DE VIRA-LATA A PIT BULL: PROLEGÔMENOS PARA UMA TEORIA DOS COMPLEXOS
Era uma vez um país da América do Sul. Na década de quarenta do século XX, um famoso escritor austríaco viu naquelas terras o “país do futuro”, mudou-se para lá e depois se suicidou por ali mesmo.

Era uma terra com muitas águas, que canalizou seus rios e construiu barragens, alagando vales e afogando o povo, tudo para produzir energia e caixa para empreiteiras e outros negócios. Dizia-se que a fartura de água era tanta que até fariam a transposição do rio mais genuinamente nacional: um enxurro de dinheiro encharcou o caixa das construtoras e do agronegócio.


Era uma terra de flora riquíssima, que foi transformado suas matas em pastos e canaviais, foi substituindo suas sementes naturais por outras transgênicas, tudo com a benção multinacional.


Cândido Portinari: Meninos com balões (1936)



Era uma terra de fauna riquíssima, que, no final do século XX, elegeu um presidente que foi mentor de um partido simbolizado por uma ave de bico longo, que habitava as florestas antes de ser extinta. Essa ave de bico longo violava ninhos e se alimentava de ovos de outros pássaros (dizem que por isso virou símbolo do partido, que também se alimentava de ovos de terceiros e também acabou extinto). Depois do homem do partido da ave do bico longo, foi eleito um presidente apelidado com o nome de um fruto do mar, um molusco. Um dos sentidos de molusco é pessoa, animal ou coisa mole (dizem que isso explica o apelido desse presidente). O presidente molusco cunhou uma expressão que ficou famosa: “nunca antes na história desse país”. 

Nunca antes na história daquele país (e do mundo) os preços dos produtos do agronegócio subiram tanto. Aliás, subiram, mas na época latifúndio não era chamado de agronegócio. Tudo que sobe muito despenca depois. Mas... As quedas dos preços do café, do cacau e do açúcar já tinham quebrado muita casa-grande, mas na época casa-grande não era chamada de agronegócio e não era multinacional, enfim, ninguém previu o tombo no futuro do “país do futuro”.  O presidente molusco pegou jacaré na marolinha da alta dos preços dos produtos do agronegócio, e pulou fora antes do tombo.

Em 2012, completou-se o centenário de um escritor e dramaturgo da terra da rica flora. Nos anos cinquenta do século XX, este escritor e dramaturgo cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para definir o sentimento de inferioridade do seu povo, que seria uma espécie de “narciso às avessas”, “que cospe na própria imagem”. Mas isso foi antes do presidente molusco e da alta dos preços dos produtos do agronegócio.

Nunca antes na história daquele país (e do mundo) os preços dos produtos agrícolas permaneceram nas alturas, as asas dos preços eram fixadas com cera, e o país despencou como Ícaro, e como Sísifo, já que a tragédia se repetiu como já tinha acontecido com o café, o cacau e o açúcar. A afoiteza juvenil afogou o país das muitas águas.



Em 2062, o presidente molusco e o partido da ave de bico longo já tinham sido esquecidos. O agronegócio passou a ser chamado de agricommerce e os senhores de engenho de businessmen, estes senhores criaram e dominaram outros partidos para lhes servir. Lendo sobre Ícaro e “complexo de vira-lata”, um jovem historiador cunhou a expressão “complexo de pit bull”, que é uma espécie de “complexo de vira-lata” às avessas, e que existiu quando o país da rica fauna começou a se achar forte e poderoso, isso aconteceu na época do presidente molusco e da sua sucessora, que acabou esquecida sem ser melhor estudada. Segundo o jovem historiador, o “complexo de pit bull” teve três causas: a hipertrofia do crédito, da propaganda e dos preços dos produtos agrícolas. O “complexo de pit bull” fez as asas da imaginação voarem cada vez mais alto, até que a cera derreteu e veio o tombo. Falava-se da solidez dos fundamentos da economia. Dizia-se que a musculatura do país era rija como a do pit bull, mas de pit bull só havia a coleira e a focinheira. O país desabou junto com os preços dos produtos que exportava. Então o povo da terra da rica flora teve saudades da época do “complexo de vira-lata”, porque podia, pelo menos, brincar solto pelas ruas, balançar o rabo e correr atrás de bola.

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom hehe