AINDA AQUELE JUNHO

 

Retomo o tema da última coluna, daí o título. Junho de 2013 repensado a partir de alguns dados.

 

Segundo o Datafolha, em 2003, três meses após o início do governo Lula, o desemprego era o principal problema do país para 31% dos brasileiros, depois vinha a fome/miséria, para 22%, e a violência/segurança, para 18%. De acordo com o mesmo instituto de pesquisas, dez anos e três meses depois, em junho de 2013, já no governo Dilma, o desemprego era o principal problema do país para 4% dos brasileiros, enquanto 2% mencionaram a fome/miséria e 10% citaram a violência/segurança. Os problemas que mais preocupavam os brasileiros, em junho de 2013, eram a saúde, para 48% dos entrevistados, a educação, para 13%, e a corrupção, para 11%.

 

Os dados sinalizam que no período (2003 a 2013), com a valorização dos preços das commodities exportadas e as políticas sociais, houve redução do desemprego, da miséria e da fome. É sintomático que maioria dos brasileiros considerasse, em junho de 2013, a saúde e a educação como os dois principais problemas do país. Encampar a demanda popular seria uma possibilidade, se a palavra trabalhadores fosse algo além de 13 letras esquecidas no nome do partido que ocupava a presidência da república.

 

Segundo o DIEESE, em 2004, no segundo ano do governo Lula, houve 302 greves no Brasil, com um total de 23.138 horas paradas. Já em 2013 e de acordo com a mesma fonte, ocorreram 2.050 greves que totalizaram 111.342 horas paradas. Ou seja, o número de greves cresceu aproximadamente 7 vezes enquanto as horas paradas aumentaram quase 5 vezes. Se houve redução do desemprego e, portanto, do exército industrial de reserva, é natural que crescessem as greves e a luta dos trabalhadores.

 

Por mais imprecisos que possam ser, os dados sobre as greves e os principais problemas do país ajudam a esboçar traços importantes da conjuntura brasileira em junho de 2013. Uma economia razoavelmente aquecida, transformando desempregados e miseráveis em consumidores de baixa renda. Redução do exército industrial de reserva e, consequentemente, fortalecimento das lutas da classe trabalhadora. Elevação dos salários [1]. Ameaça aos lucros do capital. Demanda crescente por saúde, educação e transporte de qualidade.

 

Um exemplo. De acordo com cientista político André Singer [2], houve escassez de trabalhadores domésticos no Brasil entre 2011 e 2013, o que ocorria devido ao crescimento da economia e à redução da miséria. Além disso, a categoria conquistou direitos como a limitação da jornada, pagamento de horas extras e adicionais noturnos. Abriam-se possibilidades mínimas para quem não as tinha. No Brasil, contar com empregados domésticos é sinal de status, além de ser, também, parte da nefasta herança escravista. O fato é que a escassez de trabalhadores e os direitos conquistados se chocavam com atavismos nacionais. André Singer novamente: “O lulismo não pretendia produzir confronto com as classes dominantes, mas ao diminuir a pobreza o fazia sem querer.” 

 

A panela de pressão explodiu em junho de 2013. Colocado numa encruzilhada histórica que ajudou a construir, ainda que involuntariamente, o petismo tinha duas alternativas: 1) Promover um forte ajuste fiscal e retirar direitos dos trabalhadores, regredindo ao velho normal. 2) Mover-se para a esquerda no sentido apontado pelas ruas e pelas demandas populares: ampliando o acesso à saúde, à educação, ao transporte e outros serviços. A tal guinada para a esquerda que nunca aconteceu.

 

Dilma e o PT escolheram a primeira opção, mas não com a intensidade e a rapidez exigida pela burguesia brasileira, o que determinou os acontecimentos posteriores. Ao tentar conciliar o inconciliável, desagradaram todos os lados. De acordo com o Datafolha, em março de 2013, o governo petista era ótimo/bom para 65% dos brasileiros e ruim/péssimo para 7%; três meses depois, no final de junho, apenas 30% avaliavam o governo como ótimo/bom, enquanto 25% o consideravam ruim/péssimo. 

 

A mídia empresarial mudou o tom depois da repressão policial ocorrida em 13 de junho de 2013. Do “Chegou a hora do Basta” (Estadão) e do “Retomar a Paulista” (Folha) para “A revolta dos jovens – depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade” (Veja). De acordo com o Datafolha, no final de junho de 2013 a corrupção era o principal problema do país para 11% dos brasileiros, dois anos e cinco meses depois o número havia crescido para 34%. Era o efeito da atuação combinada da mídia empresarial com a operação Lava Jato, abrindo caminho para a derrubada do governo Dilma, o ajuste fiscal e a retirada de direitos no ritmo exigido pelo capital.    

 

Como pontuou André Singer [3]: o lulismo, especialmente no governo Dilma, cutucou onças com bases curtas. Mas faltou o cientista político complementar a sacada problematizando a questão. O lulismo atua freando as luta dos trabalhadores e, para isso, necessariamente encurta as próprias bases. Ou seja: fornece a corda em que será enforcado. Basta pensar nas lideranças que ganharam cargos e trocaram os movimentos populares pelos governos petistas, fortalecendo estes e enfraquecendo aqueles. O que não estava na conta do lulismo – um pouco por opção, um pouco por ilusão, um pouco por deslumbramento e outro pouco por miopia política – é que o atraso brasileiro é lucrativo e funcional para a burguesia e, sendo assim, nenhum avanço é possível sem mobilização popular e rupturas. Sem estas, o máximo que se consegue são melhorias pontuais permitidas pelos ciclos econômicos, mas que se perdem posteriormente. É o que explica a rápida reversão das “conquistas” dos anos petistas.  

