TRUMP, O OCIDENTE, O CHANCELER, O EX-PREFEITO, O ROMANCE E A CRISE

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A nomeação do futuro ministro das relações exteriores do governo Bolsonaro causou certo alvoroço. O sujeito, Ernesto Araújo, não cabe nos protocolos diplomáticos: afirma sua crença religiosa apesar de compor o alto escalão do Estado, que, por enquanto, é laico. O religioso atravessa a fronteira onde começa o diplomata, sem peso na consciência.

Como era desconhecido, alguém teve a ideia de procurar o que o chanceler escreveu, foi quando encontraram o ensaio Trump e o Ocidente.¹ Publicaram-se algumas dezenas de notícias sobre o ministro e suas ideias, mas sem ler atentamente o ensaio e muito menos o blog do sujeito, ou seja, com a superficialidade característica da mídia empresarial.

Em palestra nos EUA, analisando o cenário pós-eleitoral, o ex-prefeito de SP e candidato derrotado à presidência, Fernando Haddad², afirmou que Araújo classifica a Revolução Francesa como marxista. Foi o que me fez procurar o ensaio Trump e o Ocidente. Como alguém poderia ser tão tolo? Primeira surpresa. Tolo é Haddad, que se meteu a falar de um escrito que não leu, ou que conheceu pela mídia empresarial, porque está lá, textualmente:

“Dessa última década do século XVIII e começo do século XIX surgem todas as linhagens espirituais e políticas que disputam o mundo até hoje. Pode-se argumentar que qualquer corrente política, hoje, descende intelectualmente de Babeuf e Robespierre ou de Goethe e Chateaubriand.”

O marxismo é herdeiro da Revolução Francesa. É possível pensar que sem esta não haveria aquele. O pensamento de Marx pode ser lido como uma radicalização da Revolução Francesa. É a Comuna de Paris, em 1871, esfregando na cara da burguesia que não haveria liberdade, igualdade e fraternidade sem a socialização dos meios de produção.   

Ao dizer que Araújo disse que a Revolução Francesa era marxista, ou ex-prefeito não leu o ensaio do chanceler, ou não entendeu, ou distorceu deliberadamente as ideias. Parece-me que a primeira opção é mais plausível.

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Trump e o Ocidente inicia com uma imagem do futebol americano, o que sugere a afiliação ideológica e a pretensão literária do autor. Conforme a leitura avança, surgem comparações e ironias, reforçando a suposição de que há um veio escritor no chanceler, o que não lhe dá razão, longe disso.

Camões, Jung, Pessoa, Horácio, Heródoto, Virgílio, Platão, Spengler, Heidegger, Nietzsche e outros são lançados no ensaio do chanceler.

Para Araújo, o ocidente surge quando os gregos derrotam os persas na batalha de Salamina. O autor localiza ali o nascimento da noção de pátria. Ele cita Ésquilo, que diz que em Salamina os gregos cantavam: “Avante, ó filhos de helenos, libertai a pátria, libertai vossos filhos, vossas mulheres, os templos de vossos deuses, os túmulos dos ancestrais, agora mais que nunca”. Segundo Araújo, Salamina marca o nascimento do Ocidente: como vitória militar e como “transposição literária” pela pena de Ésquilo. Em Salamina, segundo o chanceler, estavam em questão a família, a herança cultural e os deuses gregos, e não conveniências geoestratégicas, como rotas comerciais. Araújo desloca a análise dos territórios geográficos e econômicos para o “território do espírito”, reivindica que a geopolítica seja completada pela teopolítica. Trocando em miúdos: é o velho e surrado idealismo, a primazia do espírito sobre a matéria. Araújo3: “Tudo existe graças ao logos, enquanto princípio mantenedor e também criador.” O limite é que as ideias e fatos surgem e desaparecem por milagre e sem conexão com a realidade material: como se a ideia de pátria não tivesse relação com a história social e econômica, como se aquela precedesse e determinasse esta (Araújo: “a pátria e a liberdade já surgem como conceitos inseparáveis naquele dia no final do verão de 480 a.C.”); como se Trump quisesse reviver o Ocidente, e não expandir mercados consumidores e fornecedores; como se as rodas da história fossem giradas pela vontade de um homem (Trump), e não pelas mãos e pelo suor do rosto de bilhões de trabalhadoras e trabalhadores; como se a guerra contra o Islã fosse uma luta “pela preservação do espaço espiritual do Ocidente”, e “não um projeto imperialista.” O real aparece invertido, como se o chanceler enxergasse o mundo pelo retrovisor.

O pensamento idealista do ministro começa e termina em Deus: “Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar-nos, dar-nos sentido – se Ele o quiser, se nós O quisermos”.¹

A novidade é que o velho e surrado idealismo em versão tupiniquim – tradição, família e propriedade privada – saiu do armário: bate no peito e grita truco. Podem ser feitas muitas críticas ao ensaio do chanceler, menos que ele esconde o que pensa. Para o bem e para o mal, Trump e o Ocidente ultrapassa o reformismo surdo-mudo, que comunica nada a ninguém. Exemplo: enquanto Haddad diz que a crise é financeira e a questão é domar o capital financeiro² (como se fosse possível?); para Araújo o Ocidente é um time que está perdendo uma partida a poucos segundos do fim, e joga por uma bola, que está com Trump. A crise é muito mais profunda para Araújo do que para Haddad; este quer se projetar como maquinista do capital, aquele sente que o modo de produção capitalista é um cargueiro afundando. Sendo assim, a proposta conservadora e reacionária do último é mais concreta do que o reformismo surdo-mudo do primeiro, o que ajuda a explicar o fortalecimento da extrema-direita, que lança a tradição e a família como botes salva-vidas.

Se o modo capitalista de produção é um cargueiro afundando, se não se coloca sua superação (o reformismo passa longe do socialismo), se o contraponto à extrema-direita é o reformismo à lá Haddad: se impõe o salve-se quem puder, e o programa da extrema-direita torna-se a opção menos pior. Se há no mundo milhões de homens e mulheres que não servem sequer para serem explorados pelo capital, que prescinde das suas respectivas forças de trabalho; se não se coloca o socialismo como alternativa; só resta controlar e reprimir a massa de excluídos. É aqui que o programa da extrema-direita supera o reformismo surdo-mudo, porque assume e defende abertamente aquilo que o outro diz que não faria, mas fez e faz. Mantido o capitalismo, a repressão é inevitável, a diferença é que a extrema-direita defende abertamente a militarização e a violência, enquanto o reformismo surdo-mudo condena ambas apenas no discurso, que se autoproclama democrático (mas quem estava nas ruas em junho de 2013 sabe bem o que Haddad fez naquele outono).

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Com suas lentes tripartites (tradição, família e propriedade privada), Araújo vê em Trump um legítimo herdeiro da batalha de Salamina, alguém disposto a ir à guerra em nome da família e da tradição (patriarcal e monogâmica para as mulheres, com acesso liberado às zonas de tolerância para os homens). O idealismo surrado não permite que o chanceler veja que, na aparência, batalhas podem ser travadas em nome da família e da tradição, mas na essência, a questão fundamental é a defesa e a ampliação da propriedade. Mais precisamente: fornecedores de matérias-primas, novos mercados, rotas comerciais serão alvos de Trump; a religião e os costumes dos povos atacados importam apenas para os fabricantes de justificativas ideológicas.

Para o chanceler, não é o modo capitalista de produção que afronta fronteiras e altera valores e tradições, provocando fluxos migratórios, questionando a família patriarcal etc. Porque analisa a construção social por cima, o ministro só vê o telhado (ideias) e não as fundações (estrutura econômica). Para ele, a crise capitalista não tem relação com a queda das taxas de lucro, tendência prevista por Karl Marx e até pelo insuspeito David Ricardo; o problema, para o chanceler, é o “niilismo” dos “philosophes ateus anticristãos”, que estariam por trás da Revolução Francesa, que é enxergada como um movimento contrário ao Ocidente fundado em Salamina.

A crise do capital força os defensores da propriedade privada dos meios de produção, como o chanceler, a renegar a herança burguesa. O surrado idealismo tupiniquim condenar a Revolução Francesa atesta que, para manter o capitalismo, o pensamento burguês foi forçado a abrir mão de qualquer perspectiva democrática e/ou progressista. Ou seja, se o capital foi progressista nos seus primórdios, atualmente ele é um cadáver insepulto que ameaça a saúde coletiva do planeta. Araújo usa a tradição e a família como botes salva-vidas no naufrágio do modo de produção capitalista.

A visão invertida da realidade é hilária: “O globalismo surgiu quando alguém percebeu que o consumismo era o melhor caminho para o comunismo.”4 O consumismo deixa de ser um imperativo do capital e se transforma em estratégia comunista... Mas a possibilidade de superação do capitalismo aparece no retrovisor do chanceler. Este é o ponto interessante. Enquanto para o reformismo surdo-mudo a história acabou e trata-se de administrar o possível; para o velho e surrado idealismo tupiniquim a questão é se reposicionar para combater o novo.   

Seja como for, pensar que o Ocidente é uma equipe que, no final da partida, depende de uma bola que está com Trump... Que ideia atroz! Trump? Uma bola? Se a imagem do chanceler estiver correta, o Ocidente já era!

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As polêmicas... Insustentável doçura do bate e rebate. Uma das qualidades mais nobres de um escritor é fazer rir: Cervantes, Kundera, Drummond, Machado, Nelson Rodrigues, Veríssimo (o filho), Hasek e outros. Quanto ao chanceler, questão intrincada é definir se suas piadas são engraçadas, ou se ele próprio provoca o riso por se transformar em piada. Como quando diz que é possível comprovar empiricamente a existência de discos voadores, bastando, para tanto, que algum apareça à luz do dia e se mostre a todos; o mesmo podendo ser dito de um corvo branco, porque os corvos serem pretos não garante absolutamente que não possa aparecer um branco; mas a existência de um marxista intelectualmente honesto, diferentemente dos discos voadores e dos corvos brancos e de acordo com o chanceler, é uma impossibilidade, porque o marxismo teria nascido da mentira e obrigaria a mentir.5 Independente de saber se a graça vem da piada ou do autor que se transforma em piada, uma coisa é certa, ainda que não parta para o combate franco, o chanceler identifica seus inimigos (marxistas), e ataca-os com as armas que dispõe.

Em polêmicas a melhor defesa é o ataque e perguntar é sempre melhor que responder. No ensaio Trump e o Ocidente, o chanceler provoca:

“O Ocidente nasceu interrogando o sentido das palavras, mas ultimamente desistiu. Se Sócrates chegasse hoje e, usando seu famoso método, começasse a perguntar: ‘o que é racismo?’, ‘o que é justiça social?’, ‘o que são direitos humanos?’, ‘o que é um direito?’, ‘o que é humano?’, e se pusesse a desmascarar a inanidade intelectual e a superficialidade destes e de outros conceitos, seria novamente condenado a beber cicuta.”

Mas e se Sócrates voltasse e fosse bater um papo com o ministro: “o que é globalismo?”; “o que é marxismo cultural?” e, sobretudo, “ se o ocidente é, de certa forma, uma criação literária, como o Sr. diz, e se o Ocidente nasce também como transposição literária, com Ésquilo,  por que o Sr. exclui o romance, como se este não fosse parte fundamental da história do Ocidente?”

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Por que o chanceler, apesar do suposto veio escritor, separa o romance da história do Ocidente? Por que ele apaga o romance da história? Por que o defensor da família separa o pai (Ocidente) do filho ilustre (romance)? Por que o ministro cita o presidente estadunidense, que associa o Ocidente à arte (“as obras de arte inspiradoras que honram a Deus”), e nada diz sobre o romance?

Arrisquemos-nos por estas veredas perigosas. Araújo exclui o romance porque teme este filho pródigo do Ocidente, se pudesse ele abortaria o romance, este filho zombeteiro do Ocidente que nasceu entre a França de Rabelais, a Espanha de Cervantes e a Irlanda de Sterne. Romance: a “mais européia das artes”.6

Milan Kundera7: “O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.” Porque interroga, porque mostra a insuperável ambigüidade da vida e porque rasga as cortinas das zonas de tolerância: o chanceler não tolera o romance. Emma Bovary e Ana Karênina: hipocrisia da família e da tradição patriarcal. O bom soldado Svejk: covardia das guerras. Brás Cuba: hipocrisia da burguesia brasileira.

O romance é banido do pensamento do chanceler pela mesma razão que tudo que ameaça o kitsch é banido da vida. E o que é o surrado idealismo tupiniquim – tradição, família e propriedade – senão um grande kitsch?

Kundera7 outra vez: “Se digo totalitário é porque, nesse caso, tudo aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), e também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o sacrossanto amai-vos e multiplicai-vos.”

