“MÍDIA, REALIDADE, SOCIEDADE HIPÓCRITA”

Sempre que alguém atira contra pessoas indefesas em escolas, creches ou igrejas, lembro de um dos primeiros casos desse tipo, talvez aquele que inaugurou a prática no país. Novembro de 1999, um estudante de medicina entrou numa sala de cinema do Morumbi Shopping, em São Paulo, para assistir o filme Clube da Luta. Durante a sessão o estudante levantou e foi ao banheiro, onde teria disparado pela primeira vez no espelho, destruindo a imagem de si próprio, o que certamente diz alguma coisa, mais foi pouco comentado; daí voltou, atirou para o alto e, por fim, nas pessoas presentes. Resultado: 3 mortos, 5 feridos, 1 preso.

Mas não é o fato em si que me vem à cabeça quando algum imbecil mata pessoas e se suicida, ou é preso, o que me vem à cabeça é o bilhete encontrado no lixo do atirador do Morumbi Shopping, onde se lia "mídia, realidade, sociedade hipócrita".

As propostas que surgem depois dos massacres são previsíveis e, provavelmente, ensaiadas em conjunto com a indústria bélica, porque por aqui se repete o padrão observado nos EUA: armar professores e funcionários, liberar o porte de armas de fogo, instalar detectores de metais nas escolas e nos shoppings, acompanhar as redes sociais para identificar psicopatas, colocar uma viatura em cada esquina... Mais e mais armas, como se as armas não tivessem nada a ver com as matanças... Mais e mais repressão, como se esta não tivesse nada a ver com a violência, e sem questionar por que é preciso ampliar cada vez mais a repressão. É onde me lembro daquele bilhete: "mídia, realidade, sociedade hipócrita". Ora, ora, mais armas? Mas é justamente o que querem os assassinos, em geral aficionados por morte, por armas e por ideias de extrema direita. Ora, ora, armar professores e funcionários? Mas eles não têm sequer recursos básicos para trabalhar.

Como o tempo e o esquecimento as perguntas que realmente importam deixam de ser elaboradas. O que seria um caso para sociólogos, psiquiatras, historiadores, psicanalistas, professores, estudantes, pais e a sociedade em geral, tende a se reduzir meramente a um caso de polícia.

Por que alguém é tão covarde a ponto de impor sua decisão de morte a quem não tem nada a ver? Por que a sociedade tem gerado cada vez mais indivíduos doentes? Quem não enfrenta seus fantasmas está condenado a ser atormentado por eles. A vontade desmedida de aparecer leva a se fazer qualquer coisa, inclusive matar e se matar: mídia, realidade, sociedade podre! É possível argumentar que, se as razões dos matadores fossem debatidas publicamente, mais gente mataria e se mataria. Mas isso só depõe contra a sociedade e seus fundamentos, que são frágeis como um doente terminal a quem não se informa sequer o diagnóstico. Enquanto isso, outros assassinos virão e, como raios, levarão a morte às escolas, ao metrô, às igrejas, aos shoppings centers, às entrevistas de emprego e até para as ceias de natal.

Numa conjuntura em que o entreguismo dá a linha e alinha o país aos USA, "das nove às seis", como um cachorro de madame, é sintomático que o Brasil tenha importado os matadores suicidas e, principalmente, os papagaios dos piratas da indústria bélica. Enquanto isso a geração pós-Coca-cola vai alterando os versos da canção: "Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial, mas agora chegou a nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo" em cima de nós mesmos.