DOM QUIXOTE, SANCHO PANÇA E A CAIXA DE SOM
Até
o presente momento, não precisei me exilar devido ao avanço da extrema direita
nem fui atingido diretamente pelas mudanças climáticas, mas já tive que fugir
do barulho para não enlouquecer. Aluguei uma casa distante para ter um pouco de
tranquilidade sonora: ler, escrever e trabalhar minimamente em paz. Por tudo
isso às vezes penso que o barulho é o grande problema da humanidade. Mais que o
capitalismo, que insiste em não morrer; mais que extrema direita, que avança
sem cessar; mais que as mudanças climáticas, que provocam desastres ambientais.
O
barulho é onipresente e onipotente: atravessa paredes, mesmo as grossas, como
as dos conventos. Aviões cruzando o céu. Helicópteros levando capitalistas. Guardas-noturnos
apitando na madrugada. Coletivos transportando pessoas. Caminhões carregando
entulho. Sirenes anunciando ambulâncias e viaturas. Construções infinitas que
só servem para produzir ruído. Cães latindo por princípio. Maritacas
escandalosas. Casais brigando. Bebês chorando. Televisores ligados 24 horas por
dia. Gente idiota ouvindo música ruim a todo volume. E, sobretudo, motocicletas infernizando a vida
dos seres vivos. Não há som mais irritante do que o emitido pelas
motocicletas.
Contra
o barulho existem apenas alternativas parciais: protetores auriculares, janelas
antirruído, isolamento acústico, voltar às cavernas. Já tentei quase todas e nenhuma
funcionou a contento. Certa vez constatei, abismado, que equipamentos de
proteção individual próprios para trabalhadores que utilizam britadeiras não
são capazes de bloquear o barulho do trânsito, apesar das paredes e janelas que
me separavam da rua. Cheguei a me viciar em ventiladores, não devido ao
aquecimento global, mas pelo som constante, que abafa minimamente o escândalo
dos aviões, helicópteros, busões, caminhões, ambulâncias, viaturas, cães, maritacas,
pessoas e, sobretudo, motocicletas. Mais de uma vez tive tosse causada pelo uso
excessivo e “desnecessário” – mas inevitável – de ventiladores.
Mesmo
morando numa casa afastada, não escapei totalmente do barulho. As motos ficaram
mais distantes, ouço-as de longe, num volume minimamente tolerável. Mas sempre
há algum vizinho chato que liga o som alto no final de semana, como se fosse
absolutamente incapaz de suportar a solidão, como se pedisse socorro.
Geralmente, ligam o som e ouvem baixo durante curtos espaços de tempo, talvez
por saberem que estão incomodando, mas depois perdem a vergonha, aumentam o
volume e tiram a paz de toda a vizinhança.
Porque
me irrito profundamente com o barulho, sempre gostei da última frase do
príncipe Hamlet: o resto é silêncio (the rest is silence). Se o resto é
silêncio, desconfio que não ser seja um alívio: “Morrer; dormir; só isso. E com
o sono – dizem – extinguir as dores do coração e as mil mazelas naturais” [1].
Extinguir, também, o barulho. Quem morre está livre do barulho, creio! A morte
é um estado silencioso. Desconfio que seja exatamente por essa razão que as
pessoas escutam música no volume máximo e mantêm televisores ligados 24 horas
por dia. O silêncio lembra que vamos morrer. Mas o que para alguns é
desesperador, para outros, como o poeta Homerinho, é um alívio: “depois do fim, o silêncio:
finalmente!”
Jorge
Luis Borges [2] fez ressalvas às últimas palavras do príncipe Hamlet.
Haveria algo de fingido nelas, como se fossem do autor e não do personagem,
como se Shakespeare estivesse mais preocupado com seu ofício de poeta do que
com o personagem real, como se quisesse impressionar. Para Borges, há algo de
fingimento nas últimas palavras de Hamlet, haveria nelas uma “ressonância
falsa”. Um homem envenenado e à beira da morte não diria “o resto é silêncio”.
Pode ser. Mas as palavras do príncipe realmente impressionam e seduzem. Ainda
mais porque o mundo foi tomado pela ditadura do barulho.
Eu
havia me mudado para uma casa distante fugindo do barulho. Depois que estava
razoavelmente instalado. Organizei o escritório onde leio, escrevo e trabalho.
Ocupei uma das paredes com a estante que comprei para montar minha pequena
biblioteca organizada em três seções: ensaios, ficção e poesia. Já disseram,
acredito que foi Alberto Manguel, que uma boa maneira de conhecer um homem é
pela biblioteca dele. Agrupei os livros por ordem alfabética nas três seções.
Concluído o trabalho, notei que dispunha de cerca de um metro entre o topo da
estante e o teto do escritório. Resolvi preencher o espaço. Coloquei três
coleções de CDs em cima da estante. Noel Rosa, Jazz e Música Clássica. Posicionei
um rádio ao lado. Coloquei também uma pequena fonte que comprei há tempos, com
ilusão de que som das águas cobrisse o insuportável barulho do tráfego. Decorei
o espaço com pílulas que na verdade são versos de poetas consagrados e um
presente que recebi de grandes amigos, uma pequena escultura de resina com Dom
Quixote, Sancho Pança, Rocinante e um burro. Ao lado deles, posicionei uma
grande caixa de som, que ganhei, mas ainda não usei, apesar da legítima vontade
de vingança contra vizinhos barulhentos, cães chorões e maritacas escandalosas.
Na
estranha composição que montei sem perceber os efeitos de imediato, Dom Quixote
e Sancho Pança cavalgam sobre os livros. O escudeiro está montado no burro, tem
os braços abertos e as mãos espalmadas, com os dedos apontados para baixo, como
se não estivesse entendendo alguma coisa. Sancho olha para a esquerda, na
direção do cavaleiro. Dom Quixote está montado no Rocinante, tem o peito projetado
para a frente, como se estivesse cheio de ar, carrega o escudo num braço, a
espada no outro e olha desconsolado para a direita, por cima do escudeiro, como
tivesse avistado uma ameaça terrível. Ao lado de ambos, à direita da pequena
escultura de resina eu havia posicionado a grande caixa de som que não cheguei
a usar. O escudeiro parece não compreender, mas o cavaleiro olha desconsolado
para a caixa de som que tem três vezes o tamanho dele, como se fosse um gigante
invencível. O semblante desconsolado do meu pequeno Quixote de resina sempre me
fascinou e intrigou, mas ganhou ainda mais força e sentido quando posicionei o
cavaleiro perto da caixa de som. Dom Quixote parece querer arremessar escudo e
espada para longe, tapar os ouvidos e fugir: como se soubesse de antemão que a
batalha contra o barulho é uma luta definitivamente perdida.
Notas
[1]
William
Shakespeare. Hamlet. Porto Alegre: L&PM editores, 2010. p. 67
[2]
Jorge
Luis Borges. Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 217.
Publicado originalmente no Passa Palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário