A CORAGEM CONTRA O PURITANISMO: O MANIFESTO DAS FRANCESAS

 

A seção Fragrantes Delitos do Passa Palavra promoveu debates interessantes sobre questões de gênero, ver Cancelamento (5), Mais feminista que eu, Medo maior. Entre os comentários apareceram sacadas como, por exemplo: Fernando Paz: “Continuo carregando a certeza de que sexo sem fantasia é fricção!” e John: “que triste seria se a vida se resumisse à literalidade”. A leitura dos Fragrantes Delitos e dos comentários me fez lembrar do Manifesto das cem francesas contra o puritanismo, que continua atual.

 

Cinquenta anos depois dos levantes de 1968, no início de 2018, veio a público o manifesto das francesas contra o puritanismo. Foi um texto corajoso que atuou efetivamente como manifesto: arriscando, denunciando, desnudando, incomodando, irritando, ironizando, polemizando, provocando e, sobretudo, obrigando a pensar. O que contrasta com as insossas e irrelevantes notas de repúdio que pipocam por aí. As signatárias foram atacadas por todos os lados, seriam: burguesas, libertinas, defensoras reincidentes de pedófilos, apologistas do estupro e por aí vai. Mas é característico do puritanismo deslegitimar moralmente os interlocutores para inviabilizar o argumento, ou seja, a reação pós-manifesto era previsível.

 

Denúncias contra assédios cresciam, chegando, inclusive, a atingir figurões de Hollywood. Problematizando o movimento #metoo, as cem intelectuais francesas defenderam, para espanto geral, que “a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar.” Partindo do filósofo Ruwen Ogien, que “defendia uma liberdade de ofender indispensável à criação artística”, as signatárias do manifesto defenderam, perigosamente, a “liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”. Em tempos moralistas e puritanos, parece escandaloso, mas é difícil flertar sem se arriscar, em alguma medida, a importunar. O manifesto fala dos homens cujo “único erro foi ter tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falar sobre coisas ‘íntimas’ em um jantar profissional ou ter mandado mensagens com conotação sexual a uma mulher cuja atração não era recíproca.” A questão, nos termos do manifesto, é “não confundir paquera desajeitada com agressão sexual.” Mas como? Onde termina uma coisa e começa a outra? Em que ponto a liberdade se transforma em agressão? São os riscos que correm as signatárias; são, também, questões delicadas que precisam ser resolvidas.  

 

Mas, por outro lado, a crítica contida no manifesto é certeira: a “febre para mandar os ‘porcos’ ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a conquistar sua autonomia, serve na verdade aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que os envolve, que as mulheres são seres ‘à parte’, crianças com rosto de adultos, que pedem para ser protegidas.

 

O crescimento das denúncias colocou o problema em discussão, o que é importante; mas, ao mesmo tempo, o princípio da presunção de inocência e o direito ao contraditório e à ampla defesa foram praticamente abolidos. Curiosamente, no Brasil, enquanto se discutia se a justiça burguesa, com seus limites evidentes, podia prender condenados julgados em segunda instância, os tribunais da internet igualavam acusar a condenar, acolher a vítima com punir o suposto agressor, sem julgamento e sem direito ao contraditório e à ampla defesa. O que é um tremendo retrocesso civilizatório. A simples utilização do adjetivo “suposto” podia render acusações de cumplicidade com o machismo e os machistas.

 

Como denunciaram as francesas, se prevalecer, o puritanismo vai posicionar a mulher na condição de eterna vítima e o homem como agressor contumaz, o que ajuda a explicar por que a simples utilização do adjetivo “suposto” incomoda. É que as condenações já estão prédeterminadas. Ganha quem quer a abolição da liberdade sexual e a imposição da moral cristã. À mulher será permitido responder sim ou não, sem nunca tomar a iniciativa ou se colocar de maneira ativa. Ao homem será permitida a “liberdade” dos bordéis, das zonas de tolerância, do sexo pago, da pornografia e nada mais. Ou seja, é a sociedade patriarcal se reposicionando.

 

Alguns setores do puritanismo lutam para ressignificar o pecado original: em vez de provar o fruto da árvore do conhecimento, ser homem heterossexual. Em alguns grupos de esquerda dominados pelo puritanismo já é assim, e coitado daquele (homem heterossexual) que não se arrepender dos próprios “privilégios”. O risco é o combate ao esquerdomacho produzir o esquerdomocho.

 

O manifesto das francesas criticou um projeto de lei sueco que tentava impor aos amantes o consentimento expressamente notificado, as signatárias sugerem que falta pouco para exigirem que os casais tenham que informar, previamente, as práticas sexuais que aceitam e que recusam. Não duvido que, em breve, declarações prévias de consentimento sexual sejam exigidas e compartilhadas em grupos dominados pelo puritanismo. Por isso é prudente pontuar que o amor e, sobretudo, o erotismo fogem dos cartórios, da formalidade, do comércio e das declarações prévias de consentimento.

 

Mario Vargas Llosa [1] afirma que o erotismo representa um momento elevado da civilização e é um dos seus componentes determinantes: “para saber até que ponto é primitiva uma comunidade ou quanto ela avançou em seu processo civilizador nada é tão útil como perscrutar seus segredos de alcova”. Em outro ensaio, Vargas Llosa [2] coloca o erotismo como contrapartida ou desacato à norma, um desafio aos costumes estabelecidos: “trazido a público, vulgarizado, degrada-se e eclipsa-se, não realiza a desanimalização e a humanização espiritual e artística da atividade sexual que outrora possibilitou.”

 

Por fim, vale lembrar que a palavra libertino tem o sentido de desacato e desafio a Deus e à religião em nome da liberdade. Já o puritanismo é sempre um combate contra a liberdade: uma tentativa de conter, conservar, enquadrar, limitar e, no limite, eliminar. Daí a atualidade e a coragem do manifesto das francesas, que é uma defesa do amor, do erotismo e do corpo, apesar dos riscos. 

 

Notas

 

[1] As ideias e o trecho citado estão no ensaio O desaparecimento do erotismo, que compõe o livro A civilização do espetáculo.

 

[2] As ideias e o trecho citado estão no ensaio A civilização do espetáculo, que compõe o livro homônimo. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

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