MILAN KUNDERA 90

Sempre me deparei com livros de Milan Kundera nos sebos. Lembro-me do nome enigmático registrado nas lombadas brancas (a maioria das edições tinham lombadas brancas). Eram filas às vezes com dez ou mais livros de alguém que eu desconfiava ter sido best seller, ainda que não soubesse se Milan era uma escritora ou um escritor, nem de onde era aquela escritora ou aquele escritor, que só depois soube tratar-se de um tcheco exilado na França.

Foi a desconfiança em relação aos best sellers que me impediu de chegar antes aos livros de Milan Kundera. É um princípio que costuma funcionar e que adoto sempre: se a boiada vai para um lado, siga para o outro lado. Kundera é a exceção que confirma a regra. A insustentável leveza do ser foi o livro de ficção mais vendido no Brasil em 1985 e 1986. É, provavelmente, o que explica a presença ostensiva do autor nos sebos. Roberto Piva: "O dia que eu vencer alguma coisa, vou me perguntar onde foi que errei." Também a provocação do poeta paulistano não se aplica ao romance do escritor tcheco. A insustentável leveza do ser é uma obra primorosa, apesar de ser campeã de vendas. Fardo pesado? Leveza insuportável? Detalhe desnecessário? 

Não cabe aqui especular por que o romance se tornou best seller, mas, uma coisa é certa, quando, no futuro, alguém discorrer sobre a Primavera de Praga, passará pelos textos de Milan Kundera, especialmente A insustentável leveza do ser O livro do riso e do esquecimento. O romancista é legítimo herdeiro de Cervantes e da Primavera de Praga, esse "segundo soberbo" da humanidade, esse segundo tão soberbo quanto cuidadosamente escondido, já que incomoda a direita (em geral) e a esquerda (estalinista). Primavera de Praga: encontro mágico do espírito zombeteiro do romance, herança de Cervantes, com as possibilidades de libertação colocadas pelo socialismo, herança dos que recusaram a exploração.

Num final de semana qualquer aluguei dois filmes, eram: Perfume de mulher (original italiano) e A insustentável leveza do ser (baseado no romance de Kundera). Foi meu primeiro contato com o escritor tcheco. Por coincidência, a película italiana também é baseada num romance, e ambas são boas. Posteriormente, Kundera proibiu filmagens baseadas em seus textos, a principal razão é a ideia de que o cinema é incapaz de explorar o que só o romance pode dizer. Como trabalhar questões conceituais nas películas? O filme A insustentável leveza do ser, apesar de ter quase 3 horas, praticamente ignora temas chave do romance, como o kitsch, o eterno retorno e até a contradição peso x leveza. Em 1995, no centenário do cinema, o ex-professor de história do cinema, Milan Kundera, publicou um texto chamado Esta festa não é minha, sugerindo, com saborosa elegância, que o cinema comercial havia derrotado e prevalecido sobre o cinema de arte (outra razão para entender a proibição a adaptações de textos kunderianos). 

Ainda demoraria alguns anos para os livros de Kundera integrarem o meu cardápio literário. O que só ocorreu quando um camarada me entregou A insustentável leveza do ser e disse: "você precisa ler esse livro". Daquele dia em diante li toda a obra do escritor tcheco, alguns livros duas, três ou mais vezes. As paixões literárias, ainda que não sejam infinitas, são certamente mais duradouras do que as paixões sexuais. Já disseram que os clássicos se transformam a cada leitura, é o que ocorre com os romances de Milan Kundera: O livro do riso e do esquecimento, A insustentável leveza do ser, A vida está em outro lugar, A brincadeira, A imortalidade são textos vivos, se rearranjam a cada leitura, espelham as mudanças nas nossas vidas, que por "mais atrozes, mais belas, mais esplêndidas que sejam", não tem o menor sentido. Aqui é impossível não citar Camus: "Antes se tratava de saber se a vida devia ter algum sentido para ser vivida. Agora, parece, pelo contrário, que será tanto melhor vivida quanto menos sentido tiver." Vale destacar que Kundera, com sua arte de escrever contra todos, registrou, provocadoramente, que conheceu Camus mais pelas polêmicas do que pelos livros. Aqui é preciso escrever contra o bardo tcheco, que foi injusto com o escritor argelino, autor de bons romances, como O estrangeiro e A peste; e dos ótimos ensaios O mito de Sísifo e O homem revoltado. 

Com Camus, é possível dizer que a vida será mais bem vivida se não tiver sentido. Com Kundera, esboça-se o passo seguinte, porque está estampado em todos os cantos do mundo que a existência não tem sentido, então se trata de não levá-la a sério e de explorar todas as possibilidades e ambiguidades da vida, fontes inesgotáveis do riso, que o digam Rabelais, Cervantes, Sterne e seus herdeiros, Kundera entre eles. 

O primeiro romance de Milan Kundera foi publicado em 1967, nas portas da Primavera de Praga, A brincadeira tornou-se um dos símbolos do movimento. O romancista tinha, na época, 38 anos, idade razoavelmente avançada para se publicar o primeiro romance, mas ocorre que Kundera poderia ter ido para o cinema, a crítica de arte ou para a música (aprendeu piano com o pai). Provavelmente caminhou para a literatura porque percebeu no romance a possibilidade de explorar as ambiguidades da vida. Exemplo. Um bilhete para a namorada virando peça-chave de acusação na Tchecoslováquia estalinista dos anos 1960, só porque estava escrito "O otimismo é o ópio do povo! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotsky!" E aí, quando o bilhete é entregue para a cúpula do partido, não adianta e pioraria as coisas dizer que foi uma brincadeira, que o acusado sequer leu Trotsky... Porque tudo será usado contra o réu, que logo percebe que o caminho menos pior é se arrepender e se desculpar, o que não evita a ida para um campo de trabalhos forçados. Um bilhete para a namorada pode ser um passaporte para um campo de trabalhos forçados... São as ambiguidades da vida.

De Kundera parti para outros escritores tchecos, cheguei a Skvorecky, Habral, Klíma e Hasek. Todos valem a leitura. Cheguei também na Novelle Vague Tcheca, que produziu filmes de primeira, como Trens estritamente vigiados; As Margaridas; Um dia, um gato; A Brincadeira; Ninguém vai rir. Os dois últimos baseados em textos de Kundera e construídos com a participação do próprio. Segui todos os caminhos que partem, chegam e passam por Kundera. Provei cervejas tchecas (os tchecos são o povo que mais bebe cerveja no planeta). Me atrai o espírito zombeteiro tcheco, que vai do cinema à literatura e tem Milan Kundera como um dos maiores expoentes, provavelmente o maior. O que explica esse tal espírito zombeteiro? Talvez porque o país dos tchecos desaparece sempre que alguém decide fazer a guerra e invade outros países (a República Tcheca fica no meio do caminho, no centro da Europa). Talvez porque o idioma tcheco tenha sido uma espécie de segunda língua, falada em ambientes menos formais, o "idioma dos bordéis", que certamente não poderia ser sério. Vale lembrar que o tcheco Franz Kafka escrevia em alemão, mas o humor nos seus textos é diferente do humor da Primavera de Praga, deve ter a ver com os idiomas. Talvez o espírito zombeteiro tcheco tenha a ver com o fato deles serem campeões mundiais no consumo de cerveja por habitante.

Kundera não é apenas romancista, é também ensaísta dos grandes. Com tcheco consolidei o gosto por ensaios de romancistas. Depois dele passei por muitos textos do gênero. Dicas para os apreciadores: Carlos Fuentes (Geografia do romance), Coetzzee (Mecanismos internos), Elias Canetti (A consciência das palavras), Ferreira Gullar (Indagações de hoje), Orhan Pamuk (O romancista ingênuo), Susan Sontag (Ao mesmo tempo), Thomas Mann (Travessia marítima com Dom Quixote), Vargas Llosa (A linguagem da paixão, A civilização do espetáculo, A orgia perpétua), Ernesto Sabato (Antes do fim, O escritos e seus fantasmas, Apologias e rechaços, A resistência, Homens e engrenagens, Uno y el universo). Kundera escreveu os livros de ensaios A arte do romance, Os testamentos traídos, A Cortina e Um encontro. São textos vastos, profundos, saborosos e, sobretudo, inteligentes: vão do cinema à música, passando pela filosofia e, sobretudo, pela literatura. É curioso notar que, na primeira coletânea de ensaios que publicou, Kundera chega a comentar sobre seus personagens, o que não se repete nos três livros de ensaios que vieram depois, e a razão mais provável para isso é o romancista ter se dado conta de que seus personagens falavam, valiam e existiam por eles próprios (um escritor que comenta seus personagens não está convencido do valor da própria obra).    

Neste primeiro de abril de 2019, Milan Kundera completa 90 anos: "Nasci no dia 1º de abril. Não foi algo sem impacto no plano metafísico". Imagino o romancista num apartamento confortável. 1) Escrevendo romances. 2) Conferindo traduções de seus textos para outros idiomas (a vida longa, a erudição e a escrita direta e avessa a experiências de linguagem possibilitaram que autor revisasse e garantisse a qualidade das traduções de seus próprios livros, evitando eventuais mutilações e distorções). 3) Eliminando cartas, bilhetes, rascunhos, anotações e projetos inacabados. O bardo tcheco certamente sabe que não tem muito tempo de vida e que, morto, cartas, bilhetes, rascunhos, anotações e projetos inacabados serão caçados e, se encontrados, publicados. Como as cartas de Kafka, Flaubert e tantos outros. Espero que Kundera esteja escrevendo romances ou revisando traduções, mas é mais provável que esteja organizando sua saída da vida, tema recorrente em seus romances e contos. Na insustentável leveza do ser, numa espécie de testamento espiritual, Kundera pergunta o que restou de seus personagens (Tomas e Franz) e de figuras que passaram pelo livro (como os agonizantes do Camboja e Beethoven). Do libertino, Tomas, restou a inscrição “queria o reino dos céus na terra”. Do marido que queria distância da ex-mulher, Franz, restou a inscrição elaborada pela ex-mulher: “depois de um longo afastamento, o retorno”. Dos agonizantes do Camboja restou uma grande foto de uma atriz americana segurando uma criança amarela pelo braço. De Beethoven restou um homem triste com uma incrível cabeleira, que enuncia com voz soturna: Es muss sein! 

Indo por este caminho, a pergunta é inevitável: o que restará de Milan Kundera? 1) A vinculação à Primavera de Praga do lado “certo” da história (certo vai entre aspas porque qualquer leitor de Kundera aprende a desconfiar da vida e dos grandes julgamentos). 2) A inserção, com destaque, no que o próprio autor define como o terceiro tempo do romance, ao lado Hermann Broch, Robert Musil, Wiltod Gombrowicz e outros (porque não há arte fora da história da arte, o romance inclusive, como registrou o próprio Kundera). 3) A presença como ensaísta dos melhores e dos mais profundos assim que passar a maldição dos best sellers (tendência dos leitores a se limitar aos campeões de vendas e a ler um único livro de cada autor). Enfim, tenho a sensação de que vai restar de Milan Kundera exatamente o que o próprio gostaria que restasse: nem mais, nem menos. Não é pouco!

Nenhum comentário: