ITANHAÉM


Água mole em pedra dura,
tanto bate até que chora.

Água bate na pedra
e escorre choro
de pandeiro e violão.

Água bate na pedra
e escorre canto
do povo da terra.

Escorre sonho.
Escorre som.
Escorre sal.

Escorre sangue.
Escorre seco.
Escorre só.

Canto de pedra.
Pedra que chora.

Som de pedra.
Som de choro. 

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Itanhaém é uma cidade do litoral sul de São Paulo, é considerada a segunda mais antiga do Brasil. A palavra Itanhaém é de origem tupi e significa pedra (ita) sonora (nhaém), ou pedra que canta, outra versão diz que Itanhaém significa pedra que chora. O mar bate nas pedras da praia do Sonho, que choram, ou cantam. Talvez o povo tupi não separe canto de choro, ou talvez as pedras cantem e chorem ao mesmo tempo, como os pássaros engaiolados, e como no poema. As duas fotos desta postagem foram tiradas em Itanhaém.





GESTÃO PÚBLICA

O servidor público desperta cedo.
Banha-se e penteia-se
(indiferente ao princípio de calvície).

Camisa semi-social por dentro da calça,
início de barriga,
cinto e sapatos pretos.

Na esquina: os pães, o leite e o jornal
sempre fresquinhos. No café:
pão com notícias e manteiga.

O servidor público crê nas instituições.
As leis, os contratos e a aliança
garantem-lhe a necessária solidez.

As alíneas, os incisos e os captus
respaldam o servidor
e o avanço irresistível do país.

A transparência dos despachos
e a justeza dos decretos
lubrificam a máquina pública.

Na hierarquia: a segurança.
Nas portarias: o futuro.
No dia-a-dia: a felicidade.

O servidor janta arroz, feijão, bife
e telenotícias. Adormece
e sonha com processos e expedientes.


PLANO PILOTO
Para Lúcio Costa e Oscar Niemeyer

Cidade mineral,
inorgânica e sólida,
procuro tuas nervuras,
mas és lisa.

Não tens casca,
nem pombos,
nem juntas ossudas,
apenas blocos.

Projeto cerâmico,
talhado à máquina,
decorado simetricamente
com flores de chumbo.

Quero tua fibra,
tua artéria,
mas cega-me
teu verde carvão.

Horizonte sem cerros,
calçadas sem gente,
ruas sem nome,
apenas siglas.

Terreno sem cães,
sem moleques,
sem formigas,
apenas jardineiros.

Tua brisa plástica
seca minhas veias.
Quero teus bares,
mas não os encontro.

Brasília! Brasília!
Tristeza retilínea,
ou cacofonia austral,
ou coice consonantal.


PARA ALONSO QUIJANO

Ó cavaleiro que não hesita!
Ó ditoso guerreiro manchego!
Pelos prados,
pelas penhas,
vaga sua triste figura.

À mais formosa dama,
encomenda sua alma
e arremete sereno.

Ó venturoso domador de gigantes,
seu halo luzente ofusca encantadores!

Ó patrono das glórias da cavalaria,
legítimo portador do Elmo de Mambrino!

Apequena os maiores,
uma simples carga de sua lança.

A fama de sua espada
corre os arroios da Ibéria.

Seu braço invencível estorva os tortos,
sua alcunha de aço ecoa.

Nas páginas de mármore da cavalaria,
inscreva com pena de bronze:
Dom Quixote de La Mancha!


Pablo Picasso: Dom Quixote (1965)