Araújo teme o romance e a herança de Cervantes porque ambos depõem contra o Ocidente carola. Daí a ilustre ausência do romance no pensamento do chanceler. Poderia dizer que é mais fácil encontrar um corvo branco do que o surrado idealismo tupiniquim ser honesto intelectualmente, mas basta destacar que a amputação do romance da história do Ocidente testemunha a decadência do pensamento burguês. O romance é um tapa na cara do idealismo carola!

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Num arroubo de sandice, o chanceler registra que “alma humana é nacionalista”.¹ Ora, ora, ora. Se o conceito de pátria nasceu na Grécia no final do verão de 480 a.C, durante a batalha de Salamina, como quer o ministro, é de se pensar que a “alma humana”, que segundo ele é “nacionalista”, deve ter surgido mais ou menos na mesma época.

O raciocínio acima vai dar na legitimação da conquista e da submissão de povos. Mas por aqui nos limitemos a refletir sobre o nacionalismo do chanceler? Que nacionalismo é esse? Curioso notar que o Brasil quase não aparece nos textos do ministro. Nem Pixinguinha, nem Machado de Assis, nem Aleijadinho, nem Drummond, nem o samba, nem o choro, nem o futebol. Sintomático Araújo começar seu ensaio com uma imagem do futebol americano, jogado com as mãos; e não com o futebol jogado com os pés, esporte no qual o Brasil é referência. O chanceler troca os pés pelas mãos.   

Mas o chanceler não morre de amores por Hollywood, nem outros enlatados. É o idealismo carola que faz o ministro aderir aos USA das seis às seis, sem reservas e sem ressalvas. Araújo: “a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA”¹. Ele novamente: “Não se deve ler Trump pela chave das relações internacionais ou da ciência política, mas sim da luta titânica entre a fé e a sua ausência”.¹

Ao mesmo tempo em que acusa o marxismo de negar o gênero e a nacionalidade, Araújo inaugura o nacionalismo transpátrida, que não se reconhece no país natal e bate continência para o sub do sub dos EUA.

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Excetuando-se uma referência breve às Teses sobre Feuerbach, não há indícios de que Araújo tenha lido Marx, mas, mesmo assim, este é o principal inimigo daquele. Imagine, de John Lennon, é o pior pesadelo do ministro: um mundo sem paraíso, sem inferno, sem religiões e sem fronteiras.6 O chanceler não percebe que é o capital – e não o marxismo – que cria condições para a existência do mundo cantado por Lennon (sinal de que Araújo não leu Marx).

O marxismo levar a culpa pelas possibilidades colocadas pelo capital é sinal inequívoco de que o chanceler troca os pés pelas mãos. Mas vale a pena ler os textos do ministro. O pensamento de Araújo é a nudez sem véus do idealismo carola. Por falta de referencial teórico e porque analisa apenas ideias – e não a estrutura econômica da sociedade –, Araújo¹ apenas intui e enxerga a crise de forma parcial, “como decadência e declínio da cultura”: o Ocidente está perdendo a partida e joga por uma bola que está com Trump. O correto seria trocar Ocidente por capital, mas é exigir demais do chanceler.

Ao registrar que o ocidente está fundado sobre “batalhas e milagres, paixões e guerras, a cruz e a espada”, e não sobre tolerância e a democracia¹, o chanceler dá a entender que tudo vale a pena se for para garantir a tradição, a família e a propriedade privada: é a nudez sem véus do idealismo carola. O discurso é mais realista do que a “narrativa” do reformismo surdo-mudo, que insiste na defesa da “democracia”, como se esta fosse possível na era da crise do capital. Para usar a imagem de um amigo comunista: é mais fácil ensinar um leão a comer alface.

Por fim, os arroubos de sandice e o desespero do chanceler são o reflexo da atualidade do pensamento de Marx, único referencial capaz de reorganizar um mundo em decomposição, simples assim!

REFERÊNCIAS

1 Araújo, E. H. F. TRUMP E O OCIDENTE. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf. Acesso em: 30 de nov. 2018.

2 HADDAD APONTA O CENÁRIO PÓS-ELEITORAL EM NOVA YORK. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZrznFDCSGQc. Acesso em 04 de dez. 2018.

3 Araújo, E. H. F. VIVA A POLARIZAÇÃO. 

4 Araújo, E. H. F. A NAÇÃO ESTÁ VOLTANDO. 

5 Araújo, E. H. F. OBJETOS VOADORES NÃO IDEOLÓGICOS. 

6 Kundera, M. OS TESTAMENTOS TRAÍDOS. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

7 Kundera, M. A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER. 63 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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