CRÍTICA: JULIET, NUA E CRUA, DE NICK HORNBY

Era sexta-feira, véspera de carnaval. Procurava um livro no sebo como quem procura um amor em baile de carnaval. Corria os olhos pelo silêncio das prateleiras, flertava com as lombadas, acariciava orelhas e capas. Até que, depois de Cervantes e Kundera, lá no N, encontrei Juliet, Nua e Crua, de Nick Hornby. Nunca tinha ouvido falar nem de Juliet nem de Hornby. Tão importante quanto encontrar um livro é ser encontrado por um livro.

A chuva caiu, que chuva. Só tive tempo de atravessar a rua e me abrigar no boteco. Três cervejas e sessenta páginas depois (uma cerveja para cada vinte páginas), estava grudado no livro, como casal de baile de carnaval.

Juliet, Nua e Crua é um triângulo desamoroso, meio torto, formado por um casal inglês (Duncan e Annie) e um rockeiro estadunidense (Tucker Crowe). Duncan e Annie são um casal normal, como milhões de outros, que se separam e buscam parceiros pela internet e outros meios. Crowe é um rockeiro que, sumido por décadas, continua sendo seguido por centenas de idiotas, como Duncan, que mantém um site sobre o ídolo. Um dia Duncan recebe uma demo inédita de Juliet (único disco de Crowe), o relançamento chama-se Juliet, Nua e Crua, sua única finalidade é levantar alguns trocados para a gravadora e o rockeiro. Annie ouve antes do marido, que fica indignado, e considera o ato dela uma falha moral grave. Superado o problema, Duncan escreve uma resenha para viralizar na net, Annie resolve escrever também. Ele diz que a demo é tão espetacular que supera o disco acabado. Ela escreve que a demo é uma bosta. O rockeiro, que estava sumido há décadas, reaparece e se comunica por e-mail com Annie, diz que finalmente alguém tinha escrito algo que prestava sobre seu trabalho. Daí para frente o romance começa a fazer o que só o romance pode fazer: integra diálogos presenciais, conversas por e-mail, relatos, notícias, críticas e, sobretudo, brinca.

No boteco, a vinte páginas por hora e por cerveja: eu lia e ria. Dobrava o canto das páginas, para grifar depois, porque estava despreparado, sem lápis nem lapiseira. Há uma qualidade que encontrei em poucos escritores: fazer rir: Cervantes, Machado, Drummond, Nelson Rodrigues, Kundera, Veríssimo e, mais recentemente, Nick Hornby. Não é pouco.

Kundera registra que há uma palavra tcheca sem tradução em outros idiomas: litost, que é um estado atormentador provocado pelo espetáculo da nossa própria miséria subitamente revelada. Hornby faz rir porque expõe nossa miséria – a miséria intelectual e moral das primeiras décadas do século XXI – aos poucos, sem solavancos. Exemplo:

“Os dois haviam se mudado para a mesma cidade inglesa à beira-mar na mesma época: Duncan, para terminar sua tese, e Annie, para lecionar. Haviam sido apresentados por amigos em comum que perceberam que, no mínimo, eles podiam conversar sobre livros ou música, ir ao cinema e ocasionalmente viajar a Londres para ver exposições e sessões de jazz. Goolness não era uma cidade sofisticada. Não havia cinema de arte, não havia comunidade gay, não havia nem uma filial da livraria Waterstone’s (a mais próxima ficava na estrada em Hull), e fora um alívio poderem recorrer um ao outro, começaram a tomar uns drinques juntos durante as tardes e a dormir um na casa do outro nos fins de semana, até que, finalmente, esses pernoites viraram algo indistinguível de coabitação. E eles haviam ficado assim para sempre, empacados num eterno mundo pós-universitário, em que sessões de jazz, livros e filmes eram mais importantes para eles do que outras pessoas da mesma idade.”

Atire todas as pedras no Hornby quem nunca viveu algo à lá Annie e Duncan, quem tem menos de 30 anos não vale, porque a casal do romance é quarentinha. Se litost é um estado atormentador provocado pela nossa miséria subitamente revelada, como um ataque de fúria sem nenhuma razão; Juliet, Nua e Crua é a nossa miséria exaustivamente reexposta, como o sexo pré-agendado para os sábados à noite, depois do programa de entrevistas. Contra e apesar das “centenas de especialistas e publicações”, que defendem o agendamento do inagendável, Horny lembra que trepar é “algo necessário e assustadoramente incontrolável”, ou, pelo menos, deveria ser.

Contra e apesar da crítica, que vê em Juliet um diálogo com a cultura pop, o livro de Hornby é, sobretudo, um diálogo com a história do romance, explora os calos da vida nas primeiras décadas do século XXI. Como escreveu Kundera, é imoral o romance que não explora algum aspecto inexplorado da existência, o livro de Hornby supera este obstáculo.

Em tempos de miséria exposta e reexposta, a dieta mais saudável é a que incorpora fartas porções pessimismo, ou seria de lucidez? Juliet é a vida como ela é, nos termos rodrigueanos, ou nua e crua, como no título do romance. Mas o importante é que, apesar de tudo e contra todos, é possível rir. O homem é um bicho que ri, escreveu Rabelais, nos primórdios do renascimento. Nas primeiras décadas do século XXI, contra tudo, contra todos e quase quinhentos anos depois de Rabelais: o homem ri.


Juliet, Nua e Crua, é como um amor de carnaval: excitante, engraçado, sedutor, ridículo, passageiro; um amor para reencontrar em outros carnavais: para gozar, rir e sumir. 


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