A GRANDE ADÚLTERA

 

Emma Bovary provoca paixões violentas, a favor e contra. A favor: o escritor Mario Vargas Llosa [1] e mais alguns. Contra: o Ministério Público Francês e o promotor Ernest Pinard, que levaram Gustave Flaubert para o banco dos réus por ofensa à moral e aos bons costumes. Componho o primeiro grupo. Foi paixão à primeira leitura. Talvez por saber, desde o início, que o destino dela seria trágico, e por constatar, a cada página, que ela não recuaria. Vale pontuar que Emma Bovary era grande leitora de romances, também ela sabia o destino reservado às adúlteras. Enfim. Sempre que posso, retorno ao romance de Flaubert. Costumo ler, também, o que encontro sobre a Madame.

 

Num sebo, procurando livros na seção de crítica literária, encontrei Os ovários de Mme. Bovary, de David Barash e Nanelle Barash [2]. Comprei, li e recomendo. São dez ensaios que analisam obras literárias com instrumental darwiniano. Os autores passam por Jane Austen, Shakespeare, Faulkner, Dostoievski, Joyce, Philip Roth, Flaubert e outros. Os ovários de Mme Bovary... Uma sacada provocativa, explicita a ideia que perpassa todos os ensaios: a biologia tem muito a dizer sobre o comportamento humano, seria “uma chave [...] que abre mais portas, dá acesso a mais lugares e lança mais luz do que qualquer de suas alternativas menos versáteis”. Os autores não se arriscam a ponto de afirmar que a biologia explica totalmente a literatura, sabem que os seres humanos são animais culturais, com imaginação e intelecto. Mas lembram, por outro lado, que não é por ter imaginação e intelecto que os homens deixam de ser animais. Se é assim, seria possível “encontrar raízes na biologia, o leito comum que todos os seres humanos compartilham com focas, alces, gorilas e grande parte do mundo animal”.

 

Por meio da Madame Bovary, de Flaubert, David Barash e Nanelle Barash discutem “a biologia do adultério”. Afirmam, por exemplo, que pesquisadores analisaram diversas espécies e perceberam que, em alguns casos, 70% das crias nascem de traições, ou seja, de relações extraconjugais. Emma Bovary, por exemplo, teria ouvido um sussurro darwiniano subliminar que lhe provocou comichão nos ovários, empurrando-a para a cama com Rodolphe e Léon. Os autores vão mais longe. Argumentam que a tendência à infidelidade da Madame Bovary aumentou quando o marido sofreu um revés profissional. No que ela se aproximaria das fêmeas de chapim-real, que geralmente são fiéis, mas às vezes traem os parceiros, especialmente quando eles fracassam socialmente. De acordo com os autores, a ausência de inclinação para a maternidade também pode ter aumentado a tendência à infidelidade de Emma Bovary, que pouco se preocupava com a filha.

 

É interessante reler a personagem de Flaubert a partir dos ovários. Mas, para mim, que sou do time dos apaixonados por ela, a interpretação biologizante pareceu insuficiente e até desrespeitosa com a adúltera, como se a rebaixasse. Onde David Barash e Nanelle Barash enxergam a “biologia do adultério”, vejo “a poesia do adultério”. Curiosamente, o promotor que acusou Flaubert concorda comigo. A expressão “poesia do adultério” é dele, que, além disso, definiu o romance como “uma pintura admirável sob o ponto de vista do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista moral.” [3] Detalhe. Vargas Llosa lembra que o promotor que acusou Flaubert por ofensa à moral e aos bons costumes escrevia, secretamente, versos pornográficos...

 

Emma Bovary era uma leitora incansável: “mesmo à mesa levava um livro e virava as páginas enquanto Charles comia e falava-lhe” [4]. Flaubert informa que, após a primeira traição, ela lembrou-se das heroínas dos livros que lera, aquela legião lírica de mulheres adúlteras tomou-lhe a memória de assalto, como irmãs que a seduziam. Realizou, então, o longo devaneio de juventude e se tornou uma mulher apaixonada. Além disso e ao mesmo tempo, sentiu-se vingada. Sofrera muito. Mas, finalmente, triunfava. O amor, por tanto tempo reprimido, “jorrava alegremente em alegre efervescência.” [5] Se é assim, por mais provocativa que seja a ideia, não dá para limitar Emma Bovary aos ovários.

 

Mais interessante do que explicar as paixões de Emma Bovary é pensar por que ela continua apaixonante um século e meio depois da publicação do romance. Como explicar o amor pela personagem de Flaubert? O que dizer da paixão dos leitores, como eu, por uma adúltera sem ovários, posto que é uma personagem? Será que, inconscientemente, gostaríamos de fazer amor com ela? Transmitir nosso material genético para a posteridade junto com ela?  Se fosse isso, ponto para o romancista, que teria irritado o Ministério Público, iludido a seleção natural e despertado a atração sexual dos leitores por uma personagem. Mas não é por aí. O instrumental da biologia é insuficiente para explicar por que amamos Emma Bovary. Ela apaixona devido à escrita de Flaubert [6], que recorta e reorganiza a realidade, reposicionando e revalorizando objetos (leques, buques, frascos de perfume) e partes do corpo humano (mãos, unhas, pulsos). O romancista humaniza as coisas e coisifica as pessoas, exceto a personagem principal, que se destaca. Mas não é só isso. Emma Bovary apaixona, sobretudo, por suas apologias e rechaços: sim para os livros, sim para os sonhos, sim para a imaginação, sim para o amor; não à filha, não ao marido, não ao casamento, não à monogamia e, seguindo por esse caminho, não ao patriarcado. Ela afirma e recusa ao mesmo tempo e com a mesma radicalidade. Morreu com um “riso atroz, frenético, desesperado.” [7] Acrescento: desespero libertador dos que não esperam absolutamente nada.

 

Emma foi uma leitora que teve contato, pelos romances, com uma legião lírica de adúlteras. Ela certamente conhecia o destino reservado às senhoras que amam fora do casamento. Que seja difícil, quase impossível, amar dentro do casamento, não alivia a condenação dela e das demais. O destino de Emma Bovary é parecido com o de Ana Karenina e tantas que as precederam. Mas ela não se intimidou. Vargas Llosa [8]: “Emma quer gozar, não se conforma em reprimir em si essa profunda exigência sensual que Charles não consegue satisfazer porque nem sabe que existe.” Se é assim, a personagem de Flaubert pode ser considerada uma espécie de feminista avant la lettre. Além disso, ela foi liquidada por um agiota e pelo patriarcado, mas não costuma contar com a simpatia nem dos setores progressistas. Provavelmente porque sua recusa é demasiadamente radical: rebelou-se contra a maternidade (“como essa criança é feia” – murmurou ao lado da filha, que dormia), arruinou as finanças familiares, amou fora do casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”) [9].

 

Mas a leitora incansável devia morrer porque ousou ser ousada. Seus amantes seguiram suas vidas normalmente. A poligamia lhes era permitida. Eles dormem enquanto o corpo dela é velado: “Rodolphe, que para distrair-se andara o dia todo, dormia tranquilamente em seu castelo; e León, lá em Rouen dormia também.[10] Ela se despede da vida. Eles não se despedem dela.

 

A palavra adultério vem do latim adulterĭum, no sentido de traição, mas também como mudança e alteração. Na terceira parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada As palavras incompreendidas, Milan Kundera [11] discute a traição a partir da pintora Sabina, que é legitima integrante da legião lírica de mulheres adúlteras, uma espécie Madame Bovary da Boêmia: “A traição. Desde nossa infância, papai e o professor nos repetem que é a coisa mais abominável que se possa conceber. Mas o que é trair? Trair é sair da ordem. Trair é sair da ordem e partir para o desconhecido. Sabina não conhece nada mais belo do que partir para o desconhecido.” Contra Emma Bovary joga a moral cristã a ensinar que a carne não vale, que sexo é pecado, que a mulher deve ser submissa, que é preciso se arrepender. Ela trava um combate desigual contra a culpa, a submissão, o arrependimento e a repressão sexual. Que Emma tenha traído o marido porque sentiu comichão nos ovários é apenas uma parte da história. É preciso lembrar que ela foi uma leitora que disse não, que não cabia numa sociedade provinciana ao lado de um homem medíocre. Por tudo isso, vejo Emma Bovary para além dos ovários: é a grande adúltera no melhor sentido da palavra – como mudança e alteração, como quem sai da ordem e parte para o desconhecido. Evoé, Madame Bovary! 

 

Notas

[1] Mario Vargas Llosa. A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

[2] David P. Barash e Nanelle R. Barash. Os ovários de Mme. Bovary – um olhar darwiniano sobre literatura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

[3] As palavras do promotor que acusou Flaubert foram citadas por Vargas Llosa, na edição referenciada na nota 1.

[4] Gustave Flaubert. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM, 2016.

[5] O trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota anterior.

[6] Emma Bovary: a condenação perpétua

[7] O trecho está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[8] O trecho está no livro referenciado na nota 1.

[9] Os trechos entre aspas estão no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[10] O trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[11] Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das letras, 2008. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 SANTO

 

Um homem, afinal de contas, não devia conhecer tudo, sobressair-se em múltiplas atividades, iniciar a mulher nas energias da paixão, nos refinamentos da vida, em todos os mistérios? Mas aquele ali não lhe ensinava nada, não sabia nada, não desejava nada. Achava que era feliz; e ela o detestava por aquela calma tão assentada, por aquele peso sereno, pela própria alegria que ela lhe dava.

(Gustave Flaubert - Madame Bovary)

 

Estava no túnel de entrada para o segundo tempo da vida. Havia se acostumado com o substantivo masculino senhor. Em algum momento, talvez no terceiro quarto do primeiro tempo da vida passou, precocemente, a ser chamado de senhor. Não se incomodava. Era casado, tinha duas filhas e usava roupas discretas: sapatos e cintos da mesma cor, camisas por dentro da calça, blusas de lã com gola v. Mas, como registrou um escritor um pouco anterior ao nosso tempo: um dia surge o “por quê e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro.”

 

Era bancário. Fazia pagamentos e transferências. Os valores que movimentava na agência faltavam-lhe no bolso. Geralmente ficava sem dinheiro no meio do mês. Usava o cheque especial com a moderação permitida pela correlação de forças familiares. Na economia doméstica, ele era neoliberal, enquanto a mulher e as filhas eram neodesenvolvimentistas. Ele defendia o corte de gastos e o equilíbrio das contas. Elas exigiam a ampliação dos investimentos e das despesas sociais. Aquele lar era um bom exemplo de que as economias familiares não podem ser comparadas com as economias nacionais.

 

De manhã cedinho o cão o levava para passear. Às seis em ponto o animal corria e latia no quintal. Davam voltas no quarteirão até o cachorro se aliviar. Recolhia as fezes do animal e as depositava no cesto de lixo, devidamente embrulhadas. Daí seguiam para a padaria. Amarrava o cachorro e comprava pães para o café da manhã. Depois deixava as filhas no colégio e seguia para o banco. Às vezes fazia horas extras. Nesses dias ajudava a preparar o jantar, lavava a louça e dormia. Quando chegava no horário normal, aproveitava para assistir TV com a família. Não gostava de novelas, mas elas o faziam relaxar e esquecer o dia a dia, além de proporcionarem algum contato com a mulher e as filhas, que exigiam silêncio quando ele puxava assunto. Às vezes se repreendia por falar sempre na hora errada. Às vezes se retirava e ia para o quintal brincar com o cachorro, se acalmava e voltava. Era o melhor amigo do cão. Às vezes tentava colocar o animal dentro de casa, mas era repreendido pela esposa. Se pudesse, pelo menos, acompanhar a novela junto com o cão... Às vezes tinha vontade de assistir telejornais e programas esportivos, mas declinava para não contrariar a esposa e as filhas. Nem cogitava a possibilidade de assistir telejornais e programas esportivos no quarto, longe da mulher e das meninas.

 

Duas vezes por semana buscava as filhas no balé. Não se incomodava com o trânsito parado. Mas, nas apresentações semestrais, no ginásio do clube, esforçava-se para não cochilar, e aplaudia coreografias que não entendia. Pensava ser a desvantagem de ter filhas. Assistir um filho jogando futebol talvez fosse mais interessante – cogitava sem muita convicção. Queria tentar mais uma gravidez, quem sabe viesse um menino, mas a esposa não aceitava.

 

Aos sábados fazia pequenas manutenções na casa. Sempre sob supervisão crítica da esposa, que reclamava das limitações dele como reparador de interiores e exteriores. Ela dizia que qualquer homem da família dela faria o mesmo trabalho melhor e mais rápido. Ele trocava o telhado, pintava a fachada, limpava a caixa d’água, consertava o portão automático. À noite saía com a família. Deixava a mulher e as filhas escolherem o restaurante, em geral elas escolhiam algum shopping da cidade, para jantar e ir ao cinema. Ele não se incomodava com as filas e a lotação, nem se irritava com a dificuldade para estacionar. Elas desciam e faziam compras enquanto ele esperava aparecer alguma vaga no estacionamento, assim a mulher e as filhas aproveitavam melhor os passeios. Além de fazer compras, elas gostavam de filmes de ação. Ele não tinha preferências. Quando enjoava dos filmes que elas escolhiam, se escondia atrás dos óculos 3D e dormia. As filhas diziam que o pai vivia cansado, que só dormia. Ele concordava e ria: era verdade!

 

Aos domingos jogava futebol. Mais importante era papear com amigos depois da pelada. Mas tinha pouco tempo. Almoçava na casa da sogra. Era sempre o primeiro a deixar o clube. Saía antes de terminarem as primeiras cervejas. Porque começava a sentir dores nos joelhos e tinha que almoçar na sogra, pensou em largar o futebol. Apesar de não atrasar mais que quinze minutos, quando chegava na casa da sogra era lembrado de que o almoço já estava pronto, sendo interpelado por olhares inquisidores. Elas perguntavam por que ele continuava correndo atrás de bola, se já não tinha mais idade.

 

Nos almoços dominicais, depois do macarrão vinha um assado, frango ou carne de boi, mais raramente costelinhas de porco; depois do macarrão e do assado vinha a sobremesa, geralmente pudim de leite condensado, porque as meninas gostavam; depois da sobremesa vinha o café; depois do café vinha o dominó, que jogavam até anoitecer, deixava a sogra e as filhas ganharem. Alegrava-se com a alegria delas.

 

Nos aniversários era sempre ele que puxava a parte do “e pra fulana nada”, ao que as demais respondiam “tudo”, ele perguntava “então como é que é?”, e elas retrucavam com “é pique, é pique, é pique, é pique, é pique.” É graças a homens como ele que, em nenhuma mesa e em nenhum salão, nunca o “parabéns pra você” parou no meio por falta de alguém que emende o “e pra fulano nada?”.  Estranho acordo ontológico, mesmo sem nenhum contato prévio e sem nenhum treinamento, sempre haverá alguém para dizer “e pra fulano nada”. O que faz um homem saber que chegou a sua vez de ser protagonista no “parabéns pra você”? Seja como for, o fato é que tais homens são as vigas de sustentação das famílias.

 

Quando as filhas brigavam porque uma queria ir ao shopping e a outra à pizzaria, ou porque uma não queria que a outra usasse suas roupas, ou porque uma acusava a outra de bagunçar o quarto, ou porque uma dizia que a outra tinha comido todo pudim de leite condensado: ele intervinha. Explicava calmamente que elas eram irmãs e precisavam se entender, que uma tinha razão, mas a outra também, que o papai amava as duas igualmente. Não raro acontecia das irmãs, com apoio da mãe, se juntarem contra ele. As brigas nunca começavam com ele, mas costumavam se virar contra ele: como se o pai fosse culpado pelos desentendimentos e por todos os problemas da família e do mundo. Era como culpar um pernilongo por uma hemorragia. Ele desconhecia a comparação, mas certamente estaria disposto a aceitar que um pernilongo pode causar uma hemorragia, especialmente se fosse para acalmar os ânimos familiares. Ele era um pernilongo que nem picava nem fazia barulho, mas, às vezes, mulher e filhas tinham vontade de esmagá-lo com as mãos.

 

Vendeu um dos carros para bancar a lipoaspiração e o silicone da esposa. Ficou sem o veículo que usava para se locomover, mas a alegria da mulher compensou com vantagem o esforço para enfrentar o transporte público, mesmo nas épocas de chuva. O que era um sapato molhado durante todo o dia perto da alegria da esposa? O que eram duas horas chacoalhando nos coletivos perto da felicidade dela? Podia ouvir música pelo fone. Usava o tempo disponível para pensar na família e planejar o futuro.

 

Com a cintura fina, as pernas torneadas, os peitos duros e duas horas diárias de academia, a esposa passou a implicar com a barriga dele. Havia tantos homens que estavam melhor que ele, uns 60 só no clube – pelas contas dela. Um homem que não se cuida não merece uma mulher bem cuidada – dizia a esposa. Ele concordava e prometia se matricular na academia, ou, pelo menos, comprar uma bicicleta ergométrica e um banco de supino. Faltava-lhe tempo e energia. Mas sabia que ela tinha razão. Desconfiava, inclusive, que no clube havia mais de 60 homens que estavam melhor que ele, o número era arbitrário, bondade e complacência da esposa. Sentia ciúmes dos homens que estavam melhor que ele, especialmente aqueles 60 ou mais. Sonhar com o barulho de pernilongo pode significar que há pernilongos no quarto. Mas ele tinha certeza de que a mulher nem reparava nem se interessava por outros homens, se falava deles era para incentivá-lo a se cuidar. Estava realmente barrigudo e fora de forma. Ela tinha razão. Estava corretíssima.

 

É verdade que reparava em outras mulheres. Nutria algum interesse por dormir com outra mulher. Era o invariável desejo de variar. Inclusive porque a esposa foi a primeira e a única namorada dele. Mas o receio de magoar a mulher e as filhas o continha. O risco não compensava o investimento – pensava aquele trabalhador da área financeira. Sou casado, minha vida é boa, não posso arriscar – dizia para si próprio. Foi legítimo herdeiro da tradição inaugurada por Charles Bovary, apesar de não conhecer literatura nem ter tempo para livros. Enfim. O bovarismo – entendido como alteração do senso de realidade – foi pensado a partir de Emma Bovary, mas é preciso estudar o fenômeno também a partir de Charles Bovary.

 

Certa vez precisou renovar documentos e certidões. Pediu liberação do trabalho no período da manhã e agendou a visita ao posto de atendimento. Passeou com cão. Comprou os pães. Foi a pé renovar os documentos e as certidões. Era a primeira quebra de rotina em muitos anos. Constatou que as ruas em que crescera estavam lotadas de edifícios e automóveis. No posto de atendimento foi solicitado a confirmar as informações pessoais anotadas pela atendente. Data de nascimento: correto. Pai: correto. Mãe: correto. Estado civil: correto. Cor dos olhos: correto. Cabelos... Grisalhos? Foi quando surgiu-lhe o por quê. Sentiu, espantado, a passagem do tempo, como se tivesse ficado grisalho naquela manhã. Por que o tempo passa tão rápido? Convivia com o substantivo senhor, mas era a primeira vez que se deparava com o adjetivo grisalho. Tinha algumas dezenas de cabelos brancos, era fato, mas nunca havia sido chamado de grisalho.  


Publicado originalmente no Passa Palavra


BOZOCHANCHADA

 

Nas décadas de 1970 e 1980, o cinema brasileiro produziu filmes que ficaram conhecidos como pornochanchadas. Os títulos são sintomáticos: Os mansos; Memórias de um gigolô; Vítimas do prazer; A virgem e o machão; Caçadas eróticas; Sexo a domicílio; Senta no meu, que eu entro na tua; Ônibus da suruba. Chanchada tem a ver com humor ingênuo e popularesco. Pornochanchada eram comédias eróticas que exibiam corpos femininos com a regularidade necessária para prender a atenção do público. Eram tempos de ditadura empresarial-militar, censura, moralismo e repressão. Mas as pornochanchadas passavam nos cinemas e rivalizavam com os filmes estrangeiros. Faziam um sucesso razoável, talvez por serem uma espécie de espelho privilegiado da sociedade brasileira.

 

As comédias eróticas fazem uso de personagens caricatos: a virgem, a adúltera, o machão, o corno, o cafajeste, o canalha. É aqui que me ocorreu a comparação. Bolsonaro parece um personagem de pornochanchada. Daí o moralismo, a desfaçatez, a pilantragem, as idas e vindas, o entreguismo, a cara de pau. O próprio apelido, Bozo, além do jogo de palavras com Bolso, remete a um palhaço e a um tipo discutível de humor. Procurando na internet, percebi que a semelhança foi notada, também, por Xico Sá: “Bolsonaro é típico personagem da pornochanchada brasileira”. O cronista, como eu, deve ter pensado nos delegados, advogados e empresários canalhas das comédias eróticas. Bolsonaro é uma síntese de todos eles.

 

Mas como a vida supera a arte, o personagem caricato se tornou presidente do Brasil. Salvo engano meu, que não sou grande conhecedor de pornochanchadas, nenhum roteirista, nem o mais ousado, imaginou um personagem grotesco ocupando a presidência da república, inclusive porque a comédia erótica se tornaria uma tragédia generalizada.

 

No final dos anos 1980, com a crise do cinema brasileiro e a chegada da pornografia stricto sensu, as pornochanchadas perderam espaço. Mas a sociedade espelhada nas comédias eróticas pouco mudou, o que ajuda a explicar Bolsonaro, figura caricata que soube aproveitar as oportunidades que surgiram.  

 

As falas e posturas autoritárias, machistas, racistas, homofóbicas e moralistas de Bolsonaro parecem extraídas de uma pornochanchada. O que talvez explique por que os posicionamentos não chocam boa parte da sociedade brasileira, que pode não dizer exatamente as mesmas coisas, mas pensa parecido, porque foi educada e limitada pelo mesmo referencial estético e ideológico. Exemplo: a fixação bolsonarista por fezes, bundas e armas de fogo já estava no filme Um pistoleiro chamado Papaco. O que indica que as linhas gerais do bolsonarismo existiam na sociedade brasileira há tempos.

 

Para quem quiser ter uma ideia da comparação que tento estabelecer sem precisar assistir muitas pornochanchadas, recomendo o excelente Histórias que o nosso cinema (não) contava, da diretora Fernanda Pessoa, que montou o filme a partir de recortes extraídos de 27 comédia eróticas. Está tudo lá: o autoritarismo, o machismo, a homofobia, o entreguismo, o moralismo, o humor discutível e até o medo da esquerda e do socialismo.

 

Nos anos 1990 as pornochanchadas haviam perdido espaço e deixaram de ser filmadas, mas eram exibidas nas sessões eróticas da madrugada, na TV aberta. Muita gente cresceu assistindo os filmes com volume baixo, para não acordar os familiares. Às vezes perdendo trilhas sonoras interessantes. Algumas atrizes das novelas voltavam mais tarde, mais jovens e com menos roupa, nas sessões da madrugada, para delírio e deleite do público masculino. Tempos depois, personagens como Bolsonaro ocuparam o horário nobre e escancararam o que, nas pornochanchadas, pareciam ser possibilidades limitadas e residuais da sociedade brasileira. Bolsonaro atravessou a fronteira que os personagens das comédias eróticas se limitaram a tangenciar.

 

Como pontuou Thiago Canettieri, o bolsonarismo é, sobretudo, um projeto de destruição: de instituições e políticas públicas, de vidas e possibilidades. A destruição bolsonarista precisa ser compreendida como uma possibilidade do tempo presente, e não como um “desvio atávico na rota do progresso”. Bolsonaro “joga com a experiência cotidiana do colapso”, é um “realista do colapso”.

 

Na minha opinião, o bolsonarismo existe devido à herança escravista da sociedade brasileira, porque a ditadura empresarial-militar de 1964 não foi passada a limpo e por aí vai. Bolsonaro é um atavismo mobilizado para atuar em nome da destruição, um capitão do mato na pós-modernidade. Daí os traços de personagem de pornochanchada. Mas aqui talvez surja, se não a resposta para a tragicomédia bolsonarista, ao menos um caminho e uma possibilidade. Bolsonaro é escrachado, bisonho e trapalhão, atuou como personagem de comédia erótica, suas negociatas e destruições aparecerão cada vez mais quando ele estiver fora do governo, e não houver uma tropa de choque institucional com força para protegê-lo. Será uma possibilidade. Se a sociedade brasileira não passar o atavismo moralista e destrutivo a limpo, a Bozochanchada vai se repetir atualizada e piorada.

 

Bolsonaro destruiu o que pôde, inclusive vidas foram ceifadas antes e, principalmente, durante a pandemia de Covid-19. O que vai se fazer com ele fora do poder? Aceitar tudo como se não tivesse acontecido nada? Como se fosse uma sessão de pornochanchada? Como se tivesse sido uma brincadeira ou algo inevitável? Como se fosse um desvio perdoável? Esquecer com um grande acordo, à moda brasileira?

 

Imediatamente após a vitória de Lula, muita gente vestiu camisa vermelha e se manifestou contra Bolsonaro, o “assassino genocida” que governou o Brasil. Não eram só petistas e lulistas, nem eram apenas pessoas com ilusões no novo governo, era um sentimento entalado e desesperado (que não espera muita coisa de Lula e do PT, mas que quer se livrar definitivamente da tragicomédia bolsonarista). É essa energia que precisa ser fortalecida, sustentada e mobilizada para passar a Bozochanchada a limpo. É isso ou será um grande problema. Se a sociedade brasileira não enfrentar seus atavismos, outros personagens de pornochanchada serão mobilizados para promover a destruição. A chance é agora. O tempo é escasso. Se não, amanhã será pior!       


Publicado originalmente no Passa Palavra


PARA MANÉ, PARA DIDI, DE DIDI PARA JACOB E PIXINGUINHA

Era uma vez um menino criado sozinho numa pensão. A mãe tentava proteger o filho. O menino quase não saía, ia da casa para a escola e desta para aquela. Aos cinco anos fez a segunda voz durante o hino nacional, e ficou de castigo. Tinha um velocípede e um cão. Tinha também um vizinho cego, que tocava violino. O som escapava do quarto do cego para o resto da pensão, e encantava o menino. Então pediu e ganhou um violino, mas não se adaptou ao arco do instrumento e passou a tocar com grampos de cabelo. Resultado: estourou as cordas. Foi quando aconselharam o menino a tocar bandolim. Ganhou o instrumento e começou a recriar os sons que ouvia, hábito que cultivou por toda a vida.

Um dia ouviu o choro É do que Há, de Luiz Americano. Tinha 13 anos e uma vizinha que trabalhava numa gravadora. O chorinho escapou da vitrola para a janela e chegou até o menino. Começava uma paixão. Jacob se transformaria em defensor intransigente do choro: pesquisou, resgatou partituras, deixou um acervo vasto, tocou e divulgou a obra de chorões do passado, como Ernesto Nazareth entre outros. E foi além, com suas palhetadas peculiares Jacob traduziu a brasilidade para o bandolim. Virou Jacob do Bandolim.  

Tocou em rádios. Teve programas próprios. Gravou discos. Mas como música não paga o pão, por conselho do amigo Donga, prestou concurso público e se tornou escrevente juramentado. Jacob se dizia músico amador porque não vivia de música. Além de garantir o sustento da família, o serviço público lhe garantiu a independência estética, como não vivia de música, viveu para a música, sem se submeter às exigências castradoras da indústria do entretenimento. Se a questão fosse ser ou não ser comercial, certamente Jacob não seria, porque música, para ele, não era mercadoria.

Jacob estudou teoria musical e aprendeu a ler música. Chegou a gravar a suíte Retratos, de Radamés Gnatalli, que homenageia nomes chave da música brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Em carta a Radamés, Jacob registrou: “o prêmio de todo esse esforço foi maior que todos os aplausos recebidos em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfação! Este é que eu queria, que me faltava e que, secretamente, eu ambicionava há muitos anos […] Um sorriso bem demorado, em silêncio, olhos brilhando, tudo significando aprovação e sensação de desafogo por não haver se enganado. Valeu! Ora se valeu!”

Um dia ouviu o choro É do que Há, de Luiz Americano. Tinha 13 anos e uma vizinha que trabalhava numa gravadora. O chorinho escapou da vitrola para a janela e chegou até o menino. Começava uma paixão. Jacob se transformaria em defensor intransigente do choro: pesquisou, resgatou partituras, deixou um acervo vasto, tocou e divulgou a obra de chorões do passado, como Ernesto Nazareth entre outros. E foi além, com suas palhetadas peculiares Jacob traduziu a brasilidade para o bandolim. Virou Jacob do Bandolim.  

Tocou em rádios. Teve programas próprios. Gravou discos. Mas como música não paga o pão, por conselho do amigo Donga, prestou concurso público e se tornou escrevente juramentado. Jacob se dizia músico amador porque não vivia de música. Além de garantir o sustento da família, o serviço público lhe garantiu a independência estética, como não vivia de música, viveu para a música, sem se submeter às exigências castradoras da indústria do entretenimento. Se a questão fosse ser ou não ser comercial, certamente Jacob não seria, porque música, para ele, não era mercadoria.

Jacob estudou teoria musical e aprendeu a ler música. Chegou a gravar a suíte Retratos, de Radamés Gnatalli, que homenageia nomes chave da música brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Em carta a Radamés, Jacob registrou: “o prêmio de todo esse esforço foi maior que todos os aplausos recebidos em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfação! Este é que eu queria, que me faltava e que, secretamente, eu ambicionava há muitos anos […] Um sorriso bem demorado, em silêncio, olhos brilhando, tudo significando aprovação e sensação de desafogo por não haver se enganado. Valeu! Ora se valeu!”

As fronteiras entre a música dita erudita e a música dita popular são ilusórias. Uma não existe sem a outra e vice-versa. Uma se alimenta na outra, da outra e com a outra. São gêmeas. Se separadas, agonizam. Exemplificando. Radamés Gnatalli, compositor erudito, escreveu a suíte Retratos para bandolim e orquestra dialogando com compositores populares, como Pixinguinha, e foi gravado por um músico que transitava pelas duas tradições, Jacob do Bandolim. São esses diálogos e essas transições que alimentam a música.

Para criar é preciso se conceder liberdade de criação, o músico dito erudito que não se concede liberdade de criação será, na melhor das hipóteses, um interprete perfeito, mas incapaz de criar. A criação ocorre nas fronteiras e regiões de convergência entre popular e erudito (É Vila-Lobos recolhendo temas tradicionais, recriando cantigas de roda. É Radamés Gnatalli escrevendo uma suíte para bandolim, orquestra e conjunto regional. É Jacob do Bandolim estudando fanaticamente para tocar uma peça de Radamés Gnatalli. É o sorriso deste para aquele). Como se concedia liberdade para criar e por ser capaz de dialogar com a tradição, Jacob do Bandolim produziu uma obra grande numa vida curta. Em 51 anos de existência produziu choros fundamentais: Noites Cariocas, Assanhado, Vibrações, Cabuloso, Doce de Coco, Receita de Samba, Santa Morena, Remelexo… Completaria 100 anos em 2018. O que teria produzido se tivesse vivido mais tempo?

Defensor intransigente do choro, Jacob organizava saraus em que reunia a “fina flor” da música brasileira: Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Paulinho da Viola, Turíbio Santos, Canhoto da Paraíba. Quem atrapalhasse ou fizesse barulho era expulso. Bebidas alcoólicas eram proibidas (menos quando Pixinguinha comparecia). Jacob achava que o choro estava condenado, não se compreende choro sem quintal, e os quintais estão acabando, dizia. Eram tempos de tropicalismo, da jovem guarda e dos sambas de apartamento.   
    
Em 1967, Jacob enfartou no palco, estava nos primeiros acordes de Murmurando, e já havia tocado Lamento, de Pixinguinha. Em 1969, Jacob procurou Pixinguinha, que passava por dificuldades, queria gravar um disco só com músicas do mestre, para arrecadar grana para o amigo. Naquele dia lhe veio o enfarto fatal.

Jacob deixou esposa, filhos, amigos e uma obra fundamental. Resgatou e deu vida a peças de chorões do passado, imitou a sonoridade vocal e as palavras cantadas, criou novas possibilidades para o bandolim, musicou o voo da mosca e a dança do mágico das pernas tortas (A Ginga do Mané). 

Viajando. Nelson Rodrigues já havia cunhado a expressão “complexo de vira-lata” para definir o futebol brasileiro, tão vistoso quanto falho em momentos decisivos. A Bossa Nova estava nascendo, Jacob do Bandolim estava no auge e o Brasil estava na final da Copa do Mundo de 1958. Tinha um garoto prodígio de 17 anos (Pelé), o mágico de pernas tortas (Mané Garrincha), o meia do chute “folha seca” (Didi) e outros craques. Brasil x Suécia, na Suécia. Os donos da casa abrem o placar. 1 x  0. Preocupação. “Complexo de vira-latas” reencontrado. Lembrança do Maracanaço de 1950. Tudo ao mesmo tempo. Mas Didi caminha calmamente, apanha a bola no fundo do gol e a carrega debaixo do braço até o meio do campo, para reiniciar a partida, no caminho, conversa e orienta os jogadores. Resultado final: Brasil 5 x 2 Suécia. Brasil campeão do mundo pela primeira vez.

Comparando. Pela genialidade e pelo despojamento, Pixinguinha pode ser comparado a Garrincha, e vice-versa. Pela liderança e pela técnica, Jacob pode ser comparado a Didi, e vice-versa.

Perguntando e concluindo. A seleção brasileira seria campeã mundial se Didi não tivesse buscado a bola no fundo gol em 1958? Qual o tamanho da contribuição de Jacob do Bandolim para a música brasileira? Perguntas difíceis de responder. O importante é que: “Valeu! Ora se valeu!”   

Fonte: http://www.jacobdobandolim.com.br/

Notas soltas

 1)      O título deste texto saiu da canção O Futebol, de Chico Buarque, a tabelinha com Jacob e Pixinguinha fica por nossa conta.

 2)      Jacob compôs A Ginga do Mané, mas torcia para o Vasco, para seu time de coração criou o choro Vascaíno.

3) Para conhecer mais sobre Jacob do Bandolim: http://radiobatuta.com.br/documentario/vibracoes-o-som-de-jacob-do-bandolim/ e http://www.jacobdobandolim.com.br/ respectivamente: documentário radiofônico da Rádio Batuta e Instituto Jacob do Bandolim.

4) A Ginga do Mané tocada por Jacob do Bandolim: https://www.youtube.com/watch?v=zclOc7ePmWs

5) Imagens raras de Mané Garrincha mais os choros A Ginga do Mané (de Jacob do Bandolim) e 1 x 0 (de Pixinguinha):


 

FORÇAS PRODUTIVAS X RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

 

No prefácio de Contribuição à crítica da economia política está um parágrafo famoso e intenso [1], com um trecho que sintetiza, de certa forma, o pensamento marxista (do próprio Marx e não necessariamente dos marxistas que vieram depois): “Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social.”

 

Para iniciar é preciso definir, minimamente, o que se entende por forças produtivas e relações de produção. Forças produtivas: capacidade social de gerar valor própria da força de trabalho. Relações de produção: regime de propriedade, formas de organização do processo produtivo e de exploração da força de trabalho.

 

No modelo marxista o desenvolvimento das forças produtivas determina as relações de produção, até que estas entrem em contradição com aquelas, abrindo o tempo da revolução social. Marx deixou indicações sobre como pode se expressar a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas no capitalismo. São possibilidades que não se excluem e podem ocorrer simultaneamente:

 

- Queda tendencial da taxa de lucro causada pelo desenvolvimento tecnológico e o crescimento da composição orgânica do capital, movimento que intensifica a exploração e a luta de classe.

 

- Crises periódicas provocadas pela queda da taxa de lucro, acirrando a exploração e a luta de classes. Vale pontuar, para diferenciar do item anterior, que as taxas de lucro podem cair por outras razões que não o crescimento da composição orgânica do capital.

 

- Miséria relativa da classe trabalhadora, que apesar de consumir mais quantitativamente devido ao crescimento da produtividade, fica com parcelas decrescentes da riqueza social, expropriada em parcelas crescentes pela burguesia.

 

- Estranhamento provocado pela separação dos produtores em relação aos meios de produção, ou, dito de outra forma, pelo não reconhecimento dos trabalhadores nos produtos do trabalho, que lhes aparecem como entidades estranhas, hostis e que se voltam contra seus produtores.

 

Como não poderia deixar de ser, o pensamento de Marx provocou diversas interpretações e possibilidades. Cito algumas:

 

- Há quem enxergue uma inevitabilidade na revolução, como se o capitalismo fosse morrer de velho, sem a ação revolucionária da classe trabalhadora. Leitura apressada de um trecho presente no mesmo parágrafo de Marx, segundo o qual as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam condições para resolver antagonismo entre as classes sociais. Quem vai por este caminho esquece que criar condições não é necessariamente resolver, além de que a força de trabalho é elemento central das forças produtivas e, sendo assim, a contradição se dá, sobretudo, entre as relações de produção capitalistas e o proletariado. A força de trabalho é inseparável dos corpos dos trabalhadores, ou seja, o processo produtivo destrói quem trabalha. Basta pensar, por exemplo, nas doenças laborais e no desgaste causado pela intensificação do trabalho.

 

- Há quem considere que as forças produtivas não são neutras, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas reforça as relações de produção capitalistas. É uma possibilidade aparentemente atestada pela realidade. Mas, se vamos por este caminho, perde-se uma espécie de esteio econômico da revolução. É como se a humanidade se propusesse problemas que ela não necessariamente pode resolver, contrariando o que Marx registrou no prefácio citado. Exemplifico perguntando. Consigo pensar a superação do feudalismo a partir da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Na sociedade feudal se desenvolveram forças produtivas que se chocaram com as relações de produção. Mas o mesmo não ocorreu nem ocorrerá no capitalismo? Não há, no modo de produção capitalista, contradição (produtiva, do ponto de vista da produção social) entre forças produtivas e relações de produção?

 

- Há quem considere que a questão central é justamente conter o desenvolvimento das forças produtivas (como se fosse possível). Quem vai por este caminho pode chegar a qualquer ponto, só não deve se reivindicar marxista. Marx pensa a superação do capitalismo como o estabelecimento de relações de produção “novas e superiores”. Qualquer coisa diferente disso seria impensável. O capitalismo será superado pela positiva ou não será.

 

- Há quem considere que as forças produtivas deixaram de se desenvolver. É o que registrou Trotski no Programa de transição, no final dos anos 1930: “A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que possa ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material.” O argumento encaixa com o trecho de Marx, mas está de acordo com o que se observa no mundo real? É razoável afirmar que “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer” a partir do final dos anos 1930? Quem vai por este caminho precisa ignorar a energia nuclear, a nanotecnologia, a internet e as possibilidades produtivas derivadas dela. 

 

Antes de prosseguir vale lembrar que, para Marx, o modo de produção capitalista foi revolucionário porque permitiu um intenso desenvolvimento das forças produtivas. Olhando de hoje para o passado podemos pensar, por exemplo, na ampliação da produção agrícola, no aperfeiçoamento das formas de transporte e comunicação, no desenvolvimento da medicina e da ciência, no aumento da população e da expectativa de vida. Vão contra-argumentar, com razão, que a maioria desses desenvolvimentos não são isentos de contradições, sendo a principal a destruição ambiental que podem provocar. Mas não é este o ponto, por aqui. Interessa-me registrar que o desenvolvimento das forças produtivas – entendido como a capacidade social de produção – é inequívoco e razoavelmente constate no capitalismo. E isso ocorre por uma determinação do próprio modo de produção. Para sobreviver à concorrência, os capitalistas precisam explorar cada vez mais a capacidade de gerar valor da força de trabalho. Produzir mais com menos. O resultado final pode até ser a destruição do meio ambiente, é uma possibilidade, mas que não altera o fato de que as forças produtivas se desenvolvem cada vez mais. Também é verdade que no capitalismo se mantêm e se relacionam formas de exploração extensiva (mais-valia absoluta) e intensiva (mais-valia relativa), mas a dinâmica do sistema é determinada nos setores mais avançados tecnologicamente, ou seja, que exploram a mais-valia relativa.

 

A questão que sempre me intrigou passa por uma afirmação presente no mesmo trecho de Marx: “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter”. Se é assim, teria o modo de produção capitalista desenvolvido todas as forças produtivas que contém? A pergunta se justifica porque na sequência Marx afirma que “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na própria sociedade.

 

Está mais ou menos nesse ponto a questão que me intriga. A força de trabalho produz cada vez mais. Observam-se seguidas transformações nos métodos e técnicas produtivas que ampliam a capacidade social de produção. Ou, colocando em forma de pergunta: a capacidade de produção da força de trabalho atual é superior se comparada com os tempos de Marx? Se respondemos sim à questão formulada, surgem outras: é possível afirmar que as relações de produção (capitalistas) se tornaram “entraves” para o desenvolvimento das forças produtivas? Quais são e onde estão as condições materiais que permitem o estabelecimento de “relações de produção novas e superiores”?  

 

Mesmo considerando que a força de trabalho é o elemento central das forças produtivas, mesmo considerando que o desenvolvimento destas passa pela exploração intensificada daquela, o fato observável é que a capacidade social de produção continua a se desenvolver. Ou melhor e em forma de pergunta, há contradições entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas, mas estas se tornaram um “entrave” para aquelas?

 

Em Marx o revolucionário se confunde com o teórico, o que explica alguns limites e muitas possibilidades. Não há pensamento revolucionário sem prática revolucionária. Repetidas vezes Marx registrou que a revolução estava próxima. Dificilmente poderia seguir por outro caminho. Não se luta sem certezas. Marx era uma das principais expressões do movimento revolucionário de seu tempo, não ocuparia a mesma posição caso considerasse a revolução como uma possibilidade distante. Mas o fato é que o modo de produção capitalista se revolucionou repetidas vezes e adiou o socialismo para os séculos posteriores.

 

Considerando o grau de desenvolvimento das forças produtivas no tempo presente, partindo principalmente capacidade crescente de geração de valor da força de trabalho, é possível o estabelecimento revolucionário de outras relações de produção. Mas é razoável utilizar os adjetivos empregados por Marx? É possível pensar em relações de produção “novas e superiores”? Se sim, seguindo Marx e considerando que as “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na sociedade, é preciso indicar quais são e onde estão tais condições. E mais, é preciso pensar, a partir do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o que seriam relações de produção “novas e superiores”?

 

Enfim, mantenho uma certeza: a superação do capitalismo passa pelo estabelecimento revolucionário de relações de produção “novas e superiores”. Mas como? Se as forças produtivas não entram em contradição com as relações de produção, se não se tornam entraves produtivos: qual o limite do capital?

 

Notas

 

[1] Além do trecho citado, no mesmo parágrafo Marx registra:

 

[...] “O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” [...]

 

[...] “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.” [...]

 

[...] “As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esse antagonismo.” [...] 


Publicado originalmente no Passa Palavra


ATÉ SEMPRE, ALDIR!


Tomo a liberdade de dispensar as aspas, saberão reconhecer os versos das canções. Meu coração tropical está coberto de neve. Também eu bebo um pouquinho para ter argumento. Mesmo sentindo frio em minha alma, apesar do açoite contínuo da noite, bêbado, mas sem traje de luto e sem chapéu coco: arrebentar as correntes que envolvem o amanhã!

Morreu o compositor genial: Aldir Blanc. Boêmio. Vascaíno. Psiquiatra. Apaixonado pelo samba e pelo jazz. Homem grande em todos os sentidos: turrão, pavio curto, humano. Quase não saía de casa, mesmo assim foi vitimado pela Covid-19. Tinha a barba e a voz grossas. Não gostava de sol, ia à praia para beber cerveja. Subia o morro, seguia os blocos carnavalescos e frequentava centros espíritas pela batucada. Ainda garoto, construiu uma bateria de lata. Estudou medicina, tornou-se psiquiatra. Disse que a psiquiatria não ajudou o letrista, foi o contrário.      

Certamente está entre os maiores compositores da MPB: com Noel Rosa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme. Como, no Brasil, as fronteiras entre a canção, a poesia e a literatura são tênues: a morte coloca Aldir no devido time, com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e até Machado de Assis. Sim, o letrista da Zona Norte tem um quê do bruxo do Cosme Velho: o realismo, os detalhes, o band-aid no calcanhar, o dodói de Tolstói, a faca do crime, o ciúme que mata, o humor que redime, o banho de ervas, o nome da outra no pano vermelho, o cigarro molhado de chuva, a goiabada cascão no sonho do boia-fria, a toalha molhada no chão, os fios de barba na pia, os falsos votos de feliz casamento, a curiosidade pelos rancores siameses e pela cruel indiferença.

Não há, na MPB, verso mais machadiano do que: eu aprendi que a alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado. Três anos vivendo juntos. Ele é Vasco doente, ela grita Mengo no segundo gol do Zico. Não há, na MPB, crônica mais machadiana do que A Nível de: Wanderley e Odilon, nomes que Aldir Blanc sacou na onomatopéia de João Bosco, são muito unidos, vão juntos ao Maracanã; Yolanda e Adelina, as esposas, são amigas e se fazem companhia; até que se estrutura um troca-troca; mulher com mulher, homem com homem; só que o casamento continua a mesma bosta.

Na morte estúpida do artista, vê-se um paralelo fúnebre com a obra do mesmo. São os becos sem saída do tempo presente. Em vez de reza uma praga de alguém. Não a bala com a bala, nem a faca com a faca, nem o corpo estendido no chão. Mas os doentes sem leito, a falta de respiradores, os corpos nos corredores, as covas coletivas, as subnotificações. É a morte do malandro, da enfermeira do Salgado Filho, do latin lover, das Marias, das Clarices e até dos compositores geniais. "E daí? Eu não sou coveiro" – diz o presidente. O Brazil não merece o Brasil. O Brazil está matando o Brasil. Do Brasil S.O.S ao Brasil – diria Aldir.  

Os heróis do bem – cidadãos de bem? – levando a paz na ponta dos aríetes. A conversão dos infiéis. A nudez sem véus diante da Santa Inquisição. As carreatas da morte. Os burgueses dentro dos carros, exigindo sacrifícios dos trabalhadores. Empilhados nos hospitais: pais-de-santo, paus-de-arara, passistas, flagelados, balconistas, palhaços, marcianos, canibais, pirados dançando, todos dormindo de olhos abertos.

Aldir Blanc teve dezenas de parceiros: Paulo César Pinheiro, Moacyr Luz, Guinga, João Bosco. Com este compôs O Bêbado e a Equilibrista, que era uma homenagem a Chaplin e, com Elis Regina, virou o hino da anistia. Existe figura mais chapliniana do que o exilado político? – perguntou o compositor.

Adeus, Aldir. O tempo adormece as paixões, você as liberta. Ele se rói com inveja. Você já pode nos esquecer, nós nunca lhe esqueceremos. 



(Texto publicado originalmente na Revista Aroeira)