O BRASIL ENCOLHE

 

Uma notícia foi pouco comentada. Entre 2011 e 2020, o Brasil empobreceu em termos absolutos e relativos. Como o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 2,2% e a população aumentou 8,7% na década, a renda média por habitante diminuiu1. O tombo é ainda maior se comparado à evolução do PIB global, que cresceu 30,5% no mesmo período. O encolhimento relativo da economia brasileira não é novidade, aconteceu também entre 1981 e 2010. Ou seja, mesmo na década retrasada, apesar dos analistas do mercado, que afirmavam incansavelmente que os “fundamentos da economia eram sólidos”, o Brasil encolheu em comparação com o mundo.

 

Importante destacar que, inclusive com o presidente que dizia “nunca antes na história desse país”, o Brasil encolheu em relação às outras economias, apesar da elevação dos preços das commodities exportadas, que criou certa ilusão de riqueza e deu alguma margem de atuação para o governo. Para ser justo, o “nunca antes na história desse país” faria algum sentido caso se referisse à elevação dos preços das commodities exportadas pelo Brasil. Este sim fato inédito. Mas a desindustrialização se manteve, e a concentração de renda não regrediu no período. A banda passou e “o que era doce acabou”, como na canção do Chico.

 

Chama a atenção a explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico do país. A partir de 2009 o Brasil teria expandido os gastos e o crédito para combater a “crise financeira mundial”, a necessidade se converteu em conveniência do governo petista, que ampliou a intervenção estatal na economia e fez manobras contábeis, comprometendo a situação das contas públicas. Uma variação ainda mais simplória da cantilena neoliberal, repetida ad infinitum pelos liberolas2, explica a derrocada do país única e exclusivamente pela corrupção dos governos petistas. É o discurso que ajudou a eleger o genocida que virou presidente. A fragilidade das explicações midiáticas sobre a crise brasileira, proferidas em geral pelos economistas dos bancos, depõe a favor da tese de que o país está encolhendo. A cantilena simplória dos liberolas idem. A questão não é só a fragilidade dos argumentos, porque a mídia empresarial e os liberolas sempre gargantearam ideias duvidosas, o problema é a inexistência, pelo menos com um mínimo de circulação, do necessário contraponto.

 

Antes que me atirem a primeira pedra, esclareço que não se trata de defender Lula e Dilma. Pelo amor de Marx! Questão importante, em tempos de encolhimento generalizado, é definir os governos petistas com um mínimo de rigor: foram, essencialmente, neoliberais. Ajudaram a pavimentar o caminho para o buraco em que o país se meteu. O neoliberalismo brasileiro está estruturado sobre três eixos: lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação, geração de superávits primários. Enquanto puderam, os governos petistas rezaram o terço da santíssima trindade neoliberal. “Nunca na história do Brasil eles (empresários) ganharam tanto dinheiro quanto ganharam quando eu fui presidente da república”, disse, talvez com razão, Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma começou a cair quando seu governo se mostrou incapaz de gerar superávits primários para alimentar o mercado da dívida pública.

 

Já disseram que a manipulação está na verdade omitida e não mentira contada. Algumas perguntas que a mídia empresarial e os liberolas não fazem, mas que ajudam a iluminar a verdade omitida. Por que o Brasil foi o país que mais cresceu nas primeiras décadas do século XX? Por que a economia brasileira está encolhendo? Por que o encolhimento coincide com o neoliberalismo? Qual a relação entre o avanço neoliberal e o tombo econômico? Por que a ampliação das terceirizações não gerou empregos? Por que a reforma trabalhista não tirou o país do atoleiro? Por que a reforma da previdência não resolveu os problemas da nação? A única solução que a mídia empresarial e os liberolas dão para a crise é empurrar contrarreformas goela abaixo, como um bêbado que ingere quantidades crescentes de álcool. É como se a história tivesse acabado e não houvesse nem passado, nem presente, nem futuro, nem, sobretudo, alternativas. Restando, apenas e como única possibilidade, a radicalização do tripé neoliberal. As contrarreformas do tempo presente são, em geral, tentativas de radicalizar a lei de responsabilidade fiscal, de garantir as metas de inflação e a geração de superávits primários.

 

É compreensível que a mídia empresarial incorra em simplismos grosseiros para explicar o tombo econômico do Brasil, além da visão estreita e de curtíssimo prazo, lucram com o encolhimento do país. Nas crises a maioria perde, mas alguns ganham, entre estes estão os principais anunciantes da mídia empresarial. Relatório da Oxfam lançado em julho de 2020 informou que o patrimônio dos 42 bilionários brasileiros, somado, aumentou em US$ 34 bilhões, apesar da pandemia da covid-193.

