixões, você as liberta. Ele se rói com inveja. Você já pode nos esquecer, nós nunca lhe esqueceremos. 



(Texto publicado originalmente na Revista Aroeira)