SOBRE O ROMANCE


Entre 1967 e 1968, com quase 70 anos e praticamente cego, o escritor argentino Jorge Luis Borges proferiu palestras sobre literatura em Harvard. Posteriormente, as palestras foram transcritas e reunidas no livro Esse ofício do verso. São textos saborosos. A memória e a erudição de Borges impressionam. Ele cita e comenta textos e versos de cabeça. Coloca-se mais como leitor do que escritor. Deixa a impressão de que poucos leram tanto quanto ele. Discute tradução, metáforas, música das palavras. Diz que os poetas deveriam ser anônimos, porque ele próprio às vezes descobria que estava apenas citando, involuntariamente, em seus escritos, palavras lidas em outros autores. Confessa ter enganado amigos atribuindo metáforas a antigos persas e nórdicos, porque ninguém as aceitaria e diria que eram um “primor” se soubesse que tinham sido elaboradas por um “reles contemporâneo”. Questão interessante e polêmica é concepção de Borges sobre o romance. Ele afirma que foi principalmente por preguiça que nunca escreveu um romance, mas não só. Diz nunca ter lido um romance sem sentir “certo fastio”, o que teria a ver com o “recheio” das obras. Para Borges, bons contos – por exemplo, de Henry James e Rudyard Kipling – são tão complexos e mais prazerosos do que longos romances. Para o escritor argentino, o romance estava em declínio e tendia a desaparecer, apesar dos experimentos interessantes como o deslocamento temporal e a possibilidade da história ser contada por personagens diferentes.  Borges se coloca a favor da épica, não somente por uma suposta superioridade do verso sobre a prosa, mas porque no futuro contar uma história se reencontraria com o canto, reabilitando os poetas. Borges se incomodava porque nos romances prevalece a “aniquilação de um homem” e a “degradação do caráter”, enquanto na épica os heróis eram exemplos para os demais.  

 

Marx não escreveu especificamente sobre estética, mas em vários textos registrou ideias que permitem pensar a arte a partir do materialismo histórico. Ao tomar contato com o argumento de Borges, segundo o qual o contar uma história se reencontraria com o canto, reabilitando a épica, lembrei de alguns trechos em que Marx diz mais ou menos o contrário. Estão na Contribuição à crítica da Economia Política. Marx pergunta se Aquiles é compatível com a pólvora, se as musas não desaparecem diante da régua do tipógrafo, assim como haviam desaparecido as condições necessárias para a poesia épica. Mais à frente, no mesmo texto, afirma que a dificuldade não está em relacionar a arte ao desenvolvimento social, questão mais difícil é pensar por que obras antigas proporcionam prazer estético, além de conterem, sob certos aspectos, o valor de normas e modelos inalcançáveis (penso, por exemplo, em Borges atribuindo metáforas a antigos persas e nórdicos, porque ninguém as aceitaria se soubesse que tinham sido elaboradas por um “reles contemporâneo”). Marx prossegue citando os gregos: “Por que a infância histórica da humanidade, ali onde alcançou o seu mais belo florescimento, numa etapa de desenvolvimento para sempre encerrada, não haveria de exercer um eterno fascínio?” O encanto da arte grega não estaria em contradição com o débil desenvolvimento da sociedade em que floresceu, era, antes, o produto de condições sociais “insuficientemente maduras”, que não retornariam e que eram as únicas que poderiam ter gerado aquele encantamento.      

 

Voltemos ao romance. Iniciemos com uma definição. Milan Kundera[1] entende o romance como “a grande forma de prosa em que o autor, através dos egos experimentais (personagens), examina até o fim alguns grandes temas da existência.” Borges afirma que o “recheio” dos romances causava-lhe “certo fastio”. A questão é que bons romances não precisam ser recheados, antes pelo contrário. Sabe-se, com Juan Rulfo e Graciliano Ramos, que escrever, inclusive e talvez principalmente no caso dos romances, tem muito mais a ver com cortar e enxugar do que com rechear. Rulfo[2]: “No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o ritmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o voo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito.” Graciliano[3]: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa.” Se é assim, bons romances formam uma totalidade orgânica, inseparável e irredutível, que prescinde de recheios.

 

Pensando em Madame Bovary, parece-me que a potência estética pode estar justamente no que algum desavisado[4] talvez chamasse de “recheio” do romance, mas que é inseparável do texto. Histórias sobre adultérios são comuns. Mas em Madame Bovary são misturadas “imagens voluptuosas a elementos sagrados”, produzindo uma espécie de “poesia do adultério” – as palavras entre aspas são do promotor que levou Flaubert para o banco dos réus por ter escrito o romance[5]. Há uma passagem saborosa com a tal “poesia do adultério”, que enfurece os moralistas, é quando Emma Bovary se encontra com o amante numa igreja:

 

"León, a passos lentos, caminhava rente à parede. Nunca a vida lhe parecera tão boa. Ela chegaria dentro de pouco tempo, adorável, agitada, espiando atrás de si os olhares que a seguiam – e com seu vestido de folhos, seu lornhão dourado, suas botinas finas, com toda a elegância que ele ainda não saboreava e com a inefável sedução da virtude que sucumbe. A igreja, como uma gigantesca alcova, disporia-se em torno dela; as abóbodas inclinariam-se para recolher na sombra a confissão de seu amor; os vitrais resplandeceriam para iluminar seu rosto e os incensórios queimariam para que ela aparecesse como um anjo, no vapor dos perfumes."

 

A acusação formal contra Flaubert atesta a força do romance. Fazer dois amantes se encontrarem numa igreja, como se fosse uma alcova preparada especialmente para o casal... Falar da “inefável sedução da virtude que sucumbe” dentro de uma igreja... Seria possível ir tão longe em um conto ou em um poema? Que outra arte, senão o romance, permitiria uma provocação tão iconoclasta? Intimado pelo tribunal a dizer em quem se baseou para criar a grande adúltera, Flaubert respondeu “Emma Bovary sou eu”. Em certo sentido, era mesmo, frequentaram os mesmos ambientes, leram os mesmos livros, sentiram o mesmo tédio, que, diga-se de passagem, o escritor propositalmente faz o leitor experimentar ao passar pelo que algum desavisado talvez definisse como o “recheio” do romance.

 

Se o tempo presente é de homens partidos, como escreveu Drummond, é difícil imaginar que contar e cantar uma história possam se reconciliar, como quer Borges. A “aniquilação de um homem” e a “degradação do caráter”, que incomodam o escritor argentino, não estão no romance, estão na realidade, que enlouqueceu Dom Quixote, aniquilou Anna Karenina, metamorfoseou Gregor Samsa[6].

 

Enquanto existir capitalismo, entendido como um modo de produção que desenvolve as forças produtivas da sociedade contrapondo-as aos indivíduos, o romance seguirá existindo como campo privilegiado de expressão, como possibilidade de recriar a vida e a sociedade. Haverá sempre alguém disposto a explorar algum aspecto da existência e, para isso, o romance é a ferramenta mais apropriada, inclusive porque nele é possível integrar a poesia, a filosofia e outros saberes. Não há arte melhor equipada para captar o estranhamento produzido pela separação dos produtores em relação aos meios de produção. Ou, como nos termos de Milan Kundera[7]: “na época da divisão excessiva do trabalho, da especialização desenfreada, o romance é um dos últimos lugares onde o homem ainda pode guardar relações com a vida em seu conjunto.” Se é assim, não é coincidência o romance ter se desenvolvido paralelamente ao capitalismo: enquanto este promove uma intensa divisão do trabalho e dos saberes, aquele resiste quase como uma última trincheira.

 

Vou mais além e fecho com uma intuição. Mesmo a possível superação do capitalismo não significa necessariamente a superação do romance, entendida como reencontro do contar com o canto, reabilitação dos poetas ou como queiram chamar e definir. Consigo imaginar a superação do capitalismo. Tenho dificuldade para imaginar a superação do romance.

 

Notas

[1] A definição citada está no livro A arte do romance, no ensaio Sessenta e três palavras.

 

[2] A citação de Juan Rulfo está na nota do tradutor, Eric Nepomuceno, numa edição de bolso (BestBolso) do romance Pedro Páramo.

 

[3] A comparação da escrita com o ofício das lavadeiras de Alagoas foi feita por Graciliano Ramos numa entrevista concedida em 1948.

 

[4] Não sei se Borges iria tão longe a ponto de criticar o “recheio” de Madame Bovary. Sendo assim, o “desavisado” não se refere ao escritor argentino.

 

[5] Boas sacadas sobre a escrita de Flaubert, como a que reproduzi, estão no livro A orgia perpétua, de Mario Vargas Llosa. Sobre a grande adúltera, relida depois de ler Llosa, escrevi Emma Bovary: a condenação perpétua.  

 

[6] Para uma leitura sobre a relação trabalho e saúde em A metamorfose, de Franz Kafka, ver Gregor Samsa: insegurança e adoecimento de um trabalhador.

 

[7] O trecho citado está no livro A arte do romance, no ensaio Anotações inspiradas por Os sonâmbulos. 


Publicado originalmente no Passa Palavra 


35 cores do crepúsculo. 35 cantos da água. 35 perfumes da terra. 35 m2 do apartamento em que vivo, na cidade de São Paulo, com o barulho do trânsito e essa mania de quantificação. Essa capacidade de me desnudar no verso e de me vestir na vida. Certo gosto pela solidão. Indivíduo parido e partido pelo tempo burguês: às vezes querendo marcar de alguma forma minha passagem pelo mundo, entre 1978 e algum ponto ainda indefinido do século XXI; às vezes desejando desaparecer numa mata fechada, escapando das estatísticas e dos cemitérios. Esse espanto de me imaginar enterrado num cemitério do litoral: entre a umidade, as cruzes, os urubus, o barulho do mar e o esquecimento (os ossos dos mortos duram mais que os cemitérios). Esse escrever poesia e essa dificuldade para a prosa de quem escreve no escritório: como se vomitasse palavras, como se manquitolasse, como quem agoniza, para não enlouquecer. Quanta saudade dos irmãos que, por delicadeza, preferiram morrer. Essa certeza de que Drummond é o poeta maior e essa desconfiança de que a vida não é mais uma ordem. Aos 35 anos os músculos do homem começam a atrofiar. Homem húmus terra nem sempre fértil. 7,5 bilhões de seres humanos no mundo, nem todos comem todos os dias. Quanta vontade de explodir o mundo burguês, que joga comida, homens, mulheres e crianças no lixo. Essa individualização – esse eucentrismo – que separa os homens. Esse escritório que me empurra para a poesia: essa clandestina. Essa moral cristã que prega na cruz e afasta da terra. Essa moral cristã que separa o desejo do amor. Esse pronome demonstrativo: inescapável herança do poeta de Itabira? Enfim. Eu: 35 anos: paulistano canalizado como os rios da cidade, como o Água Preta, que corta meu bairro por baixo do concreto: carregando fezes, dores e saudades.

 BACURAU E RECIFE FRIO: DA NEVE AO CAOS

 

Há no Recife uma outra chuva

(embora rara), rala, miúda.

 

Não como a chuva da chuvada,

que cai, agride, e é pedra de água,

 

passa em peneiras esta chuva,

não traz balas, não tranca ruas:

 

mas faz também ficar em casa,

quem pode, antevivendo o nada.

 

(João Cabral de Melo Neto)

 

Prolegômenos

 

Bacurau é um longa-metragem de 2019. Recife Frio é um curta-metragem de 2009. Bacurau é um filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Recife Frio é um curta de Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles atuou como diretor de arte. As duas obras foram premiadas e reconhecidas. Bacurau foi sucesso de público, o que motivou centenas de resenhas contra e a favor. Em geral, os críticos apontaram as referências do longa aos filmes de terror de John Carpenter, aos faroestes, ao cinema novo; no caso do curta, destaca-se por si própria a questão das mudanças climáticas, mas há muito mais.

