A doçura do rebate

Meu caro amigo Olavo, será este nosso diálogo, agora internético, manifestação do eterno retorno? Tudo se repetindo como já foi vivido. Peso e leveza no lugar de mais valia e taxa de lucros. Alteram-se as categorias, prossegue a polêmica.
Conclui meu texto dizendo que o livro de Kundera é muito mais do que uma simples crítica ao socialismo degenerado, trata-se de um embate contra o acordo categórico com ser1, que é o ideal estético-filosófico da direita. Mantenho essa posição, mas ainda há coisas por dizer. Há uma ferida que, no meu texto, preferi contornar: o posicionamento político de Milan Kundera. Minha ideia era aprofundar depois, é o que tento fazer. Teu texto é um incentivo. A publicação destes materiais talvez interesse a alguém.
Não prejudica em nada a qualidade estética da obra, mas é fato que Kundera dá passadas de onça para o lado da direita. Afirmar que o kitsch2 é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos... Que a fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o kitsch... É direitismo para corar até o teu xará, que é de carvalho no nome e de alface nas ideias.

Fico pensando se Kundera arriscaria despejar alguns homens políticos na sacola do kitsch. Marx? Lenin? Lukács? Bakunin? Che? Brecht? Rosa Luxemburgo? De duas uma: ou a contribuição dessas pessoas é menor, ou a generalização de Kundera é absurda. Fico com esta última.

Kundera afirma e você endossa que desde a Revolução Francesa, metade da Europa se intitulou de esquerda e a outra metade recebeu a classificação de direita. É praticamente impossível definir uma ou outra destas noções através dos princípios teóricos em que elas se apóiam. Não há nisso nada de surpreendente: os movimentos políticos não se baseiam em atitudes racionais, mas em representações, em imagens, em palavras, em arquétipos, cujo conjunto constitui esse ou aquele kitsch político.

Não é segredo que o inconsciente joga considerável peso na determinação das concepções em geral, políticas inclusive. Até aqui há acordo. Mas afirmar que os diversos posicionamentos políticos derivam de diferentes kitsches é demais. A quem interessa esse mito insensato? O argumento de Kundera, que é essencialmente político, deve ser também enquadrado no reino kitsch? É uma ideia suicida que se inviabiliza ao ser formulada? Ou o escritor é capaz de levitar livremente sobre o muro que separa a esquerda da direita? Como a revolução demanda engajamento, a despolitização promovida por Kundera milita pela direita. Se seguirmos por este caminho é possível apontar diferenças políticas e teóricas que Kundera não consegue enxergar.

Do que derivam as representações, imagens, palavras e arquétipos que condicionam os movimentos políticos? Se a origem do kitsch é o acordo categórico com o ser, se todos os movimentos políticos se baseiam no kitsch, por que os revolucionários insistem em transformar o mundo? O mundo não foi criado como devia ser? O ser humano não é bom e deve procriar?

Kundera não vê, ou não quer ver, que o kitsch e o acordo categórico com o ser fundamentam os reacionários. Se o primeiro capítulo do Gênese está correto, se o mundo foi criado como devia ser, se o ser humano é bom; é preciso salvaguardar a ordem estabelecida, que é boa, justa e valiosa Quem firma o acordo categórico com o ser se alista na defesa do status quo. Sendo assim, é legítimo definir os estalinistas como reacionários, afinal, eles defendiam a ordem firmada; por outro lado, generalizar a crítica a toda a esquerda é uma posição conservadora.

Não existe outra espécie de acordo categórico com o ser, como você sugere. Nós dois e tantos outros só podemos ser definidos por nosso desacordo categórico com o ser3. A questão é o que cada um faz a partir daqui. O filho de Estalin, Yakov, se matou quando o real rechaçou qualquer possibilidade de acordo com o ser. Enxergo o auto-aniquilamento de Yakov em termos de peso e não de leveza.

Concluir que a vida não tem qualquer sentido transcendental não implica em optar pelo suicídio, quem assim procedesse apenas expressaria o quanto carece de deus. A vida é uma contingência total. E daí? Não é isso que determina que a vida seja insuportável. O suicídio é uma possibilidade é não um caminho obrigatório, uma conclusão lógica.

Quando falo em engajamento não me limito à política, trata-se de engajar-se na vida. A leveza total seria a ausência completa de engajamento, um tanto faz absoluto. Me parece que é este tanto faz absoluto que Kundera classifica como insuportável. Se tudo tivesse a mesmíssima insignificância, seríamos plenamente indiferentes. A leveza absoluta é uma tomada de posição que excluiria todas as demais, ou melhor, depois de optar pela leveza o homem se tornaria totalmente indiferente nas suas escolhas. Levitaria como uma pluma. Se fosse totalmente leve, Tomas poderia assinar sua retração se reconciliando com os estalinistas, e seria indiferente entre seguir a medicina ou qualquer outra profissão, mas isso não ocorre, Tomas se realiza como médico, e isso é uma forma de engajamento. Se fosse totalmente leve, Tereza poderia assistir a invasão de seu país sentada no sofá, mas ela optou por fotografar os tanques russos. Lembremos que estes foram os melhores dias de Tereza, por quê? É neste sentido que afirmo que o engajamento rebate a insuportabilidade da leveza.

A vida não é essencialmente insuportável, até porque neste ponto também estamos diante de um significador humano de sentido, para um lado e para o outro. A questão é ser coerente com as escolhas. A vida pode se tornar insuportável à medida que a leveza avança. É sintomático que somente Sabina experimente a insuportável leveza do ser, justo ela que é leve (pelo menos no amor). Repare que Tomas não é vitimado pela insuportável leveza do ser, exatamente porque ele não é leve. Sua leveza amorosa se dissolve quando um cesto com um bebê desce o rio vai parar na sua porta, a partir deste dia Tomas experimentou o amor, que para ele nada mais é do que o desejo do sono compartilhado. Sofreu com o peso de seu engajamento, mas não padeceu da insuportável leveza do ser.

É interessante observar que Tomas também se realiza como cirurgião, o que é, como já foi dito, uma forma de engajamento. Ou seja, o homem se realiza no trabalho não alienado. É sempre bom lembrar que o trabalho alienado é uma condição historicamente determinada, nem sempre foi assim. E aqui Marx surge como referência. A insuportável leveza do ser é em boa medida historicamente determinada.

A gratuidade da vida não lhe confere um caráter ontologicamente insuportável. Isso só ocorre para os que carecem de deus e de um sentido transcendental. Penso exatamente o contrário: a vida seria insuportável se existisse o Grande Organizador (deus). E isso pela simples razão de que, se assim fosse, o espírito criador do ser humano seria tolhido. Deus seria o limite, o Grande Castrador. Criatura não supera o criador. A leveza é capitulação na medida em que nega o espírito criador. Da arte à política, toda criação é pesada.

Fico pensando se não há um kitsch kunderiano. Sabemos que a história é suja e se escreve com sangue. Se é assim, dá para pensar que a despolitização pregada por Kundera é uma forma de negar a merda. Lembremos que o autor afirma que todos seus personagens são o conjunto de suas possibilidades não concretizadas. Eles são capazes de combater a ocupação da Boêmia com fotos, mas defenderiam seu país com balas? Me parece que não. Porque ao dar este passo é preciso pegar um caminho sem retorno que não exclui o derramamento de sangue próprio ou de terceiros.

Para finalizar, digo que não existe tomada de posição que não seja nem pela direita e nem pela esquerda. A luta de classes é o motor da história. Num mundo dividido entre uma minoria que explora e uma maioria explorada, é um grande kitsch imaginar que exista uma posição que não é nem pela direita e nem pela esquerda. Numa guerra não há três trincheiras.

JC


Pequeno léxico categorial


1º) Acordo categórico com o ser: crença segundo a qual o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar.

2º) Kitsch: negação absoluta da merda; tanto no sentido literal quanto no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

3º) Desacordo categórico com o ser: crença segundo a qual o mundo não é o como deveria ser, sentimento de que o homem é explorado pelo homem, estranhamento, inadequação.

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