CRI-CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUIM

Há uma filosofia brasileira? Sim? Não? Por quê? Esta é a questão fundamental da obra Crítica da Razão Tupiniquim, de Roberto Gomes. O fato é que esta questão implica outras, por exemplo: o que é filosofia? Gomes afirma que filosofia é essencialmente dizer o contrário, ou seja, a filosofia seria crítica e contestatória.  Sendo assim, essas linhas estreitas devem ser consideradas filosóficas, já que em alguma medida contestam o crítico da razão tupiniquim. Muito bem, gracejos à parte, o mais provável é que a definição de Gomes seja demasiadamente ampla. Ou então, sendo este meu humilde texto também filosófico, deixemos o conteúdo mais nobre para o final, comecemos por onde há acordo com Gomes, ainda que relativo.

Ocorre que a tal razão tupiniquim a que se refere Roberto Gomes se inscreve no marcos das escolas de filosofia, das academias. Então, o título correto seria crítica da razão (acadêmica) tupiniquim. Se assim fosse, o título estaria muito mais adequado à obra, mas perderia muito em abrangência, e o próprio autor afirma que não queria perder o título.


Hector Bernabó Carybé: Músicos

O fato é que as academias produzem historiadores da filosofia, comentadores..., mas não exatamente filósofos. Busquemos uma definição simples de filosofia: “estudo que amplia a compreensão da realidade, buscando apreendê-la em sua totalidade." Ora, academias produzem especialistas/comentadores de filósofos europeus, só. Como bem lembra Gomes, para produzir algo é preciso se conceder ampla liberdade de criação, apenas assim é possível tentar apreender a totalidade, mas liberdade de criação não se ensina na academia, muito pelo contrário. Neste sentido é que Gomes afirma não haver uma razão tupiniquim, concordo. Alguém que conheça a filosofia mundial de rabo a cabo, se não se conceder a necessária liberdade de criação, será quando muito um excelente professor, mas não um filósofo. Para tanto se faz necessária a tal liberdade de criação. Concordo.

Muito bem. Para introduzir minha crítica (e fazer filosofia rs), busquemos um segundo acordo com Roberto Gomes. A crítica da razão tupiniquim é uma contestação do pensamento meramente especulativo, para Gomes a filosofia sempre está escorada no “real cotidiano, também matéria de poesia”, e de filosofia. Concordo. Toda filosofia é sempre uma tentativa de apreensão da totalidade real, ou histórica. Neste ponto reside a crítica de Gomes, como filósofos brasileiros se limitam a comentar ideias de terceiros, não fazem filosofia, quando muito produzem história da filosofia, ou se formos um pouco mais complacentes, produzem história comentada da filosofia.

A questão é que se a filosofia é essencialmente contestatória, se é o inverso do verso, ou o desdito do dito... Roberto Gomes procura a filosofia onde ela não estará: nas academias. Filosofia entendida como tentativa de apreensão do real e de contestação só pode ser encontrada nos espaços de crítica da ordem vigente, como, por exemplo, os movimentos sociais. Universidades cada vez mais enquadradas e redirecionadas para a produção de saberes mercantis jamais poderão contestar seu Deus (mercado), exceto alguma exceção que confirme a regra. O padrão lógico-dedutivo-estabelecido são as academias apologéticas ao status-quo caduco e, exatamente por isso, produtoras de “conhecimento” parcelado e falsificado.

Perguntas tão simples quanto filosóficas não se farão nestes centros produtores de frutos caducos. Produzir mais? Para quem? Qual a racionalidade da atual sociedade capitalista? Quais as alternativas a esta? Ou mais que isso, e inclusive mais ao gosto de Gomes: qual o projeto queremos para o Brasil?

Questões tão simples não se formulam por que se aceita a ordem vigente, a crítica e, conseqüentemente, a tentativa de apreensão do real só é possível entre os que negam a ordem estabelecida, para negá-la é preciso conhecê-la. Os discursos de louvor ao estabelecido simplesmente aceitam o vigente. Se a história acabou, não precisamos pensá-la, basta que a aceitemos. Nesta aceitação morre o filosofar, que é essencialmente crítico. Morre a possibilidade de pensarmos que história queremos.

Ora, se a perspectiva aqui esboçada estiver correta, Roberto Gomes busca um pensamento social brasileiro, ou até latino-americano (esta última possibilidade se encontra presente em trechos da obra) onde ele não estará. Ou seja, está sugerida a necessidade de tentar apreender o real, mas, obviamente, essa tentativa tende ao fracasso se estiver limitada metodologicamente à filosofia acadêmica, que é parcelada. Para filosofar se faz necessário recorrer aos mais diversos saberes: economia, antropologia, sociologia, cinema, literatura, música e por aí vai.

O crítico da razão tupiniquim está consciente desta necessidade, inclusive se valendo de sacadas de figuras como Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade entre outros. Segundo Roberto Gomes, a filosofia não se realizou em solo tupiniquim, mas não se pode dizer o mesmo da canção popular e da poesia, por exemplo. Concordo. Figuras como Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Noel Rosa... não me deixam mentir. Gomes, por seu lado, tenta captar e transformar em filosofia algo como uma sensibilidade brasileira, que está presente nos poetas, escritores e músicos.  

Ok. Há acordo. Mas neste ponto surge uma interrogação da qual declino, posto que nem a indústria têxtil da China (crescendo a taxas cavalares) poderia produzir pano pra tanta manga: é possível se falar em filosofia brasileira? Ou tupiniquim? Filosofia não é universal? Não sei. Tenho dúvidas. Declino.

Por outro lado, um pensamento crítico brasileiro e até mesmo latino-americano é possível e, inclusive, existe. Se concordamos ou não com ele é outra questão. Para ficarmos apenas em terras e teóricos tupiniquins, listemos alguns: Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Celso Furtado. Este último, por exemplo, publicou um livreto intitulado Um Projeto para o Brasil. Apesar dos pontos polêmicos que contém, trata-se de uma tentativa de compreensão da realidade nacional, acompanhada inclusive de propostas de superação das contradições apontadas. Ou seja, algo parecido com a tal razão tupiniquim. Neste exemplo, ainda que mais econômico, também há filosofia na medida em que se parte de princípios e ideias sobre a sociedade ideal (na visão de Furtado).



Tarsila do Amaral: O mamoeiro 

Enfim, parece-me claro que um pensamento crítico brasileiro só poderá existir se multidisciplinar, respostas puramente filosóficas dirão muito pouco sobre as contradições e possibilidades do país. Por este caminho seguiram os principais textos interpretativos brasileiros, e até a Crítica da Razão Tupiniquim. No caso desta, sua maior debilidade é a escolha de falsos interlocutores. Se é para criticar a razão tupiniquim, necessário seria estabelecer um diálogo com os grandes pensadores brasileiros, como os acima citados. Entretanto, uma simples consulta à bibliografia utilizada por Roberto Gomes mostra que tais pensadores não estão no escopo do trabalho do crítico, com exceção de Sérgio Buarque de Holanda. Sendo assim, a crítica deixa muito a desejar, pela simples razão de que não dialoga com a razão tupiniquim, limita-se à reprodução tupiniquim, às academias.

Porém, se é verdade que a crítica da razão tupiniquim deixa a desejar à medida que não dialoga com a autêntica razão tupiniquim, também é verdade que vale como um sapeca-iaiá na academia.

 O AMOR E OUTRAS MERCADORIAS


Soube por uma matéria da BBC que surgiu – em inglês, como sempre – uma nova palavra para se usar nas relações amorosas: hardballing. Significa “jogar pesado”. Teria a ver com os encontros por meio de sites e aplicativos e estaria sendo usada pela Geração Z, que são pessoas com menos de 30 anos. A ideia é expor intenções e expectativas antes do primeiro encontro, para evitar desgastes e perda de tempo. A mesma matéria informa sobre outra palavra proveniente do inglês e surgida no ambiente dos relacionamentos virtuais: ghosting. Significa que uma pessoa cortou relações sem explicar o porquê, causando incômodo.

 

A matéria e as palavras em inglês me fizeram pensar num verso que acreditava ser de Drummond: “o amor e outras mercadorias”. Achava que, com esse verso, o poeta de Itabira encerrava um poema com a ironia que lhe é peculiar. Mas qual? Seria mesmo de Drummond? Não identifiquei nem na internet nem na coleção completa do poeta itabirano. Mas pedi ajuda e uma amiga resolveu a questão, trata-se do poema Aurora [1]:

 

[...]

Como é maravilhoso o amor

(o amor e outros produtos).

Dançai meus irmãos!

A morte virá depois

como um sacramento.

 

O verso não está no final do poema nem é exatamente como eu lembrava. Mas a ironia drummondiana está ali igualando o amor a uma mercadoria, como se as relações de produção se confundissem com as relações amorosas, que é o que o ocorre no tempo presente. O que é hardballing senão um critério de produtividade aplicado ao amor, para evitar “perda de tempo”?

 

Um amigo poeta, algumas décadas anterior à Geração Z, contou-me sobre um encontro que tivera por meio de um aplicativo. Passada a tensão inicial. Alguns goles de cerveja depois, a conversa fluiu e estava agradável. Foi quando a interlocutora começou a alternar sorrisos simpáticos com perguntas sérias, que pareciam extraídas de um questionário semiestruturado, talvez validado em sites de relacionamento. Eram questões sobre família, trabalho e futuro. Era como se ele estivesse sendo entrevistado sem ter sido informado e sem ter assinado termo de consentimento. Por fim, ela afirmou perguntando: “acho que você não viveu todas as aventuras que gostaria de ter vivido.” Ao que ele, que é leitor do Quixote, respondeu que aquela seria a grande aventura da vida dele, como se ela fosse uma Dulcineia del Toboso finalmente encontrada. Desconfio que meu amigo foi reprovado exatamente naquele momento. Dom Quixote e aventuras não combinam com relacionamentos baseados em critérios de produtividade. Voltaram a se encontrar. A conversa foi agradável. Mas depois ela desapareceu. O que o meu amigo poeta definiu como a “arte da fuga” foi na verdade um gosthing. A palavra ainda não existia, mas o que foi aquele desaparecimento súbito senão um gosthing?

 

Antigamente se discutia se amor à primeira vista existia ou não. Atualmente os critérios de produtividade são capazes de matar o amor antes do primeiro encontro. Eu já imaginava que pessoas da tal Geração Z nunca brincaram na rua nem empinaram pipa. Mas pensar que as novas gerações estão desaprendendo a flertar é uma ideia atroz. “Que século, meu Deus!” – diria Drummond [2].  Até um romancista liberal, como Mario Vargas Llossa [3], sabe que o erotismo representa um momento elevado da civilização e é um dos seus componentes determinantes: “trazido a público, vulgarizado, degrada-se e eclipsa-se, não realiza a desanimalização e a humanização espiritual e artística da atividade sexual que outrora possibilitou.” O que pensar de uma civilização que exclui o erotismo, que obriga as pessoas a exporem intenções e expectativas antes do primeiro encontro? Como se intenções e expectativas não se construíssem aos poucos, dia após dia. Como se intenções e expectativas não variassem de caso a caso e com o tempo. Por mais assustador que possa parecer para a tal Geração Z, sim, há pessoas que desaparecem e não voltamos a ver, com outras se constrói “apenas” uma aventura amorosa, em alguns casos se forma uma amizade para sempre e, não raro, tudo se mistura numa mesma história. “O amor é imprevisível”, e não é apenas na cidade de São Paulo, como na canção [4]. Ou, para usar novamente o bardo de Itabira [5]:

 

Carlos, sossegue, o amor

é isso que você está vendo:

hoje beija, amanhã não beija,

depois de amanhã é domingo

e segunda-feira ninguém sabe

o que será.

[...]

 

O amor se constrói à meia-luz, numa penumbra suave, como num fim de tarde ou num começo de manhã. A iluminação excessiva – a ponto de eliminar completamente o mistério – nada resolve, antes atrapalha. Junichiro Tanizaki afirmou “que a beleza inexiste sem sombra.” [6]. Creio que o mesmo vale para o amor. No final do poema Não se mate, que citei acima, Drummond concorda comigo:

 

[...]

O amor no escuro, não, no claro

é sempre triste, meu filho Carlos,

mas não diga nada a ninguém,

ninguém sabe nem saberá.

 

Quando penso nas pessoas se relacionando por sites e aplicativos, exigindo que intenções e expectativas sejam explicitadas antes do primeiro encontro, lembro das formigas que correm apressadas pelas paredes. Elas se cruzam, param brevemente, se encaram e seguem em direções opostas, sem perder tempo.

 

Notas

[1] O poema Aurora abre o livro Brejo das almas, que é o segundo publicado por Carlos Drummond de Andrade.

[2] O verso de Drummond está no poema Edifício Esplendor, que compõe o livro José.

[3] Trecho citado está no ensaio A civilização do espetáculo, que compõe o livro homônimo.

[4] Verso da canção Lá vou eu, que é de Luiz Sérgio Carlini e Rita Lee e foi interpretada também por Zélia Duncan: “Na cidade de São Paulo/ O amor é imprevisível como você/ E eu/ E o céu”

[5] O trecho de Drummond está no início do poema Não se mate, que compõe o livro Brejo das almas.

[6] A sacada de Junichiro Tanizaki está no ensaio Em louvor da sombra


Publicado originalmente no Passa Palavra


passaria uma vida toda contigo
se tivesse outras vidas
pra passar com outras pessoas


                                  (variações sobre um poema lido no poste)

 HAIKAI: A POÉTICA DA SUGESTÃO

 

Se a beleza se oferecesse de imediato, os artistas seriam desnecessários. O haikai é um exemplo. Surgido no Japão há mais de três séculos, o haikai é um poema composto por três versos e registra instantes: rã mergulhando no tanque, caramujo escalando o monte Fuji, chuva pingando na roseira. É o instante reconquistado (Octavio Paz): expressa o real, a essência das coisas, a partir da intuição e com simplicidade (O. Svanascini) [1].

 

Mas para reconquistar o instante, para expressar a essência das coisas com intuição e simplicidade, é preciso estar integrado no tempo e no espaço. É necessária uma estesia – sensibilidade, capacidade de perceber o sentimento da beleza – cada vez mais escassa. É a sabedoria do haikai.

 

Paulo Leminski [2], que criou belos haikais, escreveu, também, um poema, limites ao léu, com um compilado de definições de poesia elaboradas por outros poetas, algumas são úteis para pensar o haikai [3]. Octavio Paz: “linguagem em estado de pureza selvagem”. Wordsworth: “emoção relembrada na tranquilidade”. Robert Frost: “aquilo que se perde na tradução”.

 

É impressionante que, no haikai, a linguagem em estado de pureza selvagem e a emoção relembrada na tranquilidade tenham sobrevivido às traduções e ao tempo. Exemplo. Bashô (1644 – 1694):

 

Um doce ruído

interrompe meu sonho:

gotas de chuva sobre a folhagem. [4]

 

O haikai fotografa a insustentável leveza do instante que não vai se repetir. Fixa, por exemplo, o estado de espírito do poeta no Japão, num dia chuvoso do século XVII, que não vivemos, mas imaginamos e sentimos.  Bashô novamente:

 

Chuva cinzenta:

hoje é um dia feliz

mesmo com o Fuji invisível.

 

No haikai, a economia de palavras desperta a imaginação do leitor. Para apreciar os pequenos poemas é preciso imaginar. É a sabedoria do haikai. Se, com Robert Frost, a poesia é “aquilo que se perde na tradução”, talvez a economia de palavras explique a força e a sobrevivência do haikai, que tem a ver com o que é sugerido, e não exatamente com o que é dito. Um exemplo. Buson (1715 – 1783):

 

 O ruído

de um rato sobre o prato

como resulta frio!

 

É impossível não imaginar o rato de Buson. É onde começa o trabalho do leitor. Seria um rato preto se movimentando sobre um prato branco? Um prato branco guardado dentro do armário ou esquecido sobre a mesa? Havia restos de comida? E o poeta, onde estava? Ao lado observando o espetáculo? Estaria lendo tranquilamente, numa noite qualquer? Estaria contemplando o monte Fuji, distraído numa tarde ensolarada? E o que é um ruído frio?

 

Apesar da economia de palavras, o haikai é, também, movimento: primavera – verão – outono – inverno; menino – homem – velho; vento – nuvens – chuva; vida – morte, morte – vida. É a beleza que nasce da leveza do movimento e da transformação, como no poema de Issa (1763-1827):

 

A neve se desfaz

e a aldeia está inundada

de crianças.

 

Há, no poema Issa, o que os entendidos chamam satori (iluminação). Uma revelação que ocorre pelo choque. O que pareceria ser uma tragédia provocada pelo desgelo vira outra coisa, se transforma numa inundação de crianças, provavelmente brincando e felizes. Se me permitem a metáfora futebolística, confesso que o que chamam de satori sempre me pareceu um passe perfeito, que desmonta a defesa adversária e encontra espaço onde não se imaginava. É a sabedoria do haikai. Outro exemplo, também de Issa:  

 

Presentes de Ano Novo:

até a menininha no leito

estende suas mãozinhas

 

Novamente a iluminação – o choque, a mudança de rota, o passe que desmonta a defesa adversária –, o leitor começa imaginando a tristeza do ano novo no leito, mas termina contagiado pela alegria da menininha adoecida: é a poética da sugestão.     

 

Notas

 

[1] O livro dos HAI-KAIS. 2. ed. Massao Ohno Editor: São Paulo, 1987.

 

Nota da nota. Para quem quiser conhecer o belo trabalho do editor Massao Ohno, além dos livros, vale a pena assistir o documentário Massao Ohno – poesia presente.

 

[2] Paulo Leminski. Toda a poesia. Companhia das letras: São Paulo, 2013

 

[3] Vale registrar que isso de pensar o haikai é um tanto quanto contraditório, porque haikai é integração, intuição e simplicidade.

 

[4] Todos os poemas citados – Bashô, Busson e Issa – estão em O livro dos HAI-KAIS, edição de Massao Ohno. As traduções são de Olga Savary.

 

 

Publicado originalmente no Passa Palavra