 

Um sintoma e um efeito do encolhimento do Brasil é o desaparecimento dos projetos para o país4. Tirando a mídia empresarial e os liberolas, alguém acredita que a submissão total ao mercado vai gerar desenvolvimento? Menciono o desaparecimento dos projetos para o país como constatação, não para defendê-los. Não se trata de propor um projeto para o Brasil, não existe nem socialismo em um só país nem libertação que não seja internacionalista. Não adianta substituir o neoliberalismo entreguista pelo desenvolvimentismo nacionalista, assim como a centralização estatizante não pode ser pensada como alternativa ao mercado capitalista, pelo menos na perspectiva da emancipação dos trabalhadores. As experiências desenvolvimentistas brasileiras5 atestaram que o país não vai se desenvolver por dentro do capitalismo, com conciliações de classe e sem rupturas. Mas chama a atenção, atualmente, a ausência de projetos para o país, até o desenvolvimentismo nacionalista sumiu do mapa das ideias. Antes até a direita tinha um projeto, atualmente nem a esquerda sabe o que é isso. A burguesia brasileira se conformou com o papel de sócia menor do grande capital? Ou foi sempre assim, sendo as experiências desenvolvimentistas exceções que confirmam a regra? São questões para serem pensadas.

 

Como desgraça pouca é bobagem, não apenas a economia brasileira está encolhendo. Encolhe a política. Encolhe a fauna. Encolhe a flora. Encolhe a vida. Encolhe a democracia. Encolhe a ciência. Encolhe a pesquisa. Encolhe o conhecimento. Encolhe a moral. Encolhe a cultura. Encolhe o humor. Encolhe a literatura. Encolhe a música. Encolhe o futuro. Até o futebol brasileiro está encolhendo.

 

Mas é, sobretudo, na capacidade de crítica, de imaginação e de indignação que o Brasil está encolhendo. Cito apenas alguns: que falta fazem Machado de Assis, os anarquistas de 1917, os modernistas de 1922, Cora Coralina, Pixinguinha, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, o Centro Popular de Cultura, Carlos Marighella, Clarice Lispector, Adoniran Barbosa, Zé Kéti e até um autoproclamado reacionário como Nelson Rodrigues. Sim, os reacionários já foram mais inteligentes, viraram meros liberolas.  

 

 Notas

 

1 Enquanto Brasil cresce apenas 2,2% na década, mundo avança 30,5%.

 

2 Liberola é um mamífero tipicamente brasileiro, diz que é liberal, mas na verdade é carola. Liberalismo no discurso. Carolismo na prática. O liberola defende, sobretudo, preconceitos atávicos, não hesita em abrir mão do livre mercado sempre que considera necessário para a manutenção do status quo. 

 

3 Bilionários da América Latina aumentaram fortuna em US$ 48,2 bilhões durante a pHYPERLINK "https://www.oxfam.org.br/noticias/bilionarios-da-america-latina-e-do-caribe-aumentaram-fortuna-em-us-482-bilhoes-durante-a-pandemia-enquanto-maioria-da-populacao-perdeu-emprego-e-renda/"andemia.

 

4 Por projeto para o país entendo, por exemplo, as teorizações desenvolvimentistas de um Celso Furtado, que, aliás, escreveu um livro chamado Um projeto para o Brasil.

 

5 Considero que aconteceram experiências desenvolvimentistas nos governos Getúlio e Jango. Os governos Lula e Dilma foram, essencialmente, neoliberais. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

GRIPE SUÍNA

Um rifão: com doença não se brinca não, se for a gripe suína então... (e vai rifão mesmo, porque é palavra da época da Dona González, e rima com então e não). Segundo ela, os vírus que começam com H, como o da gripe suína, são os piores, daí a preocupação com o H1N1. Isso, de acordo com Dona González, tem tudo a ver letra cabalística H, que é a sexta consoante e oitava letra do alfabeto. Na média dá sete. E sete são as trombetas do apocalipse e os pecados capitais, assim como sete palmos de terra esperam os descuidados.

Toda atenção é pouca, todo cuidado é insuficiente. Dona González sabia disso, apesar de não receber os e-mails sensacionalistas que informavam que o governo estava censurando informações (conclusão que ela formulou por conta própria, como veremos à frente), que havia vários óbitos de médicos, de enfermeiros e por aí vai. Ela tinha vasto conhecimento sobre tragédias.

Na verdade gostava de catástrofes naturais e sociais. Fica eufórica quando acontecia uma queda de avião, um terremoto ou outro desastre. Grudava no rádio ansiosa pelas atualizações. Sentia prazer em repassar notícias sobre tragédias, aumentava o número de mortos e ampliava as conseqüências. Se chovia muito, dizia que cidades inteiras estavam debaixo d’água, que haveria deslizamentos e desabastecimentos. Se não chovia, dizia que haveria racionamentos, sugeria que começassem imediatamente a evitar banhos e que parassem de regar as plantas. Se ocorria um ataque terrorista em alguma parte do mundo, afirmava que o Brasil seria o próximo alvo. Fosse familiarizada com computadores e com a internet, Dona González passaria o tempo redigindo e enviando e-mails sensacionalistas.

Era preciso lavar as mãos. Era preciso evitar aglomerações. Ela não chegou a cortar a conversa matinal com o barbeiro do bairro, mas mudou a rotina. Batia na porta – com a mão protegida por um lenço – à espera de que algum desavisado lhe abrisse. Nunca encostar em maçanetas! Era a regra de ouro. O assunto das conversas matinais? Gripe suína, óbvio: evolução da taxa de mortalidade, teorias dos interesses por trás da criação da doença. Neste ponto Dona González concordava com o barbeiro, muitos lucravam com o vírus. Mas os acordos eram parciais. Ele defendia que as multinacionais farmacêuticas haviam criado a doença. Ela sustentava que os criadores eram ligados à mídia. Um sujeito chegou a esboçar uma terceira via, a teoria cartelização do vírus, que teria surgido da parceria de canais de televisão com fabricantes de medicamentos. Mas, apesar da solução intermediária, não houve acordo. Falavam de tudo, menos o porquê dela bater na porta em vez de abri-la. O barbeiro não percebeu. Ela não comentava. Melhor assim.

Terror mesmo era o transporte público! Não tinha como fugir. Precisava comparecer a supermercados e farmácias, cobrar aluguéis e ir a agências bancárias. Os estoques de mantimentos e remédios precisavam ser garantidos. Os aluguéis deviam ser cobrados. Extratos e saldos bancários não podiam ser ignorados. A grande dificuldade eram as opções de segurança. Escolher é sofrer:

Opção 1 – Sentar no banco dos idosos e se expor a uma carga viral despejada de cima para baixo.

Opção 2 – Viajar em pé e segurar nos apoios, que certamente estavam infectados.

Escolheu a última opção. Quando ofereciam lugar para que ela sentasse, agradecia e continuava em pé. Carregava álcool em gel e desinfetava as mãos exaustivamente. Além disso, desenvolveu uma espécie de surfe rodoviário, modalidade que consistia em viajar com as mãos na cintura, sem se apoiar. Se havia quem surfasse em cima de trens, por que ela não poderia surfar nos corredores dos ônibus? Quando o motorista freava, ela abria os braços e se equilibrava balançando o tronco, sem tirar as mãos da cintura. Às vezes acertava cotoveladas nas pessoas. Era um efeito colateral das medidas de segurança. Desculpava-se e seguia viagem. Mas havia um risco – minimizado é verdade, mas não eliminado –, alguém podia tossir e lançar o vírus por perto. A solução? Recorreu a uma bíblia salvadora, que carregava na bolsa. Quando alguém ameaçava tossir, sacava a bíblia e cobria as vias respiratórias. A idéia surgiu dentro do ônibus, ao ouvir um pregador.

– Irmãos, dizem que é o fim do Mundo. Não é! Não se enganem! Não se preocupem! Não tenham medo! Não deixem de ir aos cultos! Essa gripezinha só pega em quem não acredita na palavra de Deus, em quem não tem fé.
           
Dona González se afastou do pastror, que falava alto, quase cuspindo. Desejou que alguém tossindo se aproximasse dele, para saber se o cidadão pregaria com exemplo, ou se discretamente se retiraria. Avaliava que a última opção era mais provável. De qualquer forma, pouco importava. O fundamental era se defender com a palavra de Deus. Se quem tinha fé não precisava se preocupar, quem se protegesse com a bíblia estaria definitivamente livre da doença.
           
Dúvidas atormentavam Dona González. 1) Receber os aluguéis em espécie ou depósitos bancários? Dinheiro vivo pode estar contaminado, ela não confiava nem um pouco nos inquilinos; mas também desconfiava dos banqueiros. Como confiava mais naqueles do que nestes, continuou recebendo em dinheiro, que guardava embaixo do colchão. Banco só para fazer pagamentos e outras operações inevitáveis. Neste ponto contrariou os especialistas, que sugeriam evitar notas e moedas. Dona González suspeitava que os tais especialistas fossem, na verdade, agentes dos banqueiros. 2) Pagar as compras com dinheiro ou cartão? Se aquele passa de mão em mão, este tem a terrível desvantagem de expor os dedos. Escolheu a última alternativa, mas só digitava com caneta e segurando na tampa, para minimizar riscos. Neste ponto seguiu as orientações dos especialistas, passou a usar cartão para os pagamentos e, por conta própria, desenvolveu a técnica e a habilidade para digitar a senha segurando na tampa da caneta esferográfica.  

Às vezes a lógica privada se chocava com a pública. Escolhia a privada, sem pestanejar (e sem trocadilhos). Não se arriscava em banheiros públicos. Nas emergências, quando não tinha opção, simplesmente não fechava a torneira nem apertava a descarga. Nunca colocar a mão onde passam outras mãos – pensava. Tranquiliza-se calculando que a água que desperdiçava na torneira economizava no vaso. Se via dinheiro no chão, não pegava. As notas certamente teriam sido infectadas por algum psicopata interessado em acelerar o colapso da humanidade.

Com o tempo, Dona González aprendeu a estimar o número de infectados a partir dos óbitos e da taxa de mortalidade da doença. Imediatamente constatou que a quantidade de infectados estava subestimada. Se havia 1.500 mortos e se a taxa de mortalidade era 0,4%, os infectados somavam cerca de 375.000, e não os 10.000 divulgados. Sim, alguma coisa estava errada, e para pior. Ou a taxa de mortalidade era muito superior à divulgada, ou o total de infectados estava subestimado. Dona González passava as tardes fazendo contas, projetava a evolução da doença nos próximos dias. À noite assistia telejornais e verificava se havia acertado nos cálculos. Não pense, caro leitor, que a mulher era incapaz de formular tais raciocínios e de fazer contas complexas. Os meios de comunicação faziam uma cobertura exaustiva e sensacionalista da pandemia. Dona González passava horas ouvindo rádio. Era infalível nas contas quando precisava cobrar juros de inquilinos que atrasavam o aluguel. Além disso, sentia prazer em espalhar previsões apocalípticas para o barbeiro, os clientes da barbearia, os atendentes das farmácias e das agências bancárias. Até inquilinos ela assustava com previsões catastróficas. Sabia que podia incentivar calotes – por que pagar o aluguel se o mundo está acabando? –, mas não resistia. Quando alguém retrucava dizendo que os cientistas estavam trabalhando e que logo surgiria a cura, ela explicava que nenhuma vacina seria desenvolvida em menos de dois anos, emendava com a estimativa de mortos e infectados nos próximos meses. Lembrava que, mesmo se surgisse uma vacina, seria cara e inacessível para a maioria dos brasileiros. Recomendava cautela, prudência e realismo. Muita gente vai morrer, todas as famílias vão perder entes queridos, melhor se acostumar – insistia. Só parava quando percebia que as pessoas estavam apavoradas.

Dona González não confiava nos governos. Essa certeza lhe era anterior ao surgimento da televisão, remontava ao período posterior à vinda da família González para o Brasil, no imediato pós-revolução espanhola. Havia um componente anárquico na opinião dela: Hay gobierno? Era contra! Desde siempre!

Dona González fazia questão de lembrar que a gripe espanhola na verdade surgiu nos Estados Unidos. No mais, oscilava entre os que enxergavam a pandemia como desdobramento da gripe de 1918 e os que opinavam ser uma nova doença. No fundo, torcia pelos primeiros, posto que, se estivessem com a razão, talvez ela carregasse, no sistema imunológico, as informações necessárias para combater o vírus. Preciosas informações imunológicas adquiridas pelos pais e avós, em outros tempos.

Os livros de epidemiologia registrarão quem estava certo sobre a origem da doença. O sistema imunológico da Dona González não conhecia o novo vírus, mas ela sobreviveu. Passada a fase crítica, retomou a rotina. Voltou a freqüentar a barbearia da esquina e a abrir a porta segurando na maçaneta. Voltou a pagar as contas com dinheiro vivo, porque em banco não se deve confiar – repetia sempre. Está se preparando para a próxima tragédia, diz que surgirá uma pandemia muito mais perigosa que a gripe suína.

 

 

SÃO PAULO: A CAPITAL DO PIXO

 

Algumas perguntas e uma definição provisória

 

Primeiramente, um esclarecimento: pixo vai com x porque lembra lixo, e o ato de pixar não respeita as leis, muito menos as ortográficas.

 

São Paulo é outra coisa, não é exatamente amor, é identificação absoluta – cantou Itamar Assunção1. Mas o que é São Paulo? Identificação absoluta? Será?

 

Ninguém anda um quarteirão em São Paulo sem avistar muros, portões, pontos de ônibus e outros logradouros logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão. São os pixos. Já disseram que em São Paulo há edifícios que parecem cadernos de caligrafia gigantes. Dizem até que há quem visite a cidade exclusivamente para ver prédios pixados. Os pixos são uma espécie de anticartão do postal de São Paulo2, que também expõe frases políticas e até versos em suas fachadas, mas em menor quantidade.

 

As pixações não são exclusividade paulistana. Muito pelo contrário. Mas, parece-me que, quanto maior a cidade, mais pixos. Não é comum observar símbolos e palavras praticamente indecifráveis nos muros de cidadezinhas do interior. Talvez o fenômeno tenha a ver com a solidão aglomerada3 das megalópoles. Se for isso, é possível que minha impressão esteja correta e a maior cidade do hemisfério sul – São Paulo – realmente seja a capital do pixo, que é a estética da barbárie.

 

Se as pixações estão em todos os cantos, talvez tenham algo a dizer sobre a cidade. O que dizem os pixos? 

 

Hipótese 1

 

Havia centenas de nascentes e cursos de água em São Paulo. Com o crescimento desordenado, nascentes foram fechadas e cursos de água viraram escoadouros de esgoto canalizados debaixo do asfalto. Várzeas e lagoas foram aterradas pela especulação imobiliária. Para esconder vergonhas e aumentar lucros, foram construídos edifícios sobre várzeas e lagoas aterradas.

 

Nas últimas décadas do século XX, quando a cidade havia escondido suas vergonhas, os cidadãos desenvolveram o estranho hábito de logomarcar os muros com símbolos e palavras de difícil compreensão. Quanto mais punição, pintura e limpeza, mais registros praticamente indecifráveis. São as vergonhas da cidade reexpostas.

 

Hipótese 2

 

Gilles Lipovetsky enxerga um movimento de sedução superestetizada na arquitetura contemporânea, que empenha-se em surpreender, encantar e tocar as sensações visuais e táteis do público: a utopia foi suplantada pelo fetichismo da personificação da construção, o culto dos objetos singulares, a sedução das formas fluidas e as curvas livres, em sintonia com a cultura hedonista do consumismo triunfante4. O filósofo define o fenômeno como a arquitetura do espetáculo.

 

O pixo é um rechaço contra a sedução superestetizada da sociedade do espetáculo, incluindo a arquitetura. É um grito dos que não se sentem contemplados pelo capital, porque não têm dinheiro para consumir e/ou porque rechaçam a sociedade de consumo, ainda que não saibam como substituí-la.  

 

Existe amor por SP

 

Um amigo me contou que, tendo que trabalhar na Amazônia, começou a sentir saudade de São Paulo. Para matar a saudade, sintonizava programas policiais, que odiava, mas que às vezes mostravam as marginais, as ruas e as avenidas paulistanas, de forma que podia rever a cidade.

 

O exemplo do meu amigo mostra que existe amor por São Paulo. Mas é um amor estranho que se manifesta pelo avesso. São Paulo agride seus habitantes, que agridem a cidade. Como nos pixos?

 

Seja como for, uma coisa certa, o amor por São Paulo não tem nada a ver com o ufanismo bocó a la nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores5. É exatamente o contrário. Só não sei se chega a ser identificação absoluta, como cantou Itamar Assunção.

 

Algumas imagens e uma possibilidade

 

Gosto de andar por São Paulo. Com alguma atenção, é possível observar os caminhos percorridos pelos cursos de água que correm por baixo de escadões, vielas e canteiros. Todos canalizados e pixados. Como devia ser bonita a cidade antes do concreto e das canalizações, com centenas de cursos de água que corriam para interior...

 

Como é desagradável a cidade atual, com milhares de edifícios censurando o horizonte6, muitos logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão, o que indica, pelo menos, que alguém veio de longe, provavelmente da periferia, e se arriscou para esfregar na cara da sociedade que não concorda com as coisas como são e estão.

 

Há no pixo um quê de esporte radical, mas com uma diferença importante, a descarga de adrenalina não tem a ver apenas com a superação de limites físicos, é também um tapa na cara do Estado, das leis, da propriedade privada, da polícia, dos “cidadãos de bem”. Não é pouco. Dias Gomes afirmou que quem não veio ao mundo para incomodar não deveria ter vindo. Se é assim, o pixo está ontologicamente justificado.

 

Vejo o pixo como o vapor que sai pela válvula da panela de pressão. Se o pixo é o vapor, São Paulo é a panela de pressão, que pode explodir a qualquer momento, como em junho de 2013.

 Notas

[1] Versos da canção Persigo São Paulo.

[2] Ver os documentários Pixo, Pixadores em ação, Um grito em meio aosilêncio: pixo.

 [3] “Aglomerada solidão” é um verso da canção São, São Paulo, de Tom Zé.

[4] Lipovetsky, G., Da leveza. Barueri: Amaralys, 2016.

[5] Versos do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.

[6] Prédios:censuradores de horizontes. Sacada da camarada Danimar.


Publicado originalmente no Passa Palavra

A INSUPORTÁVEL LEVEZA DO ÚLTIMO TANGO


Uma coisa é procurar um livro, outra, muito diferente, é ser encontrado pela obra. Naquele dia entrei no sebo com espírito livre, pressentindo novidade. Respondi de maneira meio inusitada ao tradicional “o que o senhor procura?”, disse que procurava algo que não sabia ainda o que era, mas que estava perto. Não deu outra. Na quina da prateleira de literatura internacional avistei a obra O Último Tango, de Maxine Rabel.

Cena de Último Tango em Paris

Já tinha assistido e gostado do filme de Bernardo Bertolucci, O Último Tango em Paris, com Marlon Brando e Maria Schneider. Lembrava-me do apartamento fechado, da cena da manteiga. A famosa cena da manteiga... A cena que derramou lágrimas reais da atriz. Mas ignorava e continuo sem saber se o filme é adaptação do livro, curiosamente, nos tempos do google e da informação total, não encontrei nada que relacione filme e livro. Mas é certo que um gerou o outro. O mais provável é que o livro seja a origem do filme. Mas pouco importa. Um e outro são geniais e se justificam por conta própria.

Não foi o filme que me fez apanhar o livro. Talvez tenha sido a força trágica da palavra tango, ou quiçá minha atração pelo que é terminal, último, e todo tango é sempre derradeiro. Enfim,  comprei o livro e iniciei a leitura no mesmo dia.

Tudo ao mesmo tempo. Um suicídio. Um casamento nascendo, outro morto. Traições. Um apartamento fechado. Uma mulher no cume da parábola de sua feminilidade. Um homem de quarenta e alguns anos, envelhecendo, escorregando pela ladeira que leva o jovem ao velho. Ela Jeanne. Ele Paul. Ela francesa. Ele estadunidense.

Jeanne e Paul procurando apartamento para alugar. A coincidência. O encontro casual no imóvel vazio. Sexo nascendo do improvável, rompendo hierarquias, dispensando nomes e histórias pessoais, reposicionando a vida. Grunhidos substituindo sílabas. O prazer pelo prazer.

Prazer que cobra sua carga de dor. O Último Tango é a história de um homem jogado ao solo, é o nocaute do ex-pugilista Paul, morto nas batalhas do amor, derrotado pelo desafio que fez a si próprio. Um libertino vitimado pelas pauladas do amor romântico. Esperança mínima ceifada. Máquina do mundo repelida. Antimelodia do homem que percebe o anúncio de anos de solidão, e sucumbe abatido por sua carência. Carência que ele tenta esconder de todas as maneiras, inclusive com jabs e cruzados.


Cena de A insustentável
leveza do ser


O Último Tango sopra os ventos gelados da insustentável leveza do ser. Paul sucumbe sob toneladas de leveza. Jeanne tem algo de Sabina. Paul tem muito de Tomas, Franz e Tereza. Todos sufocados sob crostas de civilização.

Rabel tem algo Kundera, ou o oposto, posto que o último tango, do primeiro, toca antes da insustentável leveza do ser, do segundo. Mas isso importa pouco. E é igualmente pouco importante que os dois livros tenham sido adaptados e transformados em execelentes películas. O fundamental é que o último tango baila no ritmo da insustetável leveza do ser, que tem som de último tango.