13º Texto


* Nota preliminar: este texto é parte do debate sobre o romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)


Tentemos desenrolar o novelo. O pomo da nossa discórdia está num parágrafo que já conhecemos de cor:

“Por trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo categórico com o ser.”

Kundera pode ter se expressado mal, ou pode ter sido o tradutor, mas está muito claro: por trás de todas as crenças europeias, sejam religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese. Mas isso não importa muito, ou não importa tanto. Concordo contigo, é o acordo categórico com o ser que explica o primeiro capítulo do Gênese. Mas então, partindo de Kundera, podemos dizer que firma o acordo categórico com o ser quem cumpre duas condições:

1º) Crê que o mundo foi criado como devia ser,

2º) Crê que o homem é bom e deve procriar.

Ou seja, posso retirar o primeiro capítulo do Gênese da equação sem nenhum prejuízo. Não cheguei a afirmar isso, mas se tivesse sido perguntado responderia com tranquilidade: são as duas condições acima que, somadas, estão por trás do Gênese, e não o contrário.

Sabemos que, para o Kundera, o kitsch é o ideal estético do acordo categórico com o ser. Se todas as crenças, religiosas e políticas, firmam o acordo categórico com o ser, todas, sem exceção, são produtoras de kitsch. Aqui o caldo entorna. Não se deve cobrar rigor analítico da literatura, mas esta passa a produzir mistificações, não resta outra possibilidade senão a crítica. Não creio que Kundera despeje marxismo e anarquismo nesse caldeirão (como já registrei diversas vezes), e isso porque seria muito fácil desconstruir o argumento dele. Seria como se ele dissesse:

Por trás do pensamento de Karl Marx está o primeiro capítulo do Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo categórico com o ser.

Uma formulação como essa é absurda com ou sem o primeiro capítulo do Gênese, como já afirmei, Marx não crê que o mundo tenha sido criado e não crê que o homem seja bom, para o filósofo alemão não há uma natureza humana pré-determinada. O raciocínio vale para Marx e para Lukács, Lenin, Trostki, Bakunin, Brecht, Malatesta etc., etc. É por isso que não dá para dizer que há kitsch na esquerda, pelo menos não através da equação do Kundera. Quem tenta afirmar o kitsch de esquerda via Kundera acaba formulando algo parecido com a sentença absurda que montei no parágrafo anterior. Ou dizendo de outra forma, acaba produzindo mistificações.

Certamente há kitsch na esquerda, deve haver no pensamento de Marx inclusive, mas não é com uma definição limitada como a do Kundera que se vai avançar na compreensão do fenômeno, acho pouco provável que o próprio Kundera lance pensadores do porte de Marx na sua definição. Enfim, a essência da nossa divergência é essa. Considero que lançar marxismo e anarquismo na definição de acordo categórico é o mesmo que amputar um e outro, é mais ou menos como querer passar uma carreta num buraco de rato. Lançar marxismo e anarquismo na definição do Kundera é uma mistificação grande e frágil, desemboca em coisas como a sentença que montei relacionando Marx ao acordo categórico. Diferente seria se partíssemos de outro parágrafo:

“O debate entre os que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implica coisas que vão além de nossa compreensão e experiência. Muito mais real é a diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.”

Permita-me um chute. Esse aderir sem reservas é um caminho melhor para entendermos o kitsch, inclusive para além das duas condições que extraí do Kundera. Por exemplo: Marx aderiu (no mínimo com pouca reserva) à ideia de que a revolução estava próxima, e caiu do cavalo. Brecht, no poema Aos que vão nascer, adere sem reservas à crença de que virá um tempo em que o homem será parceiro do homem. É do aderir sem reservas que brota o kitsch, que não precisa ter apenas fundo religioso, como na definição de acordo categórico com ser. O homem do subsolo pode produzir kitsch se aderir incondicionalmente à visão de que a existência é uma merda, ou seja, seu kitsch existirá para mascarar a doçura da leveza, que é parte da vida também, e que ele pode não querer ver. Enfim, penso no kitsch como ideal estético do acordo categórico em geral (não necessariamente do acordo categórico com o ser, qualquer acordo categórico produz kitsch, pode ser com o ser ou outro), ou seja, quem adere sem reservas a seja lá o que for, do subsolo à revolução, vai expulsar para fora das fronteiras do pensamento tudo que lhe contrariar. Pretendo um dia aprofundar melhor isso, mas me parece que este caminho é mais sólido.

Também acho que devem ter ocorrido suicídios filosóficos, o que não houve nem haverá é um filósofo sério do suicídio, porque, se chega nesse ponto, o homem deve providenciar sua autodestruição e não uma nova filosofia.

Lembro que a palavra de ordem “viva a vida” não está muito distante do pensamento de Nietzsche e, se é assim, o filósofo alemão está próximo do acordo categórico com o ser e do kitsch nos termos em que você os entende. Lembremos do trecho em que Zaratustra fala dos que desprezam o corpo:

“Aos que desprezam o corpo quero dar o meu parecer. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem−se do seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos.”

Este trecho e outros exemplificam por que não haverá um filósofo sério do suicídio, toda sua filosofia não pode substituir o gesto definitivo.

Registro que a palavra de ordem “viva a vida” não necessariamente precisa ser elaborada a partir do acordo categórico com o ser definido pelo Kundera (duas condições citadas no começo desta mensagem), haverá sim algum tipo de acordo, mas não necessariamente será o mesmo, Nietzsche exemplifica bem isso, seu “viva a vida” não é pronunciado pelo caminho do acordo categórico formulado pelo Kundera.

Por fim, digo que há no pensamento dos vivos (da esquerda ao homem do subsolo) algum tipo de acordo com o ser, porque se não fosse assim eles caminhariam para a autodestruição. Talvez o mais correto seja dizer que, da esquerda ao homem do subsolo, insinua-se um acordo parcial com o ser, porque acordo categórico com o ser só firma quem cumpre as duas condições apontadas acima. Já o kitsch pode mesmo ser entendido como um dado da existência, e pode ser, se meu raciocínio estiver correto, separado do acordo categórico com o ser. O kitsch é um fenômeno que nasce do aderir sem reservas, por exemplo, o kitsch do homem do subsolo pode ser a escuridão.

Forte abraço,
JC

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