À Um Samba Descompassado

Ao amigo JC

Samba Introdutório 

Com todo o respeito ao Ensaio e um pedido de desculpas antecipado a ele, meus argumentos emprestarão sua forma livre, menos no que a forma inclua de fantasia e vácuas opiniões sem rigor que no que tem de espaço real para exercício da livre liberdade crítica. Como já corri riscos desde o início, aceito o risco da forma. Assumi-la é também uma maneira de dizer que não quero absolutizar idéias para mim discutíveis, pois sou alguém de poucas certezas; por isso desfaço no princípio palavras posteriores que eventualmente venham indicar essa idéia.


Gostaria que soubesse que tentarei me dirigir a um amigo militante[1], em oposição ao camarada sem adjetivos. Vem logo à cabeça a idéia geral de que os militantes dizem não separar uma coisa da outra, mas me amparo, para essa breve separação, em sua razão para responder, quando afirma fazer o combate ao pensamento reacionário, por uma necessidade exclusiva da condição de militante.

Che Guevara se recusou a atirar num caminhão com soldados inimigos porque esses dormiam. Condição exclusiva de Ernesto, sugerindo saber que quando sonhamos nada do que somos justifica onde estamos. Pudesse o sonho ser nossa conclusão dialética, como sugeriu André Breton.

Ao abusar do termo “escolha” em meu último texto, não pretendi afirmar que tudo se trata de mera escolha, como quem escolhe uma roupa no guarda-roupas. É uma licença para efeito do diálogo e de exposição da idéia, e parti do pressuposto unilateral de que haveria compreensão mútua quanto a isso. Mas percebo que, assim como no uso do verbo “acusar” (acusei-o de acusar Kundera) e do substantivo “chantagem”, não fui feliz. Nesse caso peço desculpas e retiro esses dois últimos termos, não foi uma intenção consciente de usá-los em referência a você, inclusive porque não teria razão para fazê-lo, talvez por isso mesmo não tenha particularizado o caso quando falei sobre a ‘chantagem’. Há ainda uma outra colocação em que digo “Por que é que não se pode fazer essa crítica à esquerda sem ser de direita?”, me referindo à atribuição do tipo de crítica de Kundera à direita, e respondo com “Porque ela, a crítica, é radical demais e quase não permite uma fuga honesta?”, e foi uma forma inadequada de se tratar porque sugere e implica valor pejorativo ao que não posso saber. Registro mais uma vez minhas desculpas. Mas me aproveito das devidas e justas desculpas para uma explicação mínima, forma de mantê-las sem retirar a idéia sobre a ‘chantagem’: ao afirmar que “a exigência de compromisso ético e engajamento é a moral secular que ocupa o trono de Cristo como redentor do pecado original. Mudam-se os deuses mas a moral e o mecanismo da chantagem são os mesmos”, pretendi estabelecer o princípio de identidade que vejo entre Deus e a moral secular a que me referi e sua reverberação no acordo categórico com o ser, a frase se insere num contexto amplo e geral daquilo que vejo como fato, se acaso discordar dessa generalização basta apontar onde está meu erro na comparação, não porei absolutamente nenhum obstáculo para retirá-la em sua totalidade, assim como fiz em sua particularidade. Nota: ao criticar o que vejo como princípio de identidade não deixo de reconhecer que há movimentos políticos que me parecem muito menos intransigentes sobre essa questão, ao menos e exclusivamente, os zapatistas (essa é uma impressão que tive), e talvez por isso eles resistam mais à insinuação kitsch.

Não me detive tanto na estética do livro porque, ao comentar seu primeiro texto, eu não tinha nenhuma intenção exclusiva a priori, meu comentário veio como conseqüência do seu, e o que me fez escrever algumas linhas foi mesmo o ponto de vista político que percorre o corpo de seu texto, sobretudo nas “palavras finais” onde a política é deliberadamente explícita. Eu havia lido o livro, creio que um pouco antes de você, ou simultaneamente, e vinha pensando sempre nele, e com o tema universal da política, em suas amplas manifestações, era quase inevitável não refletir politicamente. E sua simples continuidade no tema, com a publicação dos textos em seu blog, justificou para mim uma aceitação.

A política deve se situar em posição mais humilde sempre que o objeto não for político, e a equação contrária é igualmente verdadeira. No caso específico da obra de Kundera em questão a política está para a estética como o oxigênio está para o fogo.

Não sei agora se fiz bem ou mal ao usar de forma explícita a ‘primeira pessoa’ em meu último texto, mas nós somos os interlocutores um do outro, então pensei não ser nada demais. Evitar o embate direto até quando ele é direto nos colocaria no caminho cujo fim é a empulhação do pronome de tratamento ‘vossa excelência’, de uso e abuso naquelas instâncias políticas que escondem a verdade atrás do discurso. Porque não consagrar a nós mesmos algum desprezo em nome das coisas essenciais de se dizer?

Notas e Memórias

Anos atrás, li a obra de Dostoiévski “Notas do Subsolo”, ou “Memórias do Subsolo”, depende da tradução, e comentava com um amigo sobre as coisas que dizia o narrador-personagem, o tal habitante do subsolo social. Coisas como “quem vive depois dos 40 ou é um tolo ou é canalha”, “vou dizer isso na cara do primeiro ancião que eu ver pela frente” e “um homem inteligente do século XIX precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura sem caráter”, e outras coisas das quais não me lembro mas cuja despudorada liberdade de pensamento choca e envergonha a estabilidade moral e cívica das criaturas. Comentava eu com esse amigo se nós por acaso iríamos tão longe, porque se fôssemos teríamos de ser cruéis, inclusive com nós mesmos. Ele respondeu que nas instâncias do pensamento livre de mordaças não tínhamos mesmo “caráter”, falássemos despudoradamente o que pensávamos da vida e sua mediocridade e a censura ética nos isolaria como praga para evitar a metástase. Nosso pensamento deveria se permitir confrontar tudo e a nós mesmos com toda a liberdade, de outra maneira seríamos umas freiras cativas de convento.

É, antes de mais nada, nesse sentido que estabeleço uma ausência de fronteiras para a consciência, uma ‘falta de compromisso moral e ético’ de qualquer natureza. Como afirmei antes, se temos severos impedimentos numa vida em sociedade, disso não deriva necessariamente uma condição castradora do pensamento crítico, até porque estes, para existir, não prescindem de seu objeto crítico.
                                  
A Política da Crítica X A Crítica da Política

Ao contrário do que pensa, Kundera joga luz nos esforços de compreensão de certos fenômenos políticos. Ter feito isso num ensaio-romance não diminui sua importância.

É fato que o termo ‘politização’ se aplica à consciência política, à consciência do sujeito de si e de sua realidade temporal e histórica determinadas por relações sociais, opondo-se à sua antípoda, a ‘consciência alienada’ que desconhece tudo sobre sua condição. Mas o que é, afinal, ser politizado? É alguém que, de posse dessa consciência política, age para a transformação da vida? Se o mesmo cidadão não agisse, seria despolitizado? Onde se localiza, em cada um, a consciência política? Na consciência crítica ou na ação? Ou somente nos dois? Quando faço a crítica à sua afirmação de que Kundera, ao criticar as organizações políticas como produtoras do kitsch, despolitiza, quero apontar o que sua concepção tem, em minha opinião, de parcial. A consciência politizada não é monopólio exclusivo. 

Se kundera percebe e aponta esse aspecto político é exatamente porque é uma consciência politizada, e para fazê-lo somente permitindo à crítica uma vida independente. Desenvolver um pensamento político de combate e resistência ao capital fazendo crer que tudo o que se opõe a esse pensamento é obra do inimigo, da direita e dos reacionários, é o malogro de uma dialética que desemboca no kitsch. Não se deve confundir uma coisa com outra para, afinal, não se ouvir mais que “numa guerra a primeira vítima é sempre a verdade”.

Como pretender que a ação da crítica política, aponte ela para que lado for, promova despolitização, se é ela própria o leitmotiv político? Dizer que é porque ela enfraquece os movimentos e organizações políticas é o mesmo que responder “porque sim”, e a conseqüência é destituí-la de independência e atribuir a ela um valor que é seu. A isso eu chamaria de “ressignificar” a crítica, expropriando-a de sua natural posição de observadora de seu objeto para recolocá-la como ‘crítica observada por seu objeto’. Uma espécie de processo alquímico que transmuta a crítica em objeto e o objeto em crítica. Curiosamente lia eu hoje um artigo de Ricardo Musse, professor da USP, sobre Adorno e sua recusa do modelo expositivo dos sistemas filosóficos, recusando neles “o idealismo implícito no propósito de construir uma totalidade para a qual nada permanece exterior e todo e qualquer conteúdo se volatiza em pensamentos”. Diz Musse: “o sistema não pode ser o norte da teoria, precisamente porque é práxis, porque é nessa direção que se move o mundo administrado. Se a reflexão pretende ir além daquilo que está meramente presente, que é dado, se tiver o seu impulso na crítica, na resistência, na negatividade, ela deve ter a liberdade de interpretar os fenômenos de forma desarmada. Ela deve ser, em suma, antissistêmica [os itálicos são de Adorno]”.

Se eu acaso participasse do que enxergo como forma restritiva de raciocínio, poderia perguntar a você o que perguntou a mim: a quem interessa esse ‘mito insensato’, o de pretender que a crítica de Kundera promove a despolitização? Eu responderia que é à dona da situação e da ordem política, a Direita. Me parece então que dizer que Kundera, quando ataca a organização política como produtora do ideal estético Kitsch, promove despolitização, é um grande equívoco, e pior ainda: na exata medida em que o establishment se nutre da ordem política, é funcional da direita. Despolitizar não é falar mal da política e de problemas intrínsecos a esta, é acabar por promover nas consciências que criticar a política é ‘kitsch’ e de direita.

Ok, você enxerga o problema que é o ‘x’ da questão: criticar a organização política como produtora do kitsh enfraquece a possibilidade de organização dos povos. Acontece que sua revolta contra essa constatação, por seu grande valor de uso à direita, o faz eliminar ou abrandar automaticamente a crítica alegando que quem a profere é reacionário ou de direita, como se o problema deixasse de existir só porque se quer ou só porque a direita dele se serve. Por essa razão afirmei que tem uma idéia instrumentalizada de ‘politização’, pois a pensa de forma enviesada, e como conseqüência joga para fora das bordas do seu pensamento um grave problema apresentado, condição para manter uma viabilidade de ação prática.

Sei que dirá que o que faz é exatamente a crítica política. Perfeito, só que é uma crítica política enviesada, partidária, já que parte de um princípio determinado e serve antes de tudo a uma razão anterior cujas formas políticas não podem, por essa razão, estar sujeitas à percepção crítica. A crítica então parte de um entendimento que, para sua própria formulação, necessitou do pensamento crítico, mas depois disso se fez veredicto e o critério de verdade passou a estar definido não mais pela mobilidade crítica, mas por um julgamento anterior que encapsulou a crítica. Se o ponto de apoio da crítica antes foi a crítica radical ao estado burguês, agora é a defesa contra qualquer presença da crítica em sua esfera.

Seu equívoco é programático, por isso pouca serventia teria aqui o eventual apontamento de que isso vale para todo ponto de vista (de qualquer maneira absolutamente correto). Por isso não consegue enxergar que Kundera desarma dogmas políticos. É essa limitação que aponto e que, a meu ver, o faz perceber a politização como crítica exclusivamente partidária, matando a si antes mesmo de combater o inimigo. Corrija essa impressão se eu estiver enganado.

                          A Humildade da Crítica X A Crítica da Humildade

Mas eu não acho que você é de direita apesar disso, pelo contrário. Uma crítica às posturas no que elas têm de inevitável e condicionante deve se manter bem colocada dentro desses limites, pois essa é uma condição geral do ser e uma crítica que invadisse a esfera moral sem que mudasse ela mesma de natureza se esvaziaria no que seu objeto tem de inultrapassável, inclusive ao agente crítico. Ela se adequaria hipotética e perfeitamente a um posicionamento deliberado e consciente de sua parte no congraçamento com o ‘status quo’, porém sei que é exatamente o contrário. Minha consciência sabe que não se impõem limites à crítica a não ser aqueles que sua própria natureza produz. É uma relação dialética entre a humildade da crítica e a crítica da humildade.

É pouco importante saber da relatividade em que nos coloca as premissas das quais partimos, pois existem razões até mesmo para as premissas. As premissas das premissas. E são essas razões que também podem ser discutidas. Para mim isso não significa necessariamente que, ao encontrar o que talvez se nos apresente como problemas dessas razões, devamos automaticamente abandonar nossos pontos de vista, sabemos que isso seria qualquer coisa mais complexa por invadir a sala de estar da nossa razão de viver e morrer e todas as vaidades humanas, esses pequenos caprichos a sustentarem o bem e o mal. Mas sem dúvida que serve para recolocar nossas razões em outra categoria, para um estar atento o tempo todo a determinado problema inerente às razões da vida. Os problemas inerentes ao ‘devir’, à existência, existem (o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável), e como conseqüência os problemas intrínsecos às atividades humanas. O simples questionar da existência, de nossa origem e de nosso pálido e magro destino, já valeu ao homem angústias ancestrais. O homem que caiu em desespero ao constatar suas limitações desconfortantes, ao vislumbrar a seu lado suas sempiternas e parciais capacidades na ciência, na política, na banalidade cotidiana, na linguagem que por si só é um freio a mais em toda relação entre ser e objeto (as palavras incompreendidas), o homem que sentiu um dia um estranhamento em relação ao seu corpo, entendeu que nesse grande mercado moral a verdade tem preço: o coloca sempre onde pode estar, jamais onde quer estar. Diante da insuficiência da vontade foi preciso dar espaço à modéstia das opiniões. Eis seu quinhão.

                         Kitsch: estética da direita ou filho bastardo de ideologias?

O Kitsch não nos esconde a verdade porque ele é mau, e decorre daí o enfraquecimento natural de uma crítica apenas moral, mas porque a verdade inclui a merda e é quase sempre dolorosa, e conviver com a dor é difícil. Como ideal estético do acordo categórico com o ser, ele é pura ideologia, e essa é o produto bem acabado de uma realidade cujas contradições precisam ser apresentadas ao todo social como inexistentes ou como incapazes de enfraquecer as “formas de vida”. Esse ideal estético é apreendido então como reflexo preciso da realidade, em perfeita harmonia com seus pressupostos e ideais a alcançar. Por isso ele não é agente de uma determinada intenção, mas parte da ‘naturalidade’ das relações. Não sendo ele um agente da vontade, não é a crítica política da superfície quem vai eliminá-lo. Esquerdismo infantil achar que a crítica politizada pode fazê-lo, pois está além de suas possibilidades enquanto tal. Se ele pode ser eliminado, afirmo que não será pela exclusividade de uma vontade esclarecida e, claro, menos ainda porque ele seja mau.

Porque o kitsch é o ideal estético do acordo categórico com o ser? O homem é criatura de natural espírito gregário. A linguagem, código de comunicação desenvolvido da espécie a sugerir a realidade dessa natureza, é condição necessária para uma comunhão da espécie antevista para a qual essa linguagem é uma ponte. E qual o sangue, a substância dessa comunhão? A emoção compartilhada. A emoção, como atributo sentimental, prescinde do espírito crítico a seu objeto causador, quando essa acontece tudo o mais já ficou para trás, o que importa é o reconhecimento mútuo através de sinais, imagens significativas universais de nossas vidas: “a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor”, uma vida miserável redimida da pobreza...Retratos sociais de uma necessidade humana até aqui constante. Isso fará Kundera afirmar, como reproduzido nas linhas seguintes, que “a fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch”. Essas imagens são o ideal estético kitsch de um acordo para a vida, “tomam para si valores de uma tradição cultural privilegiada”. Kitsch porque sentimentos suscitados por imagens vulgares e caricatas, dois termos que indicam a presença de uma verdade distorcida.

Pausa Explicativa

As explicações e compreensões vão acontecendo na medida em que se avança o diálogo, é normal, não se apresse. Se alguma coisa que falei não foi suficiente para a compreensão, vamos lá.

Eu perguntei se “está claro que o kitsch é um fenômeno geral, próprio das religiões, partidos, das multidões e das maiorias silenciosas?” porque você mesmo afirma no referido texto que “o acordo categórico com o ser é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias.”, já permitindo ao acordo categórico com o ser e seu correlato kitsch transitar mais livremente pelas épocas e partidos no poder.

Esse fenônemo, o kitsch, em que pese também o fato de estar presente nas relações domésticas, é próprio de toda organização social que não prescinda da massa humana organizada. Kundera afirma que “é preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para as imagens-chave profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.

O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: Como é bonito crianças correndo num gramado!A segunda lágrima diz: Como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado! Somente essa segunda lágrima faz o kitsch ser o kitsch. A fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch”.

São as religiões, os partidos políticos, as torcidas. Porque? Kundera expõe o embrião dessa idéia, reproduzi em um de meus textos anteriores. Você pode, claro, achar uma explicação pífia, assim como eu não concordo com a totalidade do parágrafo onde ele a expõe (aliás, tenhamos cuidado ao cobrar de Kundera uma exposição didática num romance, ele mesmo afirma a importância da elipse na literatura), mas dizer que não viu essa explicação em Kundera...está lá, inclusive reproduzida em um de seus textos.

Toda organização, política, religiosa, etc., é uma organização de uma grande massa de pessoas unidas em torno de um determinado ideal. Nos partidos se defendem interesses de determinado setor da sociedade; nas religiões se unem para louvar e garantir salvação; e até na torcida de futebol, aglomerado de gente que precisa compartilhar emoção, em nome das glórias e conquistas de um time ou por razões estritamente sentimentais. Todas elas reúnem milhares e milhões de pessoas, e como se movimenta essa gente toda, das quais meia dúzia sabe exatamente o que quer? Se abre então a necessidade dos símbolos, das representações, das imagens, das palavras de ordem e dos arquétipos. É a partir desses símbolos que se mobilizam milhões de pessoas, e não a partir de pressupostos teóricos e racionais. Segundo Kundera, quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do Kitsch se pratica a ditadura do coração. Não por acaso todos eles têm bandeiras que resumem seu ideal ou representam sua paixão. Nos partidos, uma sigla que resume uma ideologia: uma suástica, uma foice e um martelo, uma palavra de ordem; nas religiões uma cruz, uma lua crescente, um candelabro, uma estrela de seis pontas. O problema é que o símbolo, como representação apenas da idéia fundamental, vulgariza ou encobre todas as limitações imediatas porque não se pode lutar com interrogações e dúvidas, e como representação de um ideal esconde a merda, além de representar sempre o fim e o ideal desejado, camuflando os meios pelos quais se poderá alcançá-los, sobretudo meios opostos a seus fins. O símbolo o é sempre de um futuro, de uma meta, de um desejo. E como os símbolos movimentam as multidões? Eles necessariamente escondem, camuflam a merda por trás do ideal, e nessa condição se tornam capazes de fazer o que a razão não é. Por sua natureza ideal apelam à paixão, não à razão, e surgem sempre com sua máxima força nos momentos de polarização ideológica e confronto com formas sociais decadentes já enfraquecidas por contradições internas, o que potencializa seu significado e amplia seu alcance.

Resumo da ópera: rezar para um deus crucificado ou que mata mulheres a pedradas é irracional, ser um torcedor fanático pelo time, matando e morrendo por ele, é irracional...Se as religiões têm a liturgia, se os times tem os jogos e as festas, os partidos têm a comunhão de todos a dignificar seus atos e o apelo, legítimo, contra o sofrimento de causa material. Todos eles favorecidos pelo espírito gregário, essa traição humana de toda solidão, refúgio doloroso do kitsch. Kundera nos apresenta a matriz do kitsch, a segunda lágrima, como a emoção compartilhada. Essa é a relação de uma coisa com a outra, do desejo das multidões, dos rebanhos, com seu ideal estético, produto do tácito acordo categórico com o ser. Parênteses: não estou me opondo à emoção compartilhada, apenas dando o espaço necessário para que se apresente seu possível mecanismo moral. Espero que entenda agora que não tive qualquer pretensão de falsear a realidade não dando explicações, mas se me disser novamente que isso é abrir uma vereda ideológica muito útil para o pensamento reacionário eu direi que você não deixa de ter razão, mas que isso é um outro assunto.

Essas relações não estão no âmbito exclusivo das especulações, partem de um mínimo real: o apelo da simbologia presente nas organizações de massa pela omissão necessária da merda. Mas esse mínimo real se torna máximo quando invocamos o fenômeno kitsch para entender certos fatos reais. Vou aceitar sua sugestão de expor a questão com um exemplo prático.

Cuba

Lembro um fato particular, há alguns anos, que era a discussão em torno de alguns aspectos da Revolução Cubana, e alguns pretendiam resguardar Cuba de críticas sob o argumento de que isso era alimentar o inimigo e pôr no mesmo roldão das críticas as conquistas da Revolução. É real a preocupação, mas assumamos o preço assim como a insinuação escandalosa do kitsch. Eu acho que é o mesmo que se insinua quando se reluta para aceitar o kitsch como elemento presente também em certas organizações políticas de esquerda. Cuba é o símbolo do socialismo latino-americano. Para facilitar a compreensão do alcance e da força do kitsch imediatamente nos vem à cabeça uma constatação: se essa preocupação é formulada de forma restrita podemos imaginar então como são nos símbolos e nas palavras de ordem de apelo público e geral à massa.
                                         
A Política da Crítica X A Crítica da Política II

Você afirma que “a única defesa contra o kitsch é justamente a politização, e não o contrário como você e o Kundera defendem.”  Terei de dizer que você se engana duplamente, além de registrar o positivismo de tal declaração. Politização para você só tem valor se não for crítica à organização política, portanto quando dessa nascer o kitsch não haverá possibilidade de crítica, e se houver já nasce enfraquecida.  Humberto Eco disse que “no solamente surge la vanguardia como reacción a la difusión del kitsch, sino que el kitsch se renueva y prospera aprovechando continuamente los descubrimientos de la vanguardia”. Quanto a mim, jamais defendi o contrário de sua afirmação, penso o verbo ‘politizar’ como um ponto de partida central de uma crítica à 360°. Dentro desse conceito a crítica deve ter posição privilegiada, fórum e status distintos, uma espécie de ‘politburo’ da crítica, rsr. Pra uma crítica prestar, pra ter uma condição mínima de validade e seriedade, ela tem que ter mais ou menos o status do bizantino Bobo da Corte, aquela autorização para criticar até o rei sob pena de matar o que ainda não nasceu. Despolitizar não significa “excluir o campo político” das possibilidades, mas apreendê-lo de forma totêmica. Uma crítica política profunda pode conter, em última instância, a possibilidade de “excluir o campo político das possibilidades”, e nesse caso esse é um efeito, não uma causa. Mas afirmar que“ Sabina será sempre um ser incompleto, porque a maior traição à ordem, a revolução, não lhe é acessível nem como possibilidade, já que ela rechaça partidos e movimentos políticos”, dizendo que a revolução não lhe é acessível como possibilidade porque ela rechaça partidos e movimentos políticos, quando essa exclusão já passou por seu crivo crítico, é afirmar a política como causa, tendo como conseqüência natural a exclusão da crítica de sua órbita política. É um absolutismo que leva ao túmulo da dialética, porque então não há presença da crítica capaz de apontar na política o que é ela e o que nela é o seu outro. O fim ideal a que se propõe a revolução é o da anti-ordem, mas seu longo caminho, ou grande marcha, é necessariamente o da disciplina e o da ordem, habitat natural e arena do consumo e apelo kitsch, e Sabina sabe do kitsch quase inevitável dos partidos e os movimentos políticos que necessitam da Grande Marcha para chegar a seu fim. Não é Sabina quem rechaça a possibilidade, são as possibilidades que rechaçam Sabina. Porque ninguém faz samba só porque prefere. Sabina, para ser um ser completo, precisaria ultrapassar suas próprias possibilidades, e assim fracassaria. “A vida inteira, [Sabina]afirmou que seu inimigo era o kitsch. Mas será que ela própria não o carrega no fundo do seu ser? Seu kitsch é a visão de um lar sossegado, doce, harmonioso, onde reinam uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria. Essa contradição ainda é traço fundamental do ser, e negar a presença do kitsch nos movimentos políticos é fazer destes uma idéia positivista e de precisão cirúrgica.

 

Ao afirmar que nossa saída, minha e de Kundera, é pequena, acho que mistura matérias: o que tem a ver o aqui adjetivo ‘pequena’ com apontamentos de razões entendidas por mim como ulteriores (2)? Seria como se eu me indagasse se o que você procura antes de tudo é uma saída grandiosa, mas sei que procura uma saída para o inferno burguês a qualquer preço. Nesse caso poderíamos entender como um grande ato da vaidade, mas o que poderia mover uma deliberada ‘saída pequena’? Só o cúmulo da vaidade às avessas de uma alma apagada no atoleiro do ‘não ser’. Não me debato tentando saber se é pequena porque se for terei chegado a ela sem a procurar, pelo menos até onde é possível a todos nós não pavimentar os caminhos com nossas perspectivas particulares. Não é uma questão moral para mim. Uma saída individual já não pensa em termos do que é eficiente ou não, tampouco se é funcional para a burguesia, porque já não pensa em saída.


‘Fortalecer a democracia operária e seus mecanismos’ é o eterno discurso da esquerda, presente inclusive nos discursos de grupos nos quais o sectarismo era tão gritante que nunca nos aproximamos deles. Máximas como essa ganhavam, nesses grupos, significados opostos ao seu enunciado, sendo antes a ontologia doente do dogmatismo expresso na burocracia do discurso, e essa também é uma lição da história. Claro, não tem de ser sempre assim, mas acho que é necessário pagar para ver.

A ruptura da tradição não deve instalar outra. Confabulando para raciocinar: fosse possível uma mudança que dependesse apenas de uma vida, da idéia e da vontade de um indivíduo, talvez o kitsch sucumbisse. Porque é possível pôr fé na pureza da vida inteira de uma pessoa. Mas crer na pureza da vida inteira de um partido, que produz como ideal o kitsch...temos que ter um mínimo de clareza de que somos porta vozes de um discurso que não se pode garantir. Mas eu também acredito que pelo esforço talvez se possa ter algum sucesso contra o kitsch, mas notemos que é um esforço contra algo perto do ‘natural’.

                                               O Kitsch: Condição Política?

“Pensar que todas as organizações políticas criam o kitsch é desarmar a luta de classes”...creio que deveria completar afirmando que qualquer fala que se choque com a luta de classes deva ser proibida por decreto, minando o espaço da crítica. Sempre que algo dito levante dúvidas a esse respeito a resposta é que “desarma a luta de classes”, “é reacionário”, etc. Creio que por negar a possibilidade de desarmar a luta de classes não deve estranhar de nenhuma forma quando digo que há uma exigência moral, culpabilizante e totalitária, até mesmo estranhando um fato assim, que parte da esquerda semelhante à das religiões, e minha opinião particular é de que só não se enxerga isso porque infelizmente não se sujeita à própria crítica. Kundera explica a união que faz do substantivo “totalitário” ao conceito de kitsch, e são, meu amigo, palavras duras, mas que reproduzirei na íntegra: “se digo ‘totalitário’ é porque nesse caso tudo o que possa prejudicar o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), e ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), mas também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres ameaçando assim o slogan sacrossanto ‘amai-vos e multiplicai-vos’. Desse ponto de vista, aquilo a que chamamos ‘gulag’ pode ser considerado uma fossa séptica em que o kitsch totalitário joga suas imundícies”.

Você afirma que “pela via fácil do seu pensamento, que é o do Kundera em alguma medida, a Revolução Russa já estava condenada a priori, afinal, a organização política cria o kitsch”.

O kitsch não é obstáculo à organização política, pelo contrário, é parte integrante dela. Portanto não condena à não-existência, antes é através dele que se dá a organização política. A Revolução acontecerá e existirá, porém o kitsch será elemento presente como o ideal estético da ordem. E nesse caso é a história existindo como tragédia ou como farsa.

Não existe transformação social sem organização política, fato. Mas não adianta me perguntar se isso não é despolitizar porque já estamos num ponto em que também se coloca a própria possibilidade de transformação em questão, um ponto em que essa pergunta já não é mais o limite do pensamento. Ademais, a afirmação de que “como não existe transformação social sem organização política, rechaçar esta significa inviabilizar aquela” acaba por denotar que estamos em certo descompasso quanto à questão. Uma coisa é a constatação da merda, outra é de que maneira eliminá-la, mas parece que você não discute uma sem a outra. Eu creio que temos a mesma sensibilidade quanto à merda presente na vida, mas não temos muito acordo quando se trata de como eliminá-la. A impressão que tenho é de que deveria ter se quisesse não correr o risco de ser adjetivado com coisas como “reacionário” e “de direita”.

                                                           A 3ª Trincheira

Precisa a afirmação de Rosa Luxemburgo sobre a liberdade. Ela está tão certa que deveria nos fazer pensar porque será que nós, que concordamos tanto com ela, não conseguimos concordar entre nós. O que você não entende, em minha opinião, é que eu não impus nenhum impedimento à discordância como princípio elementar, diferente de um princípio que nos coloca entre o engajamento e a captulação manifesto em frases como “numa guerra não há três trincheiras”, ou, sobre Kundera, ao se perguntar se ele “pode levitar livremente sobre o muro que separa a esquerda da direita”, que exclui por definição e antecipação qualquer discordância quanto a isso, e é aí que divergimos: se você acha, como Rosa, que a liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente, deveria repensar as ditas afirmações, inclusive o título de seu texto, alusão indireta à idéia de se haver outra possibilidade legítima (muss es sein? es muss sein!). Tentei falar sobre o que você chamou de 3ª  Trincheira ao me referir à postura dos que não são militantes engajados mas também não são de direita. Por isso me referi à postura geral (note, geral, não cada caso particular) da esquerda em (des)qualificar de forma maniqueísta um e outro. Se você se referir àquela condição da qual nem eu e nem você escapamos, as que não dependem absolutamente de uma escolha, voltamos ao ponto de partida (e aqui eu e você e todos que vivem somos, na exata medida em que trabalhamos, bebemos e consumimos, funcionais da direita) e você teria então acabado de anular a afirmação de Rosa sobre a liberdade. Se por acaso afirmar então que é isso, optando por eliminar deliberadamente a afirmação de Rosa, participa da concepção geral da esquerda e é isso o que o levaria então a adjetivar todos os que não partilham de determinados postulados morais de reacionários ou coisas semelhantes. Quer dizer, você chama de reacionário todo aquele que profere qualquer pensamento que caia como uma luva para a direita e os reacionários de toda ordem, em nenhuma circunstância admite alguma liberdade de pensamento no sentido universal de haver convergência de concepção por caminhos e interesses distintos. Todo pensamento é entendido como parte da engrenagem de interesses da eterna dicotomia esquerda-direita, e é a esse tipo de procedimento que qualifico de instrumentalizado, por um e por outro. Da direita, como de habitual, não se espera nada diferente, mas da esquerda deveria se esperar outra coisa já que pretendem outro mundo, outra vida. Isso acaba por ser outra desilusão, um novo acordar do sonho de feiúra do “kitsch”. Os fins justificam os meios, mas os meios interferem nos fins. Desacreditar nas possibilidades de mudança não me coloca à direita ou faz de mim um reacionário, defender o status quo sim. Por isso eu acho que se adotam princípios que são verdadeiros dogmas, e enquanto tal são Kitsch.

Somente por tais colocações restritivas, sempre nos campos “esquerda-direita”, sem entender que na crítica do pensamento tento me livrar dessa dicotomia empobrecedora do espírito, é que se pode dispor de tais adjetivações. Mas se a consciência vale ainda alguma coisa, afirmo aqui que as nego completamente através da única forma que tenho de fazê-lo: afirmando. Portanto a liberdade não exclui a crítica e não distingue moral, porque não é exclusiva e só a partir dela principia a reflexão profunda.

                                                  O Samba da Linguagem

Creio que você possa ter reservas sobre a afirmação de Rosa quando diz “se escolho a leveza na sua perspectiva (não tomar parte de nenhum lugar na minha existência social), posso levitar tranqüilo sobre o campo das definições, inclusive empregando expressões como cortina de ferro e sugerindo outras como socialismo real”.  Eu não posso? Afinal, Rosa está certa ou está errada? Socialismo Real, Cortina de Ferro...são palavras que não hão de mudar uma vida por seu uso, usei os termos deles sem partilhar de seus ideais nem interesses. Como não sou mais um militante me desabituei de me preocupar com a velha patrulha ideológica. Num nível pessoal basta saber-se quem é, ou melhor, saber do que não gosta. Um (d)efeito da sociedade do espetáculo é que não basta ser, é preciso parecer, e é bom que não pareça também ser um reacionário, mesmo que não seja. Em nosso mundo kafkiano somos culpados em potencial.

Não fiz qualquer defesa dos ditos termos, mas o fato de eu também não ter feito nenhuma execração não empata o jogo, afinal é necessário se posicionar. Sei bem que os ditos termos encerram em si significados já depreciativos, também não sou ingênuo a esse ponto. Sobre o ‘Socialismo Real’ eu tive o cuidado de usar a forma “que outros chamariam Socialismo Real”, ou seja, não excluí mas tampouco endossei, só não quis fechar a questão. Afinal estávamos tratando justamente do tal ‘kitsch’ presente nas experiências das esquerdas, matéria-prima da obra de Kundera. Quanto ao termo “Cortina de Ferro”, de Goebbels (creio que há dúvidas se é um termo dele), chefe do departamento de propaganda nazista e ideólogo do grande kitsch do partido, sejamos francos: está presente nesse nosso diálogo essa relação que tem alguns atos dos homens com o que eles pensam. Se Goebbels fixou o termo, como você afirma, para designar os países do leste europeu sob controle político soviético, a despeito de qualquer intenção que tivesse, o termo hoje se aplica como grande verdade sobre o regime da Coréia do Norte em seu auto-isolamento e seu isolamento reforçado pelo ocidente. O mero uso do termo, sem defesa ou condenação, não me faz partilhar necessariamente das idéias de seus idealizadores. O uso da suástica pelo regime nazista, por exemplo, baniu completamente qualquer referência a esta, em detrimento de sua origem distinta e seu uso por grupos que inclusive tinham ideologia à esquerda em relação ao nazismo. Compreensivo tudo isso, afinal a semântica da história altera a verdade precedente, mas se isso é verdade o é para tudo, inclusive para o que fez a história com a foice e o martelo, porém seu uso, sabemos, não faz ninguém, necessariamente, defender Stalin, Pol-Pot, Ceaucescu, Sendero, etc. A dialética da história é amoral.

A Comuna de Paris infelizmente foi uma experiência curta, seria necessário mais tempo para poder perceber se sua natureza superaria intacta, ou até que ponto, a evolução da experiência política. Não teve tempo para o crivo necessário do tempo. O termo ‘real’ apegado ao substantivo inclui também as experiências reais e concretas das revoluções que tiveram mais tempo de existência.
Sim, lemos Marx, eu não tanto quanto você, mas o suficiente para saber que o tempo não permitiu a muitas experiências do século XX manter o humanismo presente em suas idéias.

Cito agora uma colocação que fez para em seguida corrigi-la: “A Revolução Russa começou a agonizar quando os sovietes foram esvaziados, a partir deste ponto os russos começaram a cavar a cova da revolução. Esta é a minha opinião, mas imagino que não é a sua, se for coerente com seu argumento você terá que condenar todas as organizações políticas, que nada produzem a não ser o kitsch, os sovietes inclusive. Acho que nem Kundera chegaria a tanto”.

Vou citar agora três afirmações de Kundera reproduzidas por mim em um de meus textos anteriores, a primeira inserida num contexto de reflexão sobre a noção dos adjetivos ‘leveza’ e ‘peso’ em Kundera: “O kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos” ; a segunda feita numa colocação sobre meu desacordo quanto à totalização de Kundera também sobre a idéia do kitsch:  “Não afirmo, como Kundera, que a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o Kitsch, mas creio que essa é uma grande pedra no meio do caminho”. Pois bem. Como pode ver tentei de forma explícita não condenar a totalidade das experiências políticas, como parece fazer exatamente Kundera na afirmação acima. Eu apenas reconheci ser o kitsch uma grande pedra no meio do caminho. Então é exatamente o contrário, Kundera chegou a tanto. Não me lembro de ter expressado a idéia de que “...as organizações políticas, que nada produzem a não ser o kitsch...”. Esse elemento, para mim, é parte negativa constitutiva da atividade política, pois se a dialética das atividades humanas faz sentido, elementos contraditórios em si são naturais. Nesse caso a história demonstra o quanto de estrago eles são capazes de fazer.

Claro que você pode ser perguntar porque eu , afinal, “não afirmo, como Kundera, que a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o Kitsch”, e direi que é minha vontade de recusar a merda, de não capitular.

                                                  Tempo e Contingência

Se “a Revolução Russa começou a agonizar quando os sovietes foram esvaziados”, quais as razões, as causas do esvaziamento dos sovietes? Porque a totalidade das experiências socialistas desapareceram concretamente ou transformando-se em caricaturas de si mesmas? Há alguma razão, especulação ou mesmo palpite que tente explicar essa ‘constante’ na história e presente em todos os casos? Em que pese o que tenha tido de positivo cada experiência, porque sempre fracassaram? Haveria alguma razão mais constante, já que encontramos de semelhante em todas essas experiências o fato de terem desaparecido sob o esmagamento do inimigo ou sob suas próprias contradições? Espero que esse simples questionamento não me (des)qualifique de antemão, já que penso que todo militante deva colocar a si próprio simples indagações como essas.

Em 1904, Lênin, criticando os mencheviques, disse: "a idéia básica do camarada Martov... é [produto] justamente de seu ‘democratismo’. A idéia da construção do partido de baixo para cima. Minha idéia, ao contrário, é o ‘burocratismo’, no sentido de que o partido deve ser construído de cima para baixo. Do congresso para a organização individual do partido." (3)

Essa também foi uma lição para a história. Li que Lênin, depois de ser objeto de duras críticas de Rosa Luxemburgo por expressar tal concepção, admitiu que essas eram posições superadas. Superadas ou não, o que levou Lênin a não “fortalecer a democracia operária e seus mecanismos”, apesar de acreditar nisso? Calma, não coloco a questão por achar sua atitude um absurdo sem razões, seria infantil. Certamente que vamos encontrar as razões para isso, toda ação tem seu contexto, suas circunstâncias, e é exatamente onde quero chegar. As razões para atos de tal natureza sempre vão existir, é em meio à convulsão da história que vivemos e essa sempre exige mais que a capacidade do homem. Ora, a tática político-militar é o cálculo dos resultados, que Kundera expressa da seguinte forma:“assim que percebem uma máquina fotográfica por perto, [os políticos] correm até a primeira criança que vêem para levantá-la nos braços e beijá-la na face. O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos. Um pouco além de uma aparente e possível generalização: se for possível entender o caráter kitsch do animal político, não há uma exata, ou completa, generalização (“Numa sociedade em que coexistem diversas correntes e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, ainda é possível escapar mais ou menos à inquisição do kitsch. ...Mas nos lugares em que um só movimento político detém todo o poder, todos se encontram sem escapatória no reino do kitsch totalitário”), mas o justo reconhecimento de que toda organização, enquanto elemento político a buscar hegemonia na disputa, não pode prescindir do fenômeno kitsch. Essa generalização se resume unicamente ao elemento ‘político’, se podemos generalizá-lo é em função da constatação, como afirmara Aristóteles, do homem como um animal político, e isso seria antes conseqüência de toda condição social. Para tal problema, se aceitamos essa premissa não podemos mais reduzi-lo unicamente a ser de “direita” ou “reacionário”. Se não aceitamos cabe mostrar com clareza a razão.

Lênin certamente entendeu como necessário tal posicionamento, mas nesse caso exemplificou bem o que eu disse sobre sermos porta vozes de discursos que, a despeito de todo esforço, não poderemos garantir. Não depende unicamente da vontade. Ali a idéia do centralismo democrático sofreu uma reviravolta de 360°, dando à vida o centralismo burocrático como ele mesmo afirmara. Sim, pode-se argumentar que a mesma história que exigiu posições burocráticas é que permitirá depor as mesmas, mas se no primeiro caso ela exige, no segundo apenas permite. E aí vamos ter de encarar a nós mesmos, nossas rudes ferramentas e toda a contradição infinita de pontos de vista internos, as instabilidades por transição de poder por inúmeras razões, o exercício do poder, tendências burocráticas, suscetibilidade ao engano...Eternos elementos a jogar contra. Segundo as generalizações de Kundera, “a nostalgia do Paraíso é o desejo do homem de não ser homem”.

Perto do que disse Marx quando expressou a idéia de que “a religião é o grito de protesto da criatura oprimida”. Pra negar a merda recorremos a diferentes meios, mas fica claro, nas duas colocações, o aparecimento do kitsch (a nostalgia do Paraíso e as religiões) a partir de uma necessidade.

                              A Literatura Kitsch, Apoteose do Gozo Estético

Kundera procura, ao longo de sua obra, expor argumentos que justifiquem e expliquem o problema do kitsch, mas quando você diz que “Kundera se debate e se afoga neste impasse, seus personagens são incapazes de se contrapor ao socialismo degenerado, porque para tanto seria preciso fazer uso de partidos e movimentos políticos, incorrendo, portanto, no kitsch. O ser ensimesmado cava sua trincheira em si próprio, incapaz de qualquer combate coletivo”, insiste, a meu ver, na idéia e na crítica de forma superficial, como se Kundera optasse simplesmente por tal forma de ver a vida, como se não houvesse a mínima razão fora dele a justificá-la e, portanto, razões para mudá-la. Quer dizer, Kundera se debateu tanto para no fim não saber que seu romance só precisava de um personagem: ele mesmo, e então não haveria romance. De uma hora para outra você parece derrubar a avaliação que fez de que “sua obra é grande porque nela transitam seres envergados[e o que seria da arte num mundo redimido?]”. Não há seres envergados e não há um mundo envergador, há somente Kundera perdido e partido em exclusivas contradições apartadas de sua vida e do mundo real. Sua vida é uma grande imaginação, ela não apenas concebeu sua obra assim como também constituiu o próprio mundo de sua obra; nele as contradições de todos os seus personagens nascem de sua própria cabeça, um ser ensimesmado que cavou sua trincheira em si próprio.

O Sr. afirmou que a política deve se manter em posição mais humilde, muitos degraus abaixo em relação à crítica estética, mas critica Kundera porque este “se debate e se afoga neste impasse, seus personagens são incapazes de se contrapor ao socialismo degenerado, porque para tanto seria preciso fazer uso de partidos e movimentos políticos, incorrendo, portanto, no kitsch”. Você mesmo deu a resposta. Para Kundera atender as demandas que você espera dele, de personagens políticos revolucionários capazes de superar o impasse, seria preciso fazer uso do Kitsch, mas aqui em sua acepção artística, a assepsia kitsch: construir um romance kitsch em sua forma e conteúdo, e ele acertadamente se retirou da sinuca. Provavelmente incorreria no infame “Realismo Socialista”, porque se não há acordo com ele sobre o kitsch na organização política, há de se esperar de seus personagens aquele tipo rocambolesco de novela mexicana, onde tudo está em seu lugar: o mocinho que só quer o bem, responsável pela justiça, e o bandido malvado responsável por toda miséria, apartados um do outro como queria Parmênides. O resultado quase não poderia ser outro: a pureza do produto estético de origem farsesca a vender uma estética absolutamente kitsch sob absolutamente qualquer ponto de vista. Quando não há crítica ao kitsch político o resultado estético que se obtém é o de um mundo dantesco expresso através de um romance absolutamente dantesco. Já vimos na história o que esse tipo de visão legou à arte quando se praticava o dirigismo político da cultura.

Cervantes conseguiu escapar do labirinto, mas não negou o kitsch: Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, desfazedor de agravos, a flor e a nata da gentileza, paladino da justiça e amparo das viúvas, vivia isolado em seu universo, tão profundamente kitsch que a partir dele combatia moinhos de vento. Mas Cervantes não queria o mundo kitsch dos romances de cavalaria e seus heróis perfeitos e infalíveis, por isso criou Dom Quixote, herói de seu mundo e anti-herói fora dele.
Velho amigo...Quando afirma que “...seus personagens são incapazes de se contrapor ao socialismo degenerado, porque para tanto seria preciso fazer uso de partidos e movimentos políticos...”. Sabina e Tomas se contrapõem...O que não se contrapõe é justamente Franz, adepto ali de movimentos políticos e entusiasta da Grande Marcha. Para você só há uma forma de se opor, e os labirintos da relatividade de todos os valores humanos lhe são alheios...Sabina não teria espaço no mundo depurado e unívoco que concebe.

                                    Indiferença: pró, contra ou nenhuma das opções?

Segundo seu raciocínio, tomas só poderia não tomar parte em seu lugar na existência social caso assinasse o documento, já que ele o toma justamente porque se recusa. Acho que você continua a raciocinar de forma dicotômica, estanque, a la Parmênides, pois acha que o homem que não tomou parte em seu lugar na existência social necessariamente assinaria o documento, capitularia, e isso me parece, de sua parte, uma recusa metafísica à vida real. Tal homem é antes de tudo indiferente, assinar ou não, em princípio, tanto faz, não carrega em si nenhum valor, casual na vida como na morte. Tal homem não está infalivelmente condenado a aceitar, a capitular, “assinar”, seu caminho é a indiferença. Um homem assim não se faz pelos atos mas por estado de espírito.

Voltando a Tomas: assinar ou não eram suas duas únicas saídas possíveis, no mundo feio e kitsch em que ele vivia só haviam duas possibilidades: assinar e tomar seu lugar no espaço social amordaçado ou não assinar e ser banido para o sub-espaço de limpador de janelas, mas sem compactuar com o kitsch. Só numa concepção maniqueísta e kitsch cabe o ideal da vida como sim ou não, bem ou mal, guerra ou paz, amor ou ódio.

Em meu último texto, falei da “...possibilidade de decidir não tomar parte de nenhum lugar na minha existência social, além do que sou, por fatalidade ou por natalidade, obrigado a estar antes da minha consciência.” O assunto nesse caso era sobre a convocação programática, sistemática e moral por parte da esquerda sobre as consciências, não as circunstâncias da vida, das quais, como disse antes, ninguém escapa. Em circunstâncias como a de Tomas, para alguém indiferente e que não tomou nenhum lugar na existência social, qualquer escolha, inevitável, seria casual, vazia de vontades especiais ou sistemáticas, portanto nenhuma escolha que fizesse o teria tirado de sua condição, e não ter seu lugar na existência social não implica oportunismo, pode ser mesmo que não ter esse lugar signifique recusa, de outra forma poderia estar em seu devido lugar.

Você parte de pergunta errada, em qual campo político se inscreve a afirmação de que o kitsch é o ideal estético de todos os partidos e movimentos políticos? Esquerda ou direita?”, pra descartar o que chamou de “3ª Trincheira”. Eu nunca disse que a direita não se serve de idéias como essa, pra isso eu teria de ser a besta mais estúpida de todos os tempos, e sabemos que não sou. Não é mesmo? Afirmei o contrário. O que eu nego é a afirmação de que defender tal idéia é ser necessariamente de direita. Repito, desacreditar na possibilidade de mudança não nos faz de direita, abraçar deliberadamente o status quo sim. Portanto essas duas categorias de pessoas, os que não acreditam na mudança e os que abraçam o status quo, podem convergir em muitos momentos sem nunca serem a mesma coisa. É só isso, é simples. Então, se não somos a esquerda que aposta na mudança e se não somos a direita que abraça o status quo, só sobra ser uma terceira coisa qualquer. Portanto, a negação do que quer que seja por essa terceira coisa qualquer só se dá no nível da consciência esclarecida, é profundamente estéril se perguntar se “é possível imaginar a negação da situação sem partidos e movimentos políticos?”. A pergunta só faz algum sentido dentro da definição da esquerda como aquela moral secular a ocupar o trono divino a que me referi, senão não se coloca.

Outra afirmação categórica sua: “Registre-se que a generalização do argumento no livro é uma possibilidade, mas, concretamente, Kundera dispara apenas contra os burocratas do seu tempo, contra um estadunidense inclusive. Quem generaliza e transforma o argumento em ideologia é você, não sei se Kundera apoiaria este procedimento”.

Explico apenas transcrevendo aqui colocações e generalizações do próprio Kundera e meu comentário do último texto, como fiz linhas acima. Kundera: “O kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos”; “a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o Kitsch”. Eu: “Não afirmo, como Kundera, que a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o Kitsch, mas creio que essa é uma grande pedra no meio do caminho”.

Alguns versos do grande poema do grande poeta, “...este é tempo de partido, tempo de homens partidos...”; “...o tempo é ainda fezes, maus poemas, alucinações e espera...” definem bem o nosso tempo, que era o dele também. Tempo de partido e homens partidos, tempo de fezes, da merda...A vontade de recusar a merda é legítima, o problema é que parece que o tempo de partido e de homens partidos impõe dificuldades para fazê-lo sem criar mais merda. Talvez tenham chance maior de afundar mais a humanidade na merda os homens pesados, a leveza paga o preço de sua solidão sozinha, como Sabina. Tanto que você afirma que “Sabina, Tomas e Tereza são materialização da idéia de que a forma e a organização política criam o kitsch. Franz pensa diferente, ele crê na Grande Marcha, se organiza, luta e acaba martelado com brio”. Se Sabina, Tomas e Tereza são a materialização da idéia de que a forma e a organização política criam o kitsch, correto, o que dizer de Franz? É a personificação do kitsch. Sabina, Tomas e Tereza “são materialização da idéia de que a forma e a organização política criam o kitsch” porque o fazem pela recusa, Franz porque a personifica. Lembrando daquele recurso na poesia denominado ‘personificação’, o atributo de pessoas humanas dadas às coisas e animais: se o kitsch fosse uma coisa na obra de Kundera, seu nome seria Franz. Eis o conjunto todo de possibilidades que Kundera rechaça.

Por fim, todos os posicionamentos podem ser submetidos à crítica, é por isso que quis comentar teu primeiro texto. Dou total crédito quando você afirma que “não tenho dificuldade para aceitar outras posturas como possibilidade”, precisamente por isso afirmo que poderia reavaliar, sem compromisso (rsr), afirmações anteriores como “numa guerra não há três trincheiras”, ou “[será que Kundera].. pode levitar livremente sobre o muro que separa a esquerda da direita?”, ou ainda a sugestão do título de seu último texto, “Ninguém faz samba só porque prefere”, aparente absolutização da idéia de que quem faz o samba o faz porque acata a única possibilidade. Sobre críticas ao que vê como meus aspectos reacionários, bem...há algo antes de eu aceitá-las prontamente: preciso dizer que todas as premissas de que partiu para afirmá-los partem, a meu ver, da idéia que faz sobre ser de direita, ao todo equivocada a meu respeito, mas também da contradição explícita com a afirmação de Rosa Luxemburgo, de que “a liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente”. Victor Hugo, em sua maravilhosa obra “Os Miseráveis”, afirma que verdade ou não, o que se diz dos homens ocupa, por vezes, tanto lugar na sua vida e sobretudo no seu destino como o que eles próprios fazem”. Meu temperamento inseguro me impede de não aceitar críticas, é que viver as vezes nos impõe a necessidade burocrática do diálogo para saber que elas devem ocupar o justo lugar na vida.


Fraternalmente
Olavo Mosnos

(1) quando aplicar essa palavra à minha condição como tal, será ciente do escasso tempo e dedicação material que naturalmente se espera, porém de quase absoluta paixão enquanto durou.
(2) que assume não excluir absolutamente razões interiores.
(3) Lênin, Obras [em russo], VII, pp 365-366 – citado por Toni Cliff, em sua biografia sobre Rosa Luxemburgo).

Nenhum comentário: