ÁGUA PRETA
Era
garoto. Sonhava com um rio que corria atrás do meu quarto. Mas da janela se viam
apenas sobrados. Aquele rio entrou na minha imaginação pelas histórias que eu
ouvia dos antigos. Eram velhos com diversos sotaques, alguns estrangeiros, todos
saudosos. Eu gostava de ouvir. Não apenas as histórias. Às vezes ouvia os homens.
Percebia a alegria deles. Contentava-me com a alegria deles e escutava. Apenas
ouvia. Às vezes prestando mais atenção nos rostos – nos músculos da face, nas
dentaduras, nas rugas – do que nas histórias contadas. Olhar nos olhos motivava
os homens a falar. Eles sequer faziam perguntas para certificar que eu estava
atento, apenas contavam. Alegravam-se com a companhia de um menino interessado
no que eles diziam. Como eu não tinha nada para contar, apenas ouvia e,
eventualmente, perguntava. Principalmente quando as histórias eram repetidas. Perguntava
para identificar variações ou, como diria o poeta Manoel de Barros:
invenções. Mas não questionava nada, só ouvia e prestava atenção nas curvas das
histórias: que é quando se avistam as invenções.
Como
disse, o rio entrou na minha imaginação a partir das histórias que eu ouvia dos
antigos. Imaginava o rio com pedras e água corrente, com margens largas em que se
podia brincar. As crianças que brincavam ali eram os velhos contadores de
histórias. Eu me esforçava para fazer o tempo correr para trás e imaginá-los
garotos. Na minha fantasia havia peixes, pássaros e outros animais no rio e
perto dele. Isso eu imaginava porque alguns diziam ter caçado na região. Não me
lembro dos antigos chamando o rio pelo nome, o que provavelmente tem relação
com a canalização, o enterro e o esquecimento das águas. Como ninguém chamava o
rio pelo nome, tudo era meio onírico. Mas, pensando bem, os indícios da
presença do rio estavam lá, mas só que percebi tempos depois. Havia as
enchentes que colocavam carros para boiar. Para se referir a uma rua que passava
sobre o rio os antigos diziam “a pontinha”, “perto da pontinha”, “lá na pontinha”
... Como já estava tudo concretado e coberto, eu não associava uma coisa com a
outra. Hoje penso como devia ser interessante a “pontinha”. Espiar as águas
passando embaixo da “pontinha”... Namorar na “pontinha”... “Contemplar estrelas
em cima da “pontinha”...
Tempos
depois eu era homem feito e houve uma grande seca. Foi preciso escavar e buscar
água no subsolo (“volume morto”) do sistema Cantareira. Matar a sede com água
do “volume morto” era estranho. Alguns diziam sentir gosto de barro. Eu, que
não tenho paladar aguçado, não me incomodava, inclusive porque o barro me atrai.
O rádio e a televisão atualizavam diariamente a capacidade dos rios e represas,
falavam também sobre a previsão para as chuvas. Ficamos sabendo que a maior
parte da água consumida na cidade de São Paulo vem do sul de Minas Gerais. Para
se ter água por aqui é preciso chover por lá. Ficamos sabendo, também, que o
maior sistema de captação e tratamento de água da grande São Paulo é o
Cantareira. Cantareira é uma palavra tupi que tem a ver com cântaros e
armazenamento, além de nomear a serra verde que emoldura do concreto de São
Paulo. No tempo da grande seca os rios viraram assunto popular. Havia o Tietê,
o Pinheiros e o Tamanduateí que tinham sido transformados em canais de esgoto a
céu aberto, mas e os outros? E aqueles fluxos de água que desaguavam nos
grandes rios de São Paulo? Que formam o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí? Passando
nas autopistas que margeiam os grandes rios de São Paulo se viam as
desembocaduras de pequenos cursos de água, alguns tinham até nome gravado no
concreto. Não podiam ser apenas canais de esgoto.
Foi
no tempo da grande seca que muita gente descobriu que os canais que deságuam nos
grandes rios de São Paulo são, na verdade, cursos de água que foram enterrados
e transformados em tubulações de esgoto. Há centenas de córregos e pequenos rios
por baixo da cidade e, se é assim, por que faltava água nas torneiras? Foi
quando desconfiei que sim, havia um rio atrás do meu quarto. Não fica
exatamente embaixo da janela, mas, se não houvesse tantas construções, seria
visível do meu quarto. Comecei a busca por aquele rio, em verdade um córrego, o
Água Preta. Consultei os mais velhos, poucos do meu tempo de garoto estavam
vivos, mas, mesmo assim, colhi informações importantes. Descobri mais ou menos
onde nasciam e por onde corriam as águas pretas. Daí por diante bastava
caminhar e imaginar. Repetidas vezes percorri o caminho das águas pretas, do
fim para o começo, do começo para fim, trechos intermediários: sempre
imaginando como era o local nos primórdios do bairro e da cidade.
Não
fui o único a buscar a água preta. Outros – mais organizados e mais práticos –
fizeram o que eu gostaria de ter feito: abriram as nascentes do córrego.
Construíram pequenos lagos em praças, colocaram peixes, numa viela instalaram
uma torneira que serve principalmente para quem mora nas ruas. Hoje é possível
tocar a água preta. A água faltava nas torneiras das casas, mas corria nas
nascentes libertadas. Quem abriu as nascentes do córrego da Água Preta? Teriam
sido garotos que cresceram ouvindo histórias dos antigos, como eu? Garotos que
tinham o rio atrás do quarto?
Com
o tempo, algumas informações e caminhadas – há coisas que só conhece quem anda
a pé – fui percebendo resquícios dos rios canalizados de São Paulo. Escadões,
vielas e canteiros no centro de avenidas costumam esconder rios e nascentes. Quem
caminha por esses locais se depara com umidade no concreto, mesmo em dias
secos: é um indício da presença das águas. Aí basta parar, contemplar e
imaginar a passagem dos rios e córregos. No caso do Água Preta, além da umidade
perene, perto das nascentes; é possível observar a passagem das águas em dois pontos
em que elas correm por baixo de grades, para que saiam sem causar maiores
estragos nos dias de chuva. Às vezes eu vou até aquelas grades e fico
observando a passagem das águas. Deve ser uma cena estranha. Os antigos
observavam as águas pretas de cima da “pontinha”. Eu observo as águas pretas de
cima de grades. “O que ele está procurando no esgoto” – deve pensar quem presencia
a cena.
Às
vezes brinco dizendo que, se um dia for a uma sessão de psicanálise, quando me
pedirem para contar por que estou ali, vou explicar que nasci próximo a um
córrego canalizado, que não cheguei a conhecer, mas percorre minha imaginação
desde pequeno, córrego que em dois pontos pode ser observado debaixo de grades.
Sinto que tenho alguma coisa a ver com o Água Preta. Também fui canalizado, também
sou subterrâneo, também sou ignorado, também percorro da Vila Anglo e,
sobretudo, queria transbordar. É porque me sinto um pouco como aquele rio que
passei a ter outra relação com os transbordamentos dele, que é quando a água
preta se revolta e retoma territórios. Não digo que me alegro com as enchentes,
mas confesso que mais de uma vez saí caminhando na chuva para ver as águas tomando
as ruas.
Não
cheguei a fazer sessões de psicanálise para dizer que nasci perto de um rio
canalizado, que só conheci depois de homem feito; mas quando acordo angustiado,
antes de trabalhar eu caminho até as nascentes abertas do Água Preta. Tocar as
águas geladas revigora. Só que observar o córrego nascendo livre e correndo
para baixo do asfalto é triste. O percurso de quase cinco quilômetros por
dentro da tubulação, junto com o esgoto, lembra a minha vida profissional. Como
eu disse, me sinto meio canalizado. Daí a alegria com os transbordamentos do
Água Preta.
Não
cheguei a fazer sessões de psicanálise, mas quando fizer vou comentar que os grandes
escritores têm suas cidades, mas também seus rios. Penso no Paraná e em
Domingos Pellegrini [1]. Penso no Guaíba e em Moacy Scliar [2]. Eu
que sou um escritor canalizado, não tenho um rio para chamar de meu, apesar de viver
entre o Pinheiros e o Tietê, mas me sinto como o Água Preta. O córrego é um
irmão para mim.
Depois
que descobri nascentes e trilhas do Água Preta, conheci o seu córrego irmão, o
Água Branca, que desce por baixo da avenida Sumaré. Curiosidade: as águas
brancas correm no bairro nobre, as águas pretas correm no bairro em que moravam
os operários. Água Preta e Água Branca foram canalizados e deságuam no Tietê,
depois de passarem perto do estádio do Palmeiras. É exatamente naquela região
que as águas se revoltam, transbordam e retomam territórios. Também naquela
região fica o Sesc Pompéia. Há quem diga que o riacho preto que decorra um dos
saguões do Sesc Pompéia é uma referência ao Água Preta – essa eu já não sei
dizer se li em algum lugar, se ouvi dos antigos, ou se inventei, mas não importa.
É
também perto do Sesc Pompéia que fica um dos pontos em que é possível ver as
águas pretas correndo debaixo de grades. Ao lado há uma placa em que se lê: “Atenção
sr. Motorista, em caso de chuva retire seu veículo. Perigo de enchente.” Ali as
águas às vezes escapam das grades e carregam tudo. Ali costumo observar a
passagem do córrego, como se fosse uma “pontinha”.
Foi
num dia qualquer, caminhei e parei sobre as grades que cobrem as águas pretas
perto do Sesc Pompéia, a minha “pontinha”. Fiquei observando. Mas naquele dia a
minha presença atraiu um menino, que se aproximou e perguntou o que eu estava fazendo.
Foi a primeira vez que me abordaram, apesar de ser comum eu parar ali para ver
as águas pretas. Disse que estava observando um rio. Ele ficou intrigado e
desconfiou. “Um rio?” Contei a história do Água Preta. Onde nascia. Por onde
passava. As vielas e os escadões que escondiam nascentes. A canalização. Chamei
o córrego pelo nome. Mostrei a placa que prevenia sobre enchentes. Se aquele
local alagava era porque havia um rio. Ele não tinha visto alagamentos por ali?
Sim, tinha visto. Morava na região e sabia que devia evitar aquele local em
dias de chuva. É a “revolta das águas” – comentei. Isso de dizer a “revolta das
águas” cativou de vez o menino, que retrucou com uma pergunta. “Mas quem fez
isso com o rio?” Os idiotas que administram a cidade e fazem qualquer coisa
para agradar quem tem dinheiro, mesmo ferrando todos os outros – respondi. “Como
assim?” – perguntou o menino. Expliquei que córregos e rios de São Paulo foram
canalizados e enterrados para abrir espaço para construções, bastava ver as
marginais do Tietê e do Pinheiros. Colocaram prédios e avenidas nas margens dos
rios. “Não viu o que fizeram nas marginais?” – questionei. Não era exatamente o
caso do Água Preta, mas servia como exemplo. Foi quando ele me perguntou mais
ou menos o que eu devo ter perguntado quando era garoto: “Você brincou nesse
rio?” Respirei fundo. Lembrei do poeta Manoel de Barros. Não podia dizer a
verdade. Não seria uma mentira, seria uma invenção. Por que não? Sim, tinha
brincado nas margens do Água Preta. A gente empinava pipa ali. Eu, o Pagu, o Gabiru
e o Gigio. No improviso, coloquei meus companheiros de infância na história
inventada. Gostei. Segui inventando. A gente jogava bola e tomava banho no rio
(Dava para se banhar no Água Preta? Na história inventada, por que não?). A
gente pulava de cima da “pontinha”. Ele gostou. Deve ter sentido certa inveja.
Mas aí veio a pergunta dura e inesperada: “Mas então por que você deixou fazer
o que fizeram com o rio? Como fazemos para o rio voltar a ser o que era?” Respirei
fundo. Cocei a cabeça. Coloquei mais uma curva na história inventada. “É que eu
estava morando no exterior quando canalizaram o rio (eu que nunca fui para o
exterior nem morei fora do bairro), ou não teriam feito, não teria deixado.”
Ele respondeu com mais uma pergunta difícil: “Como fazer para o rio voltar a
ser o que era?” Minha resposta: “Bem, teríamos que reconstruir a cidade e a
vida. Não é fácil, mas é possível e necessário. Tudo começa por jamais esquecer
que aqui corre um córrego chamado Água Preta.” Ele devia contar para os amigos.
Precisava imaginar como era antes da canalização e como deveria ser depois. Arrematei
falando sobre as nascentes libertadas. Era só ir na travessa Roque Adóglio, ou nas
praças Homero Silva e Diogo Amaral (também conhecida como praça dos Cabritos), que
daria para ver e tocar as águas pretas. “Não é longe, né? Podemos ir agora?” –
perguntou. “Hoje não” – respondi satisfeito por perceber que havia cativado o
menino. Outro dia sim. Primeiro pede para os seus pais.
Quando
lembro do papo com o menino sobre o Água Preta, penso que o poeta Manoel de
Barros era bom nos versos e nas contas: realmente só dez por cento é mentira, o
resto é invenção. Que triste seria a vida se não fosse assim. Que triste será a
vida quando não houver meninos dispostos a ouvir e velhos dispostos a inventar.
Quando vejo pessoas atoladas em telefones celulares, penso que em breve não
haverá espaço para muita coisa: nem histórias, nem invenções. Mas aí já é outro
conto. Rever meus companheiros de infância na beira do Água Preta – na minha
história inventada – foi mágico. Eles se alegrariam com a minha invenção? Continuariam
a história? Onde estão meus companheiros de infância? Também foi mágico me ver
refletido no menino que perguntava. Compartilhamos a mesma curiosidade e a
mesma indignação. Nesse ponto envelhecer é uma vantagem, se não perdemos a
curiosidade e a indignação. Sobretudo, foi mágico rever os antigos em mim. Sou
um velho – curioso e indignado – que inventa histórias, como os que conheci. E
eu pensava que nunca teria nada para contar. O tempo passa e a gente acumula
histórias. O resto é invenção.
Notas
[1]
Domingos
Pellegrini. A sereia do rio Paraná. In: Maria José Silveira (org). Entre
rios. São Paulo: FTD, 2014.
[2] Moacyr Scliar. Os piratas do Guaíba. In: Maria José Silveira (org). Entre rios. São Paulo: FTD, 2014.
Publicado originalmente no Passa Palavra