 

No calor dos acontecimentos, em 24 de junho de 2013, Dilma Rouseff anunciou cinco pactos para tentar conter as manifestações: responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação. Era uma tentativa de dialogar com as ruas se mantendo em cima do muro, como se fosse possível. Responsabilidade fiscal para atender o “mercado” e garantir os pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Reforma política, saúde, transporte e educação para atender os manifestantes. Era tentar conciliar o inconciliável. Mas não se agrada a dois deuses ao mesmo tempo. Prevaleceu o arrocho (“responsabilidade fiscal”) e a retirada de direitos, como manda a cartilha neoliberal. Deu no que deu.

 

Por fim. Se as greves estavam crescendo e se a população queria saúde, educação e transporte público de qualidade, é possível pensar Junho de 2013 como uma última saída (à esquerda) antes do pedágio (que custaria caro). Mas o lulismo, como sempre, deu seta para a esquerda e entrou para a direita. Dilma Roussef cumpriu efetivamente o primeiro pacto, a responsabilidade fiscal (arrocho), e esqueceu os outros. Já as forças mais à esquerda não conseguiram unificar, encorpar e potencializar a revolta.  

 

Notas

 

[1] No livro O lulismo em crise – um quebra-cabeça do período Dilma (2011 – 2016), André Singer informa que “embora mais de 90% dos empregos criados fossem de baixa remuneração, a renda média do trabalho se elevou em cerca de um terço entre 2003 e 2014, também graças a acordos coletivos vantajosos aos trabalhadores.”

 

[2] Livro citado na nota anterior.

 

[3] A sacada de André Singer está no livro mencionado nas notas anteriores. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

13 DE JUNHO

 

Foi há nove anos. 13 de junho de 2013. Era uma quinta-feira, dia de Santo Antonio, conhecido no Brasil como “santo casamenteiro”. Mas naquela quinta-feira ocorreu um divórcio. Santo Antonio nasceu em Portugal e morreu em Itália, em 13 de junho de 1231. No Brasil, em 13 de junho de 2013, morreu um determinado arranjo de forças sociais. Daquele dia em diante prevaleceu o arrocho e a repressão. Acabou ali, ou pelo menos deveria ter acabado, a ilusão na conciliação de classes. Mas apenas a direita percebeu. 

 

Antes de prosseguir, duas ressalvas importantes. 1º) Serão comentados fatos ocorridos em São Paulo, mas as jornadas de junho de 2013 cortaram o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. 2º) Como pontuou Milan Kundera, somos separados do passado por duas forças que cooperam entre si: o esquecimento (que apaga) e a memória (que transforma).

 

Os editoriais da mídia empresarial pediam mais repressão contra o Movimento Passe Livre (MPL). Estadão: “Chegou a hora do basta”. Folha: “Retomar a Paulista”. O quarto ato contra o aumento da tarifa foi marcado para o final da tarde, na Praça Ramos de Azevedo, no centro da cidade.

 

Era infernal o barulho das viaturas e dos helicópteros. O comércio fechou as portas. O Viaduto do Chá foi ocupado pela polícia. Os presos no início do ato foram levados no sentido do Centro Velho. A manifestação seguiu para a Praça da República, depois Avenida Ipiranga. A repressão brutal e desmedida – reivindicada pela mídia empresarial – começou poucos metros à frente, na Rua Consolação, na altura da Praça Roosevelt. Uma parte do aparato repressivo fechou a passagem da manifestação. O bloqueio policial foi montado na altura do Mackenzie, um pouco acima do entroncamento das ruas Caio Prado, Dr. Cesário Mota Júnior e Maria Antonia. Uma coluna de soldados com escudos e cassetetes atacou a manifestação por trás, dividindo o ato em dois blocos. Começaram os disparos com balas de borracha e o bombardeio de gás lacrimogêneo. Os manifestantes gritavam: “Sem violência! Sem violência!” A tropa cumpria à risca as ordens da mídia empresarial. Todos os acessos para a Avenida Paulista foram fechados. Houve enfrentamentos e tentativas de furar os bloqueios. Num famigerado programa policial de fim de tarde, exibiam-se imagens ao vivo enquanto o apresentador dizia que os “vândalos” tentavam chegar na Paulista.

 

Um ano e meio antes, no início de 2012, ocorreu a brutal desocupação do Pinheirinho, quando mais de cinco mil pessoas perderam o teto. O que sinalizava o endurecimento da repressão. Mas a comoção e a resposta não foram proporcionais à violência estatal. Apesar do cerco, dos relatos, dos vídeos e das fotos.

 

Mas na quinta-feira, 13 de junho de 2013, a repressão ocorreu no coração de São Paulo e foi amplamente relatada, fotografada, filmada e televisionada. A mídia empresarial precisou mudar o tom, denunciou também a violência policial e tentou redirecionar a revolta. Dois dias depois a capa da revista Veja estampava: “A revolta dos jovens – depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade.” Até aquele 13 de junho não havia camisetas da seleção brasileira nos atos, nem refrões ridículos, como “sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”.

