FILHO


Meu filho que não veio
voa no vento

e suga o seio da noite,
em estado de ausência.

Procuro seu corpo,
que some no vácuo,

dissolvendo-se:
hipotético-dedutivo.

Meu filho que não veio
jaz no campo das possibilidades.



TRISTE FIM DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA?

Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
(Jorge Luis Borges)

De Dom Quixote e Sancho Pança todos temos um pouco. Coragem e medo. Bravura e pavor. Fervor e desapego. Dulcinéia del Toboso e Teresa Pança. Rocinante e Ruço. Cavaleiro e escudeiro. Elmo de ouro e bacia de barbeiro. Gigantes e moinhos.
            
É da relação desses duplos representados no cavaleiro (primeiros) e no escudeiro (segundos) que brotam as aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança. Mas que fique claro, um nada seria sem o outro.

Quatro séculos depois, Dom Quixote continua cavalgando dentro de cada homem e mulher. Os mais cínicos tentarão ignorá-lo, e desviarão do olhar do cavaleiro.

Mesmo esfarrapado e faminto, frágil e avançado nos anos; o Fidalgo da Mancha será sempre uma pedra nos rins de muitos. Dos que dentro de caças invulneráveis bombardeiam povos inteiros, dos que torturam, dos que em bando agridem homossexuais. Com sua espada, seu escudo de lata e sua barba pintada de ar; Quixote peleja ao lado dos injustiçados. E se ainda não pôde derrotar exploradores, torturadores e covardes; lhes mete muito medo. O fogo dos olhos do cavaleiro andante intimida na exata medida em que reflete a covardia e a pequenez dos fracos de espírito.

O que é a loucura? Armar-se cavaleiro andante e sair à cata de aventuras? Ou despir-se de ideais e esconder-se num escritório? Armadura de combate ou terno de trabalho? Acreditar nos livros de cavalaria ou nos de auto-ajuda? O que é pior? Ver gigantes onde só há moinhos? Ou enxergar a felicidade onde só há consumismo e quinquilharias? “Desfazer agravos?” Ou o contrário disso? Dizemos que Quixote é louco, mas comodamente esquecemos de perguntar o que ele pensa de nós. 

Mas nem tudo está perdido. Enquanto os fracos de espírito desviam dos olhos de Quixote, valentes cavaleiros andantes da pintura e dos versos sentem a necessidade sincera de interlocução com o Fidalgo da Mancha. Portinari e Picasso esboçaram os traços da triste figura do cavaleiro. Drummond e Borges lhe dedicaram versos, muitos melancólicos e amargurados, mas sempre chamejantes.

Quixotes continuam brotando das páginas da literatura. Neste Brasil dos fartos rios e das densas matas, nas páginas de Lima Barreto, tivemos o Major Policarpo Quaresma. Que também pelejou pela justiça. Que plantou para provar a fertilidade do solo brasileiro. Que lutou, venceu e se arrependeu. Denunciou a violência contra os vencidos e acabou preso e submetido às mesmas torturas. E o mais importante, Policarpo amou desmedidamente sua pátria sem que isso implicasse em ter ódio de outras terras.

Nas páginas de carne e osso do mundo real também brotaram Quixotes. Na América Latina tivemos o comandante Che Guevara, sempre coerente e aventureiro do tipo dos que “colocam a vida em jogo para demonstrar as suas verdades.”¹ E tivemos também Joaquim Câmara Ferreira entre tantos outros. Todos “sempre capazes de sentir no mais fundo de seus íntimos qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo”², e sempre dispostos a “sentir as costelas de Rocinante sob os calcanhares.”³

Em algum lugar do tempo e da Mancha, Quixote adoeceu e morreu “com siso” e com febre. E com “o juízo livre e claro, sem as sombras caligionosas da ignorância” causada pela “leitura dos detestáveis livros das cavalarias”. Ou seria como no verso de Drummond: “Despido de todo o encantamento”? O final do Fidalgo da Mancha é triste. Mas há o recurso de contestar esse desfecho. Por vaidade, ou por feitiço, ou por seja lá o que for; Cervantes matou e entregou Quixote com febre e “com siso”. Talvez porque assim nenhum aproveitador barato continuaria a história do Cavaleiro da Triste Figura, como já havia acontecido. Mas ocorre que um cavaleiro andante nunca renega suas aventuras e histórias. Um encantador muito malvado deve ter enfeitiçado Cervantes e o forçado a meter juízo em Quixote, para depois matá-lo. Mas é preciso imaginar Dom Quixote de La Mancha vivo e sem siso, pelejando pelos prados e penhas do mundo sempre com  os versos de Drummond na ponta da língua:

Doído,
moído,
caído,
perdido,
curtido,
morrido,
eu sigo,
persigo,
o lunar
intento:
pela justiça no mundo
luto, iracundo.


1º) Carta de Che Guevara enviada a seus pais antes de partir para a Bolívia.

2º) Carta de Che Guevara enviada aos filhos após seu assassinato na Bolívia.

3º) Carta de Che Guevara enviada a seus pais antes de partir para a Bolívia.



Cândido Portinari: Dom Quixote e
Sancho Pança saindo para suas
aventuras
   


CRÍTICA: JULIET, NUA E CRUA, DE NICK HORNBY

Era sexta-feira, véspera de carnaval. Procurava um livro no sebo como quem procura um amor em baile de carnaval. Corria os olhos pelo silêncio das prateleiras, flertava com as lombadas, acariciava orelhas e capas. Até que, depois de Cervantes e Kundera, lá no N, encontrei Juliet, Nua e Crua, de Nick Hornby. Nunca tinha ouvido falar nem de Juliet nem de Hornby. Tão importante quanto encontrar um livro é ser encontrado por um livro.

A chuva caiu, que chuva. Só tive tempo de atravessar a rua e me abrigar no boteco. Três cervejas e sessenta páginas depois (uma cerveja para cada vinte páginas), estava grudado no livro, como casal de baile de carnaval.

Juliet, Nua e Crua é um triângulo desamoroso, meio torto, formado por um casal inglês (Duncan e Annie) e um rockeiro estadunidense (Tucker Crowe). Duncan e Annie são um casal normal, como milhões de outros, que se separam e buscam parceiros pela internet e outros meios. Crowe é um rockeiro que, sumido por décadas, continua sendo seguido por centenas de idiotas, como Duncan, que mantém um site sobre o ídolo. Um dia Duncan recebe uma demo inédita de Juliet (único disco de Crowe), o relançamento chama-se Juliet, Nua e Crua, sua única finalidade é levantar alguns trocados para a gravadora e o rockeiro. Annie ouve antes do marido, que fica indignado, e considera o ato dela uma falha moral grave. Superado o problema, Duncan escreve uma resenha para viralizar na net, Annie resolve escrever também. Ele diz que a demo é tão espetacular que supera o disco acabado. Ela escreve que a demo é uma bosta. O rockeiro, que estava sumido há décadas, reaparece e se comunica por e-mail com Annie, diz que finalmente alguém tinha escrito algo que prestava sobre seu trabalho. Daí para frente o romance começa a fazer o que só o romance pode fazer: integra diálogos presenciais, conversas por e-mail, relatos, notícias, críticas e, sobretudo, brinca.

No boteco, a vinte páginas por hora e por cerveja: eu lia e ria. Dobrava o canto das páginas, para grifar depois, porque estava despreparado, sem lápis nem lapiseira. Há uma qualidade que encontrei em poucos escritores: fazer rir: Cervantes, Machado, Drummond, Nelson Rodrigues, Kundera, Veríssimo e, mais recentemente, Nick Hornby. Não é pouco.

Kundera registra que há uma palavra tcheca sem tradução em outros idiomas: litost, que é um estado atormentador provocado pelo espetáculo da nossa própria miséria subitamente revelada. Hornby faz rir porque expõe nossa miséria – a miséria intelectual e moral das primeiras décadas do século XXI – aos poucos, sem solavancos. Exemplo:

“Os dois haviam se mudado para a mesma cidade inglesa à beira-mar na mesma época: Duncan, para terminar sua tese, e Annie, para lecionar. Haviam sido apresentados por amigos em comum que perceberam que, no mínimo, eles podiam conversar sobre livros ou música, ir ao cinema e ocasionalmente viajar a Londres para ver exposições e sessões de jazz. Goolness não era uma cidade sofisticada. Não havia cinema de arte, não havia comunidade gay, não havia nem uma filial da livraria Waterstone’s (a mais próxima ficava na estrada em Hull), e fora um alívio poderem recorrer um ao outro, começaram a tomar uns drinques juntos durante as tardes e a dormir um na casa do outro nos fins de semana, até que, finalmente, esses pernoites viraram algo indistinguível de coabitação. E eles haviam ficado assim para sempre, empacados num eterno mundo pós-universitário, em que sessões de jazz, livros e filmes eram mais importantes para eles do que outras pessoas da mesma idade.”

Atire todas as pedras no Hornby quem nunca viveu algo à lá Annie e Duncan, quem tem menos de 30 anos não vale, porque a casal do romance é quarentinha. Se litost é um estado atormentador provocado pela nossa miséria subitamente revelada, como um ataque de fúria sem nenhuma razão; Juliet, Nua e Crua é a nossa miséria exaustivamente reexposta, como o sexo pré-agendado para os sábados à noite, depois do programa de entrevistas. Contra e apesar das “centenas de especialistas e publicações”, que defendem o agendamento do inagendável, Horny lembra que trepar é “algo necessário e assustadoramente incontrolável”, ou, pelo menos, deveria ser.

Contra e apesar da crítica, que vê em Juliet um diálogo com a cultura pop, o livro de Hornby é, sobretudo, um diálogo com a história do romance, explora os calos da vida nas primeiras décadas do século XXI. Como escreveu Kundera, é imoral o romance que não explora algum aspecto inexplorado da existência, o livro de Hornby supera este obstáculo.

Em tempos de miséria exposta e reexposta, a dieta mais saudável é a que incorpora fartas porções pessimismo, ou seria de lucidez? Juliet é a vida como ela é, nos termos rodrigueanos, ou nua e crua, como no título do romance. Mas o importante é que, apesar de tudo e contra todos, é possível rir. O homem é um bicho que ri, escreveu Rabelais, nos primórdios do renascimento. Nas primeiras décadas do século XXI, contra tudo, contra todos e quase quinhentos anos depois de Rabelais: o homem ri.


Juliet, Nua e Crua, é como um amor de carnaval: excitante, engraçado, sedutor, ridículo, passageiro; um amor para reencontrar em outros carnavais: para gozar, rir e sumir.