A MORTE DO PADEIRO

I
ficou o nome
no boletim de ocorrência

ficou o número
na estatística

ficou a bala
no cadáver

ficou a palavra
sem teto

II
soldados no matagal
como quem caça
bicho do mato

o padeiro retorna
da casa da noiva
na moto financiada

o padeiro usa chinelo
bermuda e camiseta

os soldados usam fuzis
e capacetes pretos

III
os soldados trocam olhares
respiram fundo
apontam as armas

o aceno discreto é a senha
para abrir fogo
e ganhar a noite

o padeiro cai
a moto cambaleia
a tropa comemora

IV
reagiu à abordagem
na versão da polícia

suspeito de pertencer ao tráfico
na manchete da notícia

“bandido bom é bandido morto”
na página de comentários

V
se era inocente
se era virgem
não vem ao caso

quem mandou
sair de moto
na noite escura?

(pergunta que alivia
o sono difícil
dos soldados)

VI
em flats alugados
executivos cheiram cocaína
e trepam com prostitutas

nas praças de alimentação
a classe média saboreia
omeletes eletrônicos

na cena do crime
a tropa reprime
a família do morto

e arrasta o padeiro
para passar a noite
na geladeira

VII
vão cortar o cadáver
com serra elétrica
como se fosse
massa de pão

vão remexer as vísceras
com luva e alicate
como se houvesse
algum segredo

enquanto na padaria
ao mesmo tempo
vão anunciar:
“precisa-se de padeiro”


 DRUMMOND, NERUDA E A BATALHA DE STALINGRADO

 

Jorge Luis Borges [1] disse que às vezes percebia estar apenas citando, involuntariamente, em seus escritos, trechos que havia lido em outros autores. Por essa razão “melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos.”

 

Os escritores podem citar sem perceber, ou perceber posteriormente, como no exemplo de Borges. Mas há casos em que os poetas dialogam. É quando um cria construções tão fortes que o outro digere e reconstrói. Não é citação sem referenciamento. Não é plágio. É diálogo visceral. E é, provavelmente, o que aconteceu no exemplo que comento. Inicio pela referência de Drummond a Neruda em Considerações do poema:

 

[...] Uma pedra no meio do caminho

ou apenas um rastro, não importa.

Estes poetas são meus. De todo orgulho,

de toda a precisão se incorporam

ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius

sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.

Que Neruda me dê sua gravata

chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.

São todos meus irmãos, não são jornais

nem deslizar de lancha entre camélias:

é toda a minha vida que joguei. [...]

 

Se minha hipótese estiver correta, ao contrário do poema, foi Neruda que vestiu a gravata chamejante de Drummond. O que certamente não é problema para o poeta mineiro, que furtava elegias de Vinicius, bebia em Murilo, perdia-se em Apollinaire e por aí vai.

 

Em Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos, o crítico inglês John Gledson escreveu sobre o poeta de Itabira, chegou inclusive a compará-lo com Neruda: “Em muitos aspectos, é legítimo ver Drummond como o anti-Neruda, pois sua modéstia e ceticismo se opõem diretamente à autoconfiança e ao entusiasmo do poeta chileno.” Creio que é por aí. A comparação estabelecida mais à frente reforça e exemplifica o argumento de Gledson.

 

A Batalha de Stalingrado foi umas das mais importantes e sangrentas da Segunda Guerra Mundial. A vitória dos soviéticos sobre os nazistas tocou fundo em poetas e artistas. No calor do acontecimento, Neruda escreveu Canto a Stalingrado. Posteriormente, com a vitória dos soviéticos sobre os nazistas, o poeta chileno escreveu Novo canto de amor a Stalingrado. Em 1945, Drummond publicou A rosa do povo, com dois poemas (Telegrama de Moscou e Carta a Stalingrado) que, creio, Neruda leu e retomou anos depois, no Canto geral, publicado em 1950. Eis os versos e as imagens:

 

TELEGRAMA DE MOSCOU

(Drummond)

 

Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.

Casa e mais casa se cobrirá o chão.

Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.

Começaremos pela estação da estrada de ferro

e pela usina de energia elétrica.

Outros homens, em outras casas,

continuarão a mesma certeza.

Sobraram apenas algumas árvores

com cicatrizes, como soldados.

A neve baixou, cobrindo feridas.

O vento varreu a dura lembrança.

Mas o assombro, a fábula

gravam no ar o fantasma da antiga cidade

que penetrará o corpo da nova.

Aqui se chamava

e se chamará sempre Stalingrado.

- Stalingrado: o tempo responde. [2]

 

CARTA A STALINGRADO

(Drummond)

 

[...] Stalingrado, quantas esperanças!

Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!

Que felicidade brota das tuas casas!

De umas apenas resta a escada cheia de corpos;

de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.

Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,

todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,

mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,

ó minha louca Stalingrado! [...]

 

CANTO GERAL

(Neruda)

 

[...] Stalingrado, surge a tua voz de aço,

renasce andar por andar a esperança

como uma habitação coletiva,

e há um tremor de novo em marcha

ensinando,

cantando,

e construindo.

Do sangue surge Stalingrado

como uma orquestra de água, pedra e ferro

e o pão renasce nas padarias,

a primavera nas escolas,

sobe novos andaimes, novas árvores,

enquanto o velho e férreo Volga palpita.

Estes livros,

em frescas caixas de pinho e cedro,

estão reunidos sobre o túmulo

dos verdugos mortos:

estes teatros feitos nas ruínas

cobrem martírio e resistência:

livros claros como monumentos:

um livro sobre cada herói,

sobre cada milímetro de morte,

sobre cada pétala desta glória imutável [...] [3]

 

Drummond: “Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.” Neruda: “Stalingrado, surge a tua voz de aço, renasce andar por andar a esperança”. Drummond: “Sobraram apenas algumas árvores com cicatrizes, como soldados.” Neruda: “o pão renasce nas padarias, a primavera nas escolas, sobe novos andaimes, novas árvores”. Drummond: “Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede.” Neruda: “Estes livros, em frescas caixas de pinho e cedro, estão reunidos sobre o túmulo dos verdugos mortos: estes teatros feitos nas ruínas cobrem martírio e resistência: livros claros como monumentos: um livro sobre cada herói, sobre cada milímetro de morte, sobre cada pétala desta glória imutável”.

 

Versos recortados e colocados lado a lado sugerem que Neruda respondeu a Drummond, como se as imagens de um tivessem incomodado o outro. Como se a visão da cidade destruída, pintada por Drummond, fosse retomada e retocada por Neruda. Pedra por pedra, andar por andar. Árvores novas no lugar das árvores com cicatrizes. Nem livros nem teatros funcionando; livros posicionados sobre os heróis, teatros construídos sobre as ruínas [4].

 

O escritor argentino Ernesto Sabato [5] registrou que as almas dos pintores estão nas árvores que pintam. O mesmo vale para os poetas. Árvores com cicatrizes, para Drummond. Árvores renascidas, para Neruda. As almas dos poetas estão na Stalingrado que pintaram.

 

Neruda, no Canto geral, provavelmente dialogou com o A rosa do povo, de Drummond. Interessante pensar que a barreira dos idiomas não impediu a comunicação poética. Saber se foi um diálogo consciente ou não é mais difícil. Mas, se o poeta chileno retomou inconscientemente as imagens drummondianas, é ainda mais interessante, porque atesta o quanto os versos de Drummond marcaram Neruda, que foi além de citar trechos de terceiros em escritos próprios, como às vezes fazia Borges, involuntariamente. Neruda não citou, reconstruiu, alterou e colocou o próprio ser nos versos, como se as imagens de Drummond lhe fossem tão marcantes quando incômodas.  

 

Notas

 

[1] A confissão de Borges está em uma palestra intitulada O enigma da poesia, proferida em Harvard no final dos anos 1960. As saborosas palestras de Borges foram reunidas no livro Esse ofício do verso.

 

[2] Ao contrário do que diz o poema, a cidade de Stalingrado teve o nome alterado. O tempo respondeu.

 

[3] O trecho citado está na terceira parte do Canto IX. Utilizei a 10º edição do Canto geral, editada pela Bertrand Brasil. A tradução para o português é de Paulo Mendes Campos. O trecho original, em espanhol, é: “Stalingrado, surge tu voz de acero,/ renace piso a piso la esperanza/ como una casa colectiva,/ y hay un temblor de nuevo en marcha/ enseñando,/ cantando/ y construyendo./ Desde la sangre surge Stalingrado/ como una orquesta de agua, piedra y hierro/ y el pan renace en las panaderías,/ la primavera en las escuelas, el viento/ sube nuevos andamios, nuevos árboles,/ mientras el viejo y férreo Volga palpita./ Estos libros,/ en frescas cajas de pino y cedro,/ están reunidos sobre la tumba/ de los verdugos muertos,/ estos teatros hechos en las ruínas/ cubren martirio y resistencia:/ libros claros como monumentos:/ un libro sobre cada héroe,/ sobre cada milímetro de muerte,/ sobre cada pétalo de esta gloria inmutable.”

 

[4] Há outro possível diálogo entre os poetas que não aparece na tradução para o português do Canto geral (na edição que utilizei). Drummond: “O vento varreu a dura lembrança.” Neruda: “el viento sube nuevos andamios”.

 

[5] Sabato, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 


Publicado originalmente no Passa Palavra