 

Na segunda-feira seguinte, 17 de junho de 2013, a manifestação contra o aumento da tarifa foi marcada para o Largo da Batata, no final da tarde. Impressionante. A conjuntura havia mudado. Pelas ruas da região notava-se um intenso movimento de pessoas a caminho do ato, muito antes do horário marcado. O preto e o vermelho começaram a ser encobertos pelo verde e o amarelo. A manifestação cresceu. Mas o público era outro. Outra estética. Outras cores. Outros ideais. Surgiram os primeiros gritos diretamente contra Dilma Rousseff e o PT. Houve quem tentou puxar palavras de ordem contra o governo do estado de SP – chefiado à época por Geraldo Alckmin, do PSDB –, mas sem conseguir contagiar os presentes. Naquele 17 de junho houve manifestações em várias cidades. Foi também naquela segunda-feira que surgiram os primeiros gritos de “sem vandalismo” enquanto alguns grupos faziam pichações. Os gritos de “sem partido” ganharam força naquele dia. O que não apareceu foi a repressão. A polícia estava presente, mas à distância e orientada a evitar o uso da força. Se a repressão ocorrida em 13 de junho se repetisse as consequências seriam imprevisíveis. A manifestação era muito maior e o público era outro. O crescimento do ato tinha a ver com o rechaço à violência policial, dobrar a aposta repressiva jogaria ainda mais a população contra o Estado e a polícia, com consequências imprevisíveis.

 

Na quinta-feira, 20 de junho de 2013, o aumento da tarifa havia sido cancelado. A manifestação marcada para a Avenida Paulista foi mantida. Seria uma comemoração. Como as bandeiras dos partidos estavam sendo rechaçadas, a esquerda foi ao ato em bloco e com seus símbolos. Acabou se autoisolando e foi atacada. Provavelmente o ataque fascista contra o bloco da esquerda foi incentivado e apoiado por agentes da repressão. O resultado foi que a comemoração pela queda da tarifa virou um grande mal-estar. Uma questão que fica é: foi correta a opção por criar um bloco de esquerda vermelho e preto e facilmente diferenciável do restante da manifestação?

 

Naquela quinta-feira, 20 de junho de 2013, um fato passou quase despercebido. O bloco da esquerda atacado pelos fascistas estava no começo da Avenida Paulista, mas a manifestação foi grande e havia outros grupos, inclusive algumas dezenas de punks blasfemando contra Deus, o Estado e a propriedade privada. Provocação muito maior que a mera presença de bandeiras dos partidos de esquerda. Mas, curiosamente ou não, os punks não despertaram o ódio fascista, o que sugere que o ataque ao bloco da esquerda foi planejado e executado por agentes da repressão. Que populares se juntariam aos infiltrados era uma possibilidade provavelmente prevista e esperada.     

 

A partir de junho de 2013 as manifestações se sucederam. No ano seguinte o eixo passou a ser “Não vai ter Copa”. Houve protestos, a repressão foi brutal e a Copa aconteceu. Mas o sonho com o título mundial em casa, que seria – para os gestores petistas – a consagração após doze anos no poder, acabou nos 7 a 1 e se tornou a maior vergonha do futebol brasileiro em todos os tempos.

 

Olhando de hoje para trás, fica evidente que não bastou o povo ir às ruas. De qualquer forma, apesar do crescimento do verde-amarelismo bocó, a partir de 17 de junho de 2013, as manifestações giraram em torno de pautas progressistas: transporte (passe livre), educação (naqueles dias se ouvia que um professor vale mais que o Neymar) e saúde (“queremos hospitais padrão FIFA”, lia-se em muitos cartazes). De acordo com o Datafolha, a saúde era o principal problema do país para 48% dos brasileiros em junho de 2013. Mas o governo petista nem queria e nem podia atender as reivindicações das ruas e as demandas populares. Ao mesmo tempo, as forças mais à esquerda não conseguiram unificar e dar consistência aos protestos, exigindo saúde, educação e transporte públicos e de qualidade. Esse divórcio duplo – iniciado naquele 13 de junho de 2013 – ajuda a explicar os impasses do tempo presente. 

 

As forças à esquerda não avançaram para além da explosão inicial. O reformismo rebaixado (petismo) mostrou-se incapaz de integrar ou conter as lutas. O governo Dilma além de se revelar absolutamente inapto para responder às demandas das ruas, ainda atuou em sentido contrário e aprofundou o ajuste fiscal já a partir de 2013, estreitando a base em que se sustentava. Era natural que ficassem brechas a serem exploradas pela direita.

 

Se é assim, culpar junho de 2013 pelo avanço da direita, como fazem os alguns setores petistas, só serve para tentar absolver o reformismo rebaixado, além de atuar como condenação prévia contra levantes futuros. É ação típica dos nostálgicos pelos “anos de ouro” do lulismo, que sonham com uma sociedade de consumidores conformados e, deliberadamente, esquecem fatos importantes, como o envio de tropas brasileiras ao Haiti, em 2004, que deu asas a diversos militares que, posteriormente, comporiam o governo Bolsonaro.

 

Por fim uma sensação. As cartas continuam sendo jogadas. Para bem ou para mal, é como se ainda estivéssemos naquele junho. O que ajuda a explicar o sentimento de cansaço. O impasse prossegue. O futuro responderá.

 

Publicado originalmente no Passa Palavra

DUAS VEZES RONALDO

Como seria um craque platônico? Entidade fundamental da qual os demais seriam cópias desgastadas e inferiores. Teria a elegância de Falcão e Ademir, o encanto de Maradona e Mané, a capacidade de decisão de Pelé?

Já que estamos no campo gramado das idéias, imaginemos o embate de um craque platônico contra uma defesa também ideal, um antecipando os movimentos da outra e vice-versa. Destruição contra criação. Pior que isso. E se existissem goleiros platônicos? A bola jamais entraria? Agora o pior dos mundos. E se houvesse um árbitro ideal? Que nunca errasse? Quem culparíamos nas derrotas?

Voltemos para os terrões do mundo real. O futebol é tão includente que elege figuras díspares como um Sócrates e um Romário, um Djalminha e um Kaká. Mais do que isso. Elege inclusive o acaso, que não cabe no mundo platônico. O futebol é essencialmente humano e, consequentemente, antiplatônico. Se visitados por seres extraterrestres, o melhor que faríamos seria convidá-los para uma pelada. Obviamente que a esquadra humana não deve ser formada com os engenheiros pernetas da Nasa, para não causar má impressão nos ETs. Perder em casa (Terra) é sempre complicado.
           
Mas voltando ao craque. O que define esta entidade misteriosa? É um ser tão arisco que dribla inclusive as definições. Mas arrisquemos um desarme: o craque é um insubordinado, sua arte consiste em subverter o encadeamento geométrico e previsível valendo-se do cálculo e da antecipação das coisas. É por isso que a tarefa de marcar e anular um craque é inglória, o marcador está sempre exposto à negação da negação.

O futebol é uma equação absurda. É uma relação de probabilidade entre uma infinidade de casos favoráveis e um imatematicável número de casos possíveis. O craque é o maestro disso tudo.

Exemplifiquemos. Estádio Urbano Caldeira, Vila Belmiro, onde dizem que jogadores mortos se encontram semanalmente para uma pelada noturna. 26 de abril de 2009, domingo à tarde, final do Paulistão. Chutão para o alto. A bola, que não é boba, procura Ronaldo, que relativizando a lei da gravidade, a apara sem perder a passada e o movimento, como um pai que arremessa o filho para o alto segurando-o caprichosamente antes de tocar o chão. A pelota desce sem pressa, da direita para a esquerda, afastando-se do zagueiro mais próximo e se ajeitando para o afago letal, do lado oposto e longe do marcador. O lateral direito tenta chegar pelo flanco, mas é inútil. O domínio do craque e o movimento do seu tronco foram precisos. Ronaldo e bola caminham como namorados, de mãos dadas; e felizes, como um dono e seu cão (e os casais de namorados no começo do relacionamento). Depois de amortecer a queda da redonda com o pé direito, vem o arremate fatal de esquerda. Bola na rede. Zagueiro, lateral e goleiro são reduzidos a figurantes.

No mesmo dia e local, alguns minutos depois, um marcador recupera a bola no meio campo e lança Ronaldo. Contra-ataque em velocidade. É a jogada mais mortal do craque. Sabendo disso, o goleiro se adianta para impedir o avanço. Antieclidiano, Ronaldo corta para trás, o arqueiro fica no meio do caminho (como a pedra do poeta). O marcador passa batido. Com mais um pequeno mimo de direita na pelota, o marcador está definitivamente fora de combate, a meta se abre para o craque (como se fosse a máquina do mundo). Vem um leve empurrão de esquerda por baixo. Encantada, a redonda esboça uma parábola, cobre o goleiro e descansa nas redes, como se arremessada por um jogador de basquete.
           
Quase tudo se consegue com treino e dedicação, inclusive nos nobres campos da poesia, que reconhecidamente exige mais transpiração do que inspiração. Já nos campos de futebol é diferente, para se fazer um gol de placa é preciso ter pé de moleque.


DE VIRA-LATA A PIT BULL: PROLEGÔMENOS PARA UMA TEORIA DOS COMPLEXOS
Era uma vez um país da América do Sul. Na década de quarenta do século XX, um famoso escritor austríaco viu naquelas terras o “país do futuro”, mudou-se para lá e depois se suicidou por ali mesmo.

Era uma terra com muitas águas, que canalizou seus rios e construiu barragens, alagando vales e afogando o povo, tudo para produzir energia e caixa para empreiteiras e outros negócios. Dizia-se que a fartura de água era tanta que até fariam a transposição do rio mais genuinamente nacional: um enxurro de dinheiro encharcou o caixa das construtoras e do agronegócio.


Era uma terra de flora riquíssima, que foi transformado suas matas em pastos e canaviais, foi substituindo suas sementes naturais por outras transgênicas, tudo com a benção multinacional.


Cândido Portinari: Meninos com balões (1936)



Era uma terra de fauna riquíssima, que, no final do século XX, elegeu um presidente que foi mentor de um partido simbolizado por uma ave de bico longo, que habitava as florestas antes de ser extinta. Essa ave de bico longo violava ninhos e se alimentava de ovos de outros pássaros (dizem que por isso virou símbolo do partido, que também se alimentava de ovos de terceiros e também acabou extinto). Depois do homem do partido da ave do bico longo, foi eleito um presidente apelidado com o nome de um fruto do mar, um molusco. Um dos sentidos de molusco é pessoa, animal ou coisa mole (dizem que isso explica o apelido desse presidente). O presidente molusco cunhou uma expressão que ficou famosa: “nunca antes na história desse país”. 

Nunca antes na história daquele país (e do mundo) os preços dos produtos do agronegócio subiram tanto. Aliás, subiram, mas na época latifúndio não era chamado de agronegócio. Tudo que sobe muito despenca depois. Mas... As quedas dos preços do café, do cacau e do açúcar já tinham quebrado muita casa-grande, mas na época casa-grande não era chamada de agronegócio e não era multinacional, enfim, ninguém previu o tombo no futuro do “país do futuro”.  O presidente molusco pegou jacaré na marolinha da alta dos preços dos produtos do agronegócio, e pulou fora antes do tombo.

Em 2012, completou-se o centenário de um escritor e dramaturgo da terra da rica flora. Nos anos cinquenta do século XX, este escritor e dramaturgo cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para definir o sentimento de inferioridade do seu povo, que seria uma espécie de “narciso às avessas”, “que cospe na própria imagem”. Mas isso foi antes do presidente molusco e da alta dos preços dos produtos do agronegócio.

Nunca antes na história daquele país (e do mundo) os preços dos produtos agrícolas permaneceram nas alturas, as asas dos preços eram fixadas com cera, e o país despencou como Ícaro, e como Sísifo, já que a tragédia se repetiu como já tinha acontecido com o café, o cacau e o açúcar. A afoiteza juvenil afogou o país das muitas águas.



Em 2062, o presidente molusco e o partido da ave de bico longo já tinham sido esquecidos. O agronegócio passou a ser chamado de agricommerce e os senhores de engenho de businessmen, estes senhores criaram e dominaram outros partidos para lhes servir. Lendo sobre Ícaro e “complexo de vira-lata”, um jovem historiador cunhou a expressão “complexo de pit bull”, que é uma espécie de “complexo de vira-lata” às avessas, e que existiu quando o país da rica fauna começou a se achar forte e poderoso, isso aconteceu na época do presidente molusco e da sua sucessora, que acabou esquecida sem ser melhor estudada. Segundo o jovem historiador, o “complexo de pit bull” teve três causas: a hipertrofia do crédito, da propaganda e dos preços dos produtos agrícolas. O “complexo de pit bull” fez as asas da imaginação voarem cada vez mais alto, até que a cera derreteu e veio o tombo. Falava-se da solidez dos fundamentos da economia. Dizia-se que a musculatura do país era rija como a do pit bull, mas de pit bull só havia a coleira e a focinheira. O país desabou junto com os preços dos produtos que exportava. Então o povo da terra da rica flora teve saudades da época do “complexo de vira-lata”, porque podia, pelo menos, brincar solto pelas ruas, balançar o rabo e correr atrás de bola.

 GREGOR SAMSA: A INSEGURANÇA E ADOECIMENTO DE UM TRABALHADOR


I

A história é conhecida. No final da vida, aos 40 anos... Franz Kafka pediu para que Max Brod queimasse-lhe os textos não terminados. O amigo não obedeceu e divulgou os escritos inéditos. Pouco tempo depois da morte de Kafka, em 1924, foram publicados O processo (1925), O castelo (1926) e outros. Fosse Max Brod um personagem kafkiano, como tantos que cumprem obstinadamente qualquer ordem, os textos teriam desaparecido para sempre.


A história também é conhecida, mas pouco associada aos contos e romances escritos por Kafka. Em 1908, já formado em direito, o escritor ingressou no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho do Reino da Boêmia. A atuação não se restringia a questões jurídicas, Kafka compunha o “departamento técnico”: visitava fábricas, construções, pedreiras, serrarias. Classificava o “nível de periculosidade” das indústrias e “se ocupava diariamente com as consequências de graves acidentes de trabalho”1. Acompanhou batalhas jurídicas travadas contra empresas e as consequências de acidentes para os trabalhadores: “Membros mutilados por serras ou bobinas de corda, escalpelamentos por rodas de transmissão, queimaduras, envenenamentos e cauterizações.”1 Kafka conheceu o mundo do trabalho por dentro. Em 1909, o escritor enviou uma carta a Max Brod em que relatava:

 

Pois o que eu tenho que fazer! Nos meus quatro distritos [...] como bêbadas as pessoas despencam dos andaimes para dentro das máquinas, todas as vigas tombam, todas as rampas se soltam, todas as escadas escorregam, o que se alcança para cima, desaba para baixo, o que se alcança para baixo, causa a própria queda. E se tem dores de cabeça das jovens nas fábricas de porcelana, que incessantemente se lançam sobre as escadas carregando torres de louça.2


A metamorfose é formada por três capítulos. Foi publicada em 1915. A novela não estava, portanto, entre as obras que deveriam ser queimadas, foi concluída pelo autor em vida, na época em que trabalhava no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho do Reino da Boêmia. Kafka às vezes não dá nomes aos personagens, mas costuma indicar-lhes as profissões: o oficial (Na colônia penal), os ajudantes (O castelo), o jejuador (Um artista da fome). Ainda que não seja o único, A metamorfose é um dos textos kafkianos em que o trabalho é central, principalmente no primeiro capítulo. Certa manhã, o caixeiro viajante Gregor Samsa desperta de sonhos intranquilos e se percebe transformado em inseto. A partir do segundo capítulo, o narrador explora a relação entre a família e Gregor, que continua ouvindo, mas vai aos poucos perdendo a fala. Impossível não pensar em Bartleby, o escriturário, de Herman Melville, que começa a repetir “preferiria não” e vai perdendo a fala dentro de um escritório em Wall Street. Bartleby se refugiava atrás de um biombo. Gregor Samsa, já transformado em inseto, se refugiava debaixo de um sofá. Bartleby é um Gregor Samsa que recusou o trabalho. Gregor Samsa é um Bartleby incapaz de dizer “preferiria não” ao chefe e à empresa.


II

A fórmula foi repetida no romance O processo, o drama começa ao despertar. Na mesma frase, logo no início da novela A metamorfose, o narrador informa que Gregor Samsa teve “sonhos intranquilos e está na cama metamorfoseado num inseto monstruoso”3. Na sequência, ficamos sabendo que as numerosas pernas do inseto, lastimavelmente finas, tremulavam ao alcance de seus olhos. Não há nenhuma indicação sobre a causa da metamorfose, mas no terceiro parágrafo, logo após Gregor perguntar “o que aconteceu comigo?”, somos informados que Samsa é um caixeiro-viajante e, apesar de ter se transformado num “inseto monstruoso”, ainda conserva a fala, é o próprio que diz:

 

Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia – viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso.

 

Refletindo sobre as mazelas do trabalho, Gregor Samsa reclama dos problemas relacionados ao sono numa profissão em que é obrigado a viajar constantemente.  Na sequência ficamos sabendo, pela boca do “inseto monstruoso”, que Gregor tem um chefe exigente e capaz de demiti-lo pelo menor deslize. Depois somos informados que a família Samsa (pais e irmã) é sustentada pelo caixeiro-viajante, que, por essa razão, teme perder o emprego. Além disso, o pai de Gregor tem uma dívida pecuniária com o chefe do filho, o que o pressiona a continuar trabalhando: “Se não me contivesse por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração.”3

 

Como não consegue se levantar da cama, Gregor pensa em faltar ao trabalho alegando problemas de saúde, mas desiste porque nunca havia ficado doente em cinco anos de serviço. Além disso, “o chefe viria com o médico do seguro de saúde, censuraria os pais por causa do filho preguiçoso e cercearia todas as objeções apoiado no médico, para quem só existem pessoas inteiramente sadias, mas refratárias ao trabalho.”3 O médico é um exemplo de personagem sem nome e com profissão, ele tomaria partido da empresa e cumpriria obstinadamente qualquer ordem. A medicina do trabalho é uma especialidade que surgiu como exigência das empresas para baratear custos, é comum encontrar médicos do trabalho mais preocupados com os lucros do capital do que com a saúde dos funcionários. Kafka conhecia o mundo do trabalho, a referência ao “médico do seguro de saúde” não é à toa.

           

Ainda sem conseguir sair do quarto, Samsa nota alterações na própria voz, mas acredita tratar-se do prenúncio “de um severo resfriado, moléstia profissional do caixeiro-viajante”3. Moléstia profissional...

 

Passam-se algumas páginas, mas ainda estamos nas primeiras horas daquela manhã, Gregor escuta batidas na porta do apartamento, do quarto ouve as primeiras palavras e identifica o visitante, é o gerente. Neste ponto, o narrador pergunta:

 

Por que Gregor estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se levantava logo a máxima suspeita? Será que todos os funcionários eram sem exceção vagabundos? Não havia, pois, entre eles nenhum homem leal e dedicado que, embora deixando de aproveitar algumas horas da manhã em prol da firma, tenha ficado louco de remorso e literalmente impossibilitado de abandonar a cama? 

 

A mãe de Gregor recebe o gerente dizendo que o filho não estava bem e que ainda não havia saído do quarto, segundo ela, Samsa não tem outra coisa na cabeça a não ser o trabalho. O gerente responde: “Esperemos que não seja nada grave. Embora por outro lado eu tenha de dizer que nós, homens do comércio, feliz ou infelizmente – como se quiser – precisamos muitas vezes, por considerações de ordem comercial, simplesmente superar um ligeiro mal-estar.”3 A referência ao trabalho é tão explícita quanto a pressão do gerente, que assedia o funcionário diante da família Samsa.

 

Transformado num inseto, Gregor não consegue se levantar e abrir a porta, mas continua ouvindo e falando. O estranhamento, em Kafka, brota de contrastes desse tipo. O gerente eleva o tom de voz e se dirige a Gregor: “O senhor se entrincheira no seu quarto, responde somente sim ou não, causa preocupações sérias e desnecessárias aos seus pais e descura – para mencionar isso apenas de passagem – seus deveres funcionais.”3 Cresce o estranhamento: de um lado, um homem transformado num “inseto monstruoso” tentando se levantar e ir para o trabalho; do outro lado, um gerente preocupado com o negócio. Diante da situação absurda, as ações e reações são normais, os personagens respondem com atitudes comuns, naturaliza-se o estranhamento. O gerente diz a Gregor: “O chefe em verdade me insinuou esta manhã uma possível explicação para as suas omissões – ela dizia respeito aos pagamentos à vista que recentemente lhe foram confiados.”3 O superior sugere que o subordinado poderia ter roubado uma quantia que lhe havia sido confiada, ou seja, a honestidade do caixeiro-viajante é questionada, apesar dele ser um funcionário exemplar.

           

Gregor pede que seus pais sejam poupados, afinal, não havia motivos para as censuras. Ele se refere ao mal-estar: “Por que não comuniquei à firma? Mas sempre se pensa que se vai superar a doença sem ficar em casa.”3 Ele resistiu enquanto pôde, como Bartleby. O caixeiro-viajante suplica: “senhor gerente, o senhor está vendo que não sou teimoso e que gosto de trabalhar, viajar é fatigante, mas não poderia viver sem viajar.”3 Gregor Samsa mostra que vestia a camisa da empresa. Na sequência, ele suplica: “Tenho por outro lado de cuidar dos meus pais e da minha irmã. Estou num aperto, mas sairei dele trabalhando. Não me torne, porém, as coisas mais difíceis do que já são.”3


III

A presença ambígua do trabalho na literatura não foi inaugurada por Kafka. Trinta anos antes do nascimento do escritor tcheco, Herman Melville publicou o conto Bartleby, o escriturário. Como os personagens kafkianos, o passado de Bartleby é desconhecido, sabe-se, apenas, que ele foi contratado para trabalhar num escritório em Wall Street. Aos poucos, o escriturário passa a repetir a frase “preferiria não” quando o chefe lhe pede para elaborar ou revisar documentos. Depois cai num mutismo quase total. Bartleby definha dentro do escritório4, praticamente perde a fala, como Gregor Samsa. Mas, em geral, ensaístas, filósofos e acadêmicos não relacionam o caso Bartleby ao trabalho5, o mesmo acontece com a novela A metamorfose.


Walter Benjamin registrou que “o mundo das chancelarias e dos arquivos, das salas mofadas, escuras, decadentes, é o mundo de Kafka.”6 Vale destacar que, dentro das chancelarias, entre os arquivos, nas salas mofadas, laboram homens invisíveis, como Bartleby e os personagens kafkianos. Albert Camus notou uma cumplicidade secreta unindo o lógico e o cotidiano ao trágico: “Eis aí por que Samsa, o herói de A metamorfose, é um caixeiro-viajante. Eis aí por que a única coisa que o aborrece na singular aventura que faz dele um inseto repugnante é que seu patrão ficará descontente com sua ausência.”7 Onde Camus enxerga o “cotidiano”, vejo o “trabalho”, é o que sugere todo o primeiro capítulo, com os parágrafos se alternando para relatar as mazelas da metamorfose e do ofício de caixeiro-viajante. A história de Gregor Samsa seria diferente se ele fosse porteiro, segurança ou funcionário público.


Kafka reclamava que o emprego no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho roubava-lhe o tempo necessário para escrever, mas teria escrito A metamorfose se não conhecesse e vivenciasse as mazelas do mundo do trabalho? A pergunta é válida para outros textos atravessados por questões laborais, como O processo, O castelo, Um artista da fome, A construção.


Na novela A metamorfose, mas não só, Kafka narra um acontecimento extraordinário com linguagem cartorial. É a grande sacada do escritor tcheco. Gregor Samsa age normalmente, apesar do absurdo. Também o narrador age normalmente, conta a história como se redigisse uma ata de reunião de condomínio, o que aumenta o estranhamento. O absurdo está naturalizado e não causa espanto. O narrador não se espanta com a metamorfose, assim como os leitores não se espantam com as mazelas laborais do caixeiro-viajante.


A excepcionalidade da metamorfose, somada à técnica refinada de Kafka, embaralha a imaginação dos leitores. Mas reparando bem, a transformação do caixeiro-viajante num “inseto monstruoso” tem relação com o trabalho, o que depõe contra o modo de produção capitalista.


Notas


1 Santos, T. B. dos. Tecnologia e Franz Kafka: experiências profissionais e sua relevância na ficção. Rev. Let., São Paulo, v.50, n.2, p.307-325, jul./dez.2010.


2 Carta citada no artigo acima, p. 309.


3 Kafka, F. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.


4 Para uma leitura do conto de Herman Melville a partir do trabalho, ver Bartleby: insegurança, doença e morte de um trabalhador, https://passapalavra.info/2019/05/126590/


5 Para uma leitura da novela a partir do campo da Saúde Mental e Trabalho, ver A metamorfose e o campo da saúde mental de trabalhadores: uma análise bakthiniana, https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.28652018


6 Benjamin, W. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In. Benjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.


7 Camus, A. O mito de Sisífo. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.


Publicado originalmente no Passa Palavra

ANTIDICA: UM LIVRO PARA NÃO LER

Não ignoro que textos como este tendem a produzir o efeito inverso do que pretendem, mas vamos aos fatos mesmo assim. Existe um livro para não ser lido? Não. Certamente não existe. É a vida que é curta, o que coloca prioridades. E aqui surge uma questão: depois de perder horas lendo um romance menor, ainda me proponho a escrever algo a respeito, por quê?

Auto-análise não é o meu forte, mas imagino por que despejo tempo pelo ralo comentando um livro medíocre: vingança. Jogos Surrealistas ludibriou minha intuição. Meu método de flertar com o livro falhou feio. O gosto pelo novo e a disposição ao risco me fizeram dar uma topada na estante do sebo. Troquei Abadon, o exterminador, de Ernesto Sábato; por Jogos Surrealistas, do inglês Robert Irwin. Olhando agora, vejo que as indicações do logro estavam visíveis no meio da contracapa: três hiperbólicos elogios da mídia comercial. Motivo suficiente para desconfiar, mas ignorei o sinal vermelho e fui em frente.   

Paul Éluard, André Breton e Salvador Dalí participam dos jogos surrealistas de Irwin. Mas são figuras decorativas, panos de fundo que não dão pano pra manga. A Revolução Espanhola e a Segunda Guerra também não têm grande importância, exceto pelo fato de serem contemporâneas do amor do narrador da história, Caspar, que é um pintor surrealista inglês.

A orelha do livro anuncia uma investigação sobre sexo, surrealismo, imagística hipnótica, obras de cera, arte nazista, mesmerismo e loucura. Pura ilusão. O texto é totalmente kitsch. Amor brega orquestrado, com maestro e dupla sertaneja comercial. Pinceladas de bom gosto duvidoso, classe mediano e medíocre. Um romance siliclonado. Super-realismo de canção cafona repetida em caixa de música de boteco ao preço de moeda de meio real. Peruca que não cobre a careca.

Jogos surrealistas é a história do hiperamor tão comum ao tempo presente, espelho do vazio dos seres. Supra-realismo manco, dejetos de civilização e repressão varridos para dentro do inconsciente. Sentimento hipertrofiado em academia e com anabolizantes sintéticos. Amor mercadoria exposto em vitrine de shopping. Amor piegas, meloso, ridiculamente sentimental. Amor carência que dá azia no leitor.



CIRANDINHA

Queria escrever um poeminha
que fosse um passarinho,
um tico-tico.
Para brincar no telhado
e correr no quintal.
Então à noitinha,
quando me viesse a tristeza,
meu poeminha cantaria.


CAROLINA E JESUS

 

I

 

Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel...

 

– Nossa. Que barulho é esse? O que é isso?

 

– Desossá papel. Comê sopa de osso de papel. Dá sopa de osso de papel pras crianças. A fome é amarela. A fome amarela. A fome é professora.

 

– Mas o espírito é mais importante do que o alimento. Nunca se esqueça disso.

 

– Espírito? Milhões de pessoas no mundo, a maioria passa fome. Quem não come não caga. Barriga vazia é tortura.

 

Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia...

 

– O que é isso? É um trem?

 

– Metê o pé na lama. Metê o pé na água pra buscá água às quatro e meia da manhã. Lavá roupa no rio. Candidato canalha pedindo voto na porta do barraco. Surra de marido em mulher. Cachaça, muita cachaça.  Muita cachaça, muita merda. Prostituição. Peixeira cortando gente. Polícia, muita polícia. Quanto mais polícia, mais merda. Vizinho jogando merda nos meus filhos. Fome. Tenho três crianças pra alimentá. Filho com fome dói. Filho perguntando se tem mais comida dói. Nunca tem mais. Esse “tem mais comida?” é uma mosca na minha orelha. Tontura de fome é fogo. Tortura.

 

Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia...

 

– Que barulho é esse? Outro trem?

 

– Catei lixo, catei tudo, menos a felicidade. Quero morrê. Vô me jogá na frente do trem.

 

– Nunca diga isso!

 

– Cadê você? Não me abandone.

 

– Estive, estou e estarei sempre contigo. Quem crê em mim nunca está sozinho. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim. Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. Se você estiver em mim e as minhas palavras estiverem em ti, peça o que quiser.

 

– Metê palavra no papel. Ganhá dinheiro com meu livro, com minhas palavras. Saí desse inferno. Dá de comê pras crianças.

 

II

 

– Tudo é possível para quem crê. A fé remove montanhas. O reino de Deus tá dentro de você. E agora você tá no jornal, na revista, na imprensa. Vai vendê muito livro. Parabéns.

 

– Metê palavra no papel. Comê carne de palavra. Dá de comê pras crianças.

 

– Isso!

 

Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel...

 

– Perfeito!

 

– Catá papel. Metê palavra no papel. Vendê papel com palavra. Vendê palavra e papel. Comê carne de palavra.

 

– Milhares de livros vendidos.  Tradução em outros idiomas. Parabéns!

 

– Comprá roupa e sapato bom. Comprá livro bom, não sei dormir sem ler. Comprá casa de tijolo. Adeus, Favela do Canindé. Adeus, quarto de despejo. Adeus, barraco de tábua. Viajá pro Chile e Argentina, Europa e América Latina. Costurá a vida com pedaço de céu, com pedaço de nuvem, com pedaço de estrela. O futuro é azul. Obrigado, Senhor.

 

III

 

– Cadê o jornal? Cadê a revista? Cadê a imprensa? Preciso vendê meu livro! Esqueceram meu livro? Ninguém fala do meu livro! Metê palavra no papel e morrê de fome?

 

Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda...

 

– O que é isso? Que barulho é esse?

 

– De novo não. Me ajuda. A fome é a dinamite do corpo humano.

 

– Estive, estou e estarei sempre contigo. Deus não dá mais do que você pode carregar.

 

– Barraco de favela é cinza. Lixo é cinza. Fruta podre é cinza. Ratazana é cinza. A vida é cinza. O prefeito da favela é o diabo.

 

– Nunca diga esse nome!

 

– Tontura de fome é fogo. É tortura. A fome é amarela. Tá tudo amarelo.

 

– Cuidado! Essa faca! Larga essa faca! Me dá essa faca!

 

Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome...

 

– Calma! Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao. Ai.

 

IV

 

Um dia depois jornais noticiaram que uma mulher esfaqueou, matou e comeu partes de um homem não identificado.

 

Familiares e amigos não compareceram para reconhecer o corpo. Peritos não conseguiram identificar a vítima.



Igreja de São Francisco de Assis - Salvador/BA