 

Comparação possível e, salvo engano, não realizada, pode ser estabelecida entre Bacurau e Recife Frio, este não foi colocado entre as dezenas de referências daquele, e nem podia ser. Mas ambos foram concebidos na mesma época e iniciam com a mesma inscrição: “daqui a alguns anos...” Nos dois o mal vem de fora e altera a rotina. Recife Frio fecha com Lia de Itamaracá cantando e dançando numa praia gelada. Bacurau inicia com o funeral da matriarca do povoado, interpretada por Lia de Itamaracá. Bacurau é um pássaro noturno, e é, também, o nome de um ônibus recifense, o último da madrugada. Recife Frio é um oximoro, uma figura de linguagem que anuncia uma verdade com aparência de mentira. Em Bacurau, um bando de assassinos estrangeiros, apoiados por dois sulistas e pelo prefeito local, vai ao povoado para atirar nas pessoas com “armas vintage”. Em Recife Frio, um meteorito cai e derruba as temperaturas, altera o clima da região, instaura a “república do mau tempo”: a neve congelou a lama do rio, “quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.1 Imagens atuais antevistas: caixões espalhados pelo caminho (Bacurau), corpos ensacados nos corredores (Recife Frio).

 

Mas se há semelhanças, mais interessante é explorar as diferenças. Em Bacurau, a comunidade se une para derrotar os assassinos e garantir a própria existência, trata-se de manter e não de revolucionar a vida, a contradição se estabelece entre locais e estrangeiros, todos idealizados: bem contra o mal, hollywoodianamente, o público é incentivado a tomar partido da comunidade atacada. Em Recife Frio, a mudança brusca do clima instaura a “república do mau tempo”, aumentam as contradições sociais, que o curta denuncia sem promover identificações fáceis. Bacurau faz caricatura dos que se manifestam pela direita, com camisas da seleção brasileira e bandeiras estadunidenses. Recife Frio pode ser lido em relação às mudanças climáticas negadas pela direita, mas destaca as contradições sociais.

 

Kleber Mendonça Filho afirmou que “Bacurau é um exercício sem vergonha em ser de gênero.” Acrescento. Daí a catarse, a identificação fácil e o sucesso de bilheteria. Recife Frio subverte as fronteiras dos gêneros. É documentário, drama, comédia, ficção científica. Acrescento. Daí a força poética do curta.  

 

Da capital para o sertão?

 

Na ficção, o povoado é tirado dos mapas eletrônicos pelos assassinos estrangeiros. Na realidade, o idílio sertanejo nunca existiu: a miséria, a fome, a seca, o mandonismo latifundiário sempre estiveram presentes. O contraponto concreto a Bacurau é Toritama2, cidade em que população foi transformada em exército de trabalhadores precarizados, que produzem calças jeans: a ameaça são as máquinas têxteis e não as “armas vintage”.

 

Kleber Mendonça é obcecado por Recife, como o poeta João Cabral. A maioria dos trabalhos do diretor dialoga com a cidade: verticalização, desigualdade, exclusão, violência, milícias, herança escravista. Os famigerados quartos de empregada – senzalas do tempo presente – aparecem em longas e curtas do diretor. Em Recife Frio, com a mudança climática, o filho de uma família endinheirada – “vítima arquitetônica do frio” – exige o quarto da empregada, que não tem ventilação, não é virado para o mar e, por isso, é mais quente. Bacurau é um pássaro noturno e dá nome ao último ônibus do Recife. Seria o filme um movimento em direção ao sertão? Para dentro e para trás? Uma fuga da visão do nada? Recife retratada nos filmes de Kleber Mendonça, como O Som ao Redor e Aquarius, é uma cidade crivada de contradições, como todas as capitais brasileiras. A modernidade discutível não supera a herança colonial, reforça-a. É o ponto forte dos filmes de Kleber Mendonça sobre o Recife. Mas como voltar a filmar a cidade depois de Aquarius e O Som ao Redor? É possível rodar um filme ainda mais claustrofóbico e sem saída do que os dois citados? Melhor evitar a visão sombria? O tempo responderá.      

  

Daqui a alguns anos...

 

Bacurau e Recife Frio foram concebidos na mesma época e a partir de uma ideia-chave semelhante: alterações provocadas por fenômenos externos às sociedades, mas com sinal trocado. No longa, o povoado se une para combater os assassinos estrangeiros, contradições locais são ignoradas em proveito do bem comum. No curta, as alterações climáticas potencializam as contradições sociais, quem pode mais chora menos, a corda arrebenta no lado mais fraco, não é difícil imaginar que os corpos ensacados no corredor são de pobres vitimados pelo frio. O primeiro ter sido um sucesso de público não é coincidência, além de fazer uso de simplificações hollywoodianas, oferece exatamente o produto demandado por parte do público.

 

Houve críticas fortes e certeiras a Bacurau. a) “Todos os que foram ao cinema procurar um filme que se contrapusesse ao terrível estado de nossa sociedade saem aliviados por terem visto nas telas a justiça; na vida real, tudo permanece igual. E, involuntariamente, o filme contribui para, efetivamente, manter as coisas tal como são [...] A forma ‘popular’ tomada de Hollywood pode garantir grandes momentos catárticos e boas bilheterias, mas para conseguir falar da verdade e incitar uma mudança social é preciso procurar caminhos distintos.3 b) “Não chamamos a atenção para o excesso de alegoria, como se faltasse ‘realismo’, mas sim o contrário: as figuras postas em movimento pelo filme são excessivamente simplórias, de um realismo rasteiro e fraco de imaginação  [...] Estamos às voltas de um desejo irreprimível da esquerda brasileira, o anseio pelo retorno de um pacto que começou a ser desfeito em 2013 [...] única coisa verdadeiramente sutil em Bacurau é a paródia da própria esquerda, obviamente efeito não calculado pelos diretores.”4

 

Mas a crítica mais contundente a Bacurau foi a da realidade, veio poucos meses após o lançamento do filme. A pandemia da COVID-19 alterou a vida e potencializou contradições sociais. Políticos genocidas adotam medidas de extermínio, como exigir a abertura do comércio no pico da doença. Reacionários negacionistas organizaram carreatas da morte, em carros fechados exigem que os demais se exponham ao vírus. O real está mais para Recife Frio do que para Bacurau. O quadro distópico e anti-hollywoodiano não dá retorno de bilheteria, mas é o que prevaleceu na quarentena. Quem pode fica em casa, antevivendo o nada, como no poema de João Cabral de Melo Neto. Quem não pode ficar em casa, arrisca-se, vai buscar o pão de cada dia, apesar do vírus. O velho está morrendo, o novo ainda não nasceu.

 

A metáfora da sombra

 

Recife foi uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. No meio do caminho tinha um megaevento. Kleber Mendonça Filho dirigiu o documentário A Copa do Mundo no Recife. Reparando bem, estava tudo lá: a gentrificação, a classe média com a camisa da seleção brasileira, a militarização, os shoppings, a verticalização e até os estrangeiros, que, se não caçavam pessoas com “armas vintage”, percorriam a cidade atrás de sexo e cocaína.

 

O roteiro é batido, com pequenas variações, foi encenado em todo o país. Em 2008, durante o governo Lula e num leilão duvidoso, empreiteiras adquiriram o cais José Estelita, terreno federal de cerca de 100 mil metros quadros, que abrigava galpões da antiga rede ferroviária. O projeto arquitetado pelas empreiteiras e aprovado pela prefeitura petista: construir um condomínio de luxo, 13 torres com até 40 andares. Os financiadores de campanha exigem retorno dos investimentos eleitorais. As esferas municipal, estadual e federal concordam e obedecem sem questionar. A população reagiu com o movimento Ocupe Estelita5: música, arte e cultura contra a especulação imobiliária, pela democratização da cidade. Vale lembrar que, anteriormente, haviam sido erguidas as “torres gêmeas”, com 41 andares, descaracterizando o patrimônio histórico do Recife. Kleber Mendonça usou recursos digitais para excluir os edifícios gigantes da paisagem no longa Aquarius. Em 2014, no dia em que a seleção brasileira enfrentou a mexicana, na cidade do Recife, a tropa de choque foi enviada para expulsar o movimento Ocupe Estelita. A prefeitura era do PSB. O governo de Pernambuco era do PDT. A presidência da república estava com o PT.

 

As imagens da repressão ao movimento Ocupe Estelita integram o documentário A Copa do Mundo no Recife, de Kleber Mendonça, que encerra com uma antevisão do nada: a câmera percorre um campo de futebol abandonado, com a grama alta, enquanto ouve-se a narração dos primeiros lances da partida entre Brasil e Alemanha, o 7 x 1. Segundo o comentarista, apesar do excelente toque de bola alemão, a seleção brasileira estava muito bem. Deu no que deu. O resultado é conhecido. A Copa do Mundo organizada para consolidar o Brasil potência virou um fiasco esportivo e social: uma seleção humilhada, dezenas de obras tão superfaturadas quanto inúteis. A economia que, segundo todos os analistas, tinha “fundamentos sólidos” – mantra repetido ad nauseam –, desmoronou. Bombas, gases e cassetetes passaram a compor o ecossistema das cidades brasileiras.

 

A repressão ao levante de junho de 2013 demarca o colapso do “neoliberalismo de esquerda” no Brasil. Necessário registrar que, se é neoliberal, não pode ser de esquerda, e isso se aplica ao PT, daí as aspas. O “neoliberalismo de esquerda” colapsou quando o regime se mostrou absolutamente incapaz de absorver as pautas das ruas: educação, saúde, transporte público de qualidade. Naqueles dias quentes se dizia que um professor vale mais que o Neymar, queremos hospitais padrão Fifa, passe livre já... Enquanto bombas de efeito moral, gases lacrimogêneos, balas de borracha e cassetetes respondiam, em nome do Estado, do capital e dos partidos da ordem. O resultado era previsível. Se a esquerda institucional não consegue sequer frear as ruas, se não dialoga com elas, não serve para nada, daí a substituição de gestores ocorrida em 2016 e aprofundada em 2018. Se é para reprimir abertamente, melhor passar o cassetete para a direita puro sangue. Os fantoches de verde amarelo protestando nas ruas eram apenas a aparência visível do fenômeno. A decisão foi da burguesia brasileira.

 

Mas se a repressão aos levantes de junho de 2013 marca o início do fim do “neoliberalismo de esquerda”, se o 7 x 1 simboliza uma mentira subitamente revelada, se o gigante adormeceu no berço esplêndido, há uma metáfora sutil que foi construída nos anos de falsa fartura, financiada pela alta dos preços das commodities e pelo crédito transbordante: a sombra sobre as praias. Nas cidades em que a especulação imobiliária engordou os caixas das empreiteiras, com apoio de prefeituras e governos, foram erguidos edifícios gigantes, como as torres gêmeas do Recife, que não apenas deformam a paisagem. Durante boa parte do dia as construções bloqueiam os raios do sol. As sombras sinistras dos edifícios gigantes eram sinais.        

 

Agentes do caos?

 

O chefe do bando de assassinos que ataca Bacurau se define como um alemão mais americano que os americanos. Kleber Mendonça Filho definiu o personagem como um “louco que atira pedras”, um “agente do caos”. Não está distante da forma como a esquerda reformista enxerga Bolsonaro e a extrema direita. O caos seria a ruptura do idílio lulista, teria despencado sobre a sociedade, como uma tempestade abrupta e imprevisível.

 

Parte envolvida na questão como demandante, a esquerda da ordem, representada pelo petismo e satélites, não enxerga a relação entre a repressão aos protestos iniciados em junho de 2013 e o fortalecimento da direita. Mas a virada ocorreu exatamente ali. As pessoas poderiam, com sorte, ser consumidoras e teriam até acesso a crédito, mas não deviam reivindicar saúde, educação e transporte público de qualidade. O agronegócio seria incentivado e subsidiado, apesar da destruição do meio ambiente. O governo organizaria megaeventos, construiria estádios inúteis e ponto final. Ao capital tudo, aos demais as sobras do banquete. Condomínios de luxo seriam erguidos em áreas de interesse social, como o cais José Estelita. Os fundamentos do regime são inegociáveis. Ponto. Bombas e cacetadas em quem questionar. Um outro mundo não é possível, pelo menos para a esquerda reformista.

 

Luz amarela para o capital. A insatisfação popular explodiu justamente quando os preços das exportações caíam, e o crédito secava. O superávit primário se reduzia ameaçando o pagamento da dívida pública. Se não há espaço para a conciliação, se o reformismo não é capaz de frear a classe trabalhadora, o petismo e satélites são descartáveis. Os que aparecem como agentes do caos na visão invertida do reformismo são, em verdade, os gestores escolhidos pela burguesia para períodos de acirramento da luta de classes.  

 

Se o modo capitalista de produção é ingovernável, se o socialismo não é colocado na mesa, se o contraponto à extrema direita é o reformismo bem comportado, não há alternativas: impõe-se o cada um por si, terreno fértil para os reacionários. Se o capital prescinde cada vez mais de trabalho vivo, se o exército industrial de reserva cresceu a ponto de dar prejuízo, por que não eliminar o excesso? Se vigora o just in time para os estoques, por que não adotar o mesmo procedimento para a mercadoria força de trabalho? No beco sem saída em que se meteu o capitalismo, os agentes do caos são mais úteis do que os reformistas. O modo de produção se mantém ampliando suas contradições, daí a necessidade de aumentar a repressão.

 

O quadro é assustador e asfixiante, mas é nas situações limite que surgem as alternativas. Quando todas as saídas estão fechadas, é preciso arrombar as portas.

  

Notas

 

1 Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos: “O sol queimou, queimou, a lama do rio. Eu vi o chié andando devagar. Vi um aratu pra lá e pra cá. Vi um caranguejo andando pro sul. Saiu do mangue e virou gabiru. Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça.”

 

2 Estou me guardando para quando o carnaval chegar: faz parte dessa solidão.

 

3 Bacurau: uma alegoria catártica dos impasses políticos do nosso tempo.

 

4 Bacurau, alegoria de um sonho que morreu.

 

5 Um pouco da luta do movimento Ocupe Estelita pode ser vista no documentário Recife, cidade roubada.




Texto publicado originalmente no Passa Palavra 

 SOUZALOPES

 

em qualquer lugar aqui o tempo grita

grita vamos plantar pedras vamos

(Souzalopes)

 

Há dezenas de anedotas contadas sobre e pelo poeta Souzalopes. Quando algum amigo dizia que estava escrevendo um romance, para depois lhe pedir a opinião, o poeta se antecipava e perguntava se o escrito estava no nível de um Dostoievski. Se não estivesse, melhor não publicar. A história se repetia toda vez que alguém dizia estar escrevendo um romance. O que podia parecer uma provocação era realmente uma provocação, mas era, também, um programa estético, quase uma ética: só publicar o que deve ser publicado.  

 

Como não podia deixar de ser, Souzalopes publicou pouco. Três livros artesanais organizados e editados pelo próprio autor. Poemas espalhados em jornais, revistas, antologias, zines, sites, blogs. Ficaram, também, sacadas em cartas, e-mails e na memória dos que conviveram com o poeta. Era uma inteligência rápida e sarcástica. Deixou inéditos. Mas é difícil publicar um poeta que não gostava de editoras comerciais sem lhe trair os princípios. Foi possível, pelo menos, digitalizar os livros artesanais disponíveis, além de reunir escritos esparsos (poemas e contos, Todo Fogo, Hágua, Ferro & Carcoma, Pau & Pelo, Manifesto do Partido Comunista em Cordel).

 

Há um quê de poesia marginal em Souzalopes, mas com diferenças importantes. É difícil imaginar o poeta vendendo livros em teatros, cinemas, bares e cafés. Além disso, enquanto a poesia marginal é espontaneidade, Souzalopes é uma intensa luta com as palavras, no sentido drummondiano.

 

No tempo presente há uma grande proliferação de “poetas”. Muitos vendendo livros nos saraus como se vendem automóveis nas concessionárias e jazigos em cemitérios. Desconfio que existam, atualmente, mais poetas do que leitores de poesia. É uma lástima. Limitados a vender o que escrevem e devido a pouca leitura, muitos “poetas” sequer percebem os próprios limites. A grafomania (mania de escrever livros) e o capital, que transforma tudo em mercadoria, transforma “poetas” em vendedores. Mas não há nada menos mercantil do que a poesia.

 

Souzalopes participou do grupo Pindahyba. Também escreveu para a revista Brasil Revolucionário e, no final da vida, foi próximo do Espaço Cultural Mané Garrincha. Com os coletivos Cacimba e Cacorê, Souzalopes organizou um seminário de poesia contra a privatização do alfabeto, discutiu desde a Grécia antiga até os dias atuais. Só poesia, sem academesmices. Não comentava escritos próprios. Não adiantava insistir. Foi poeta e leitor. Leu muito mais do que escreveu. Dominava a arte de fazer versos como poucos, o que se expressou, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista recriado em cordel, com sextilhas e versos de sete sílabas poéticas. Nos primeiros poemas, publicados em livros artesanais, criou versos difíceis, que não se oferecem de primeira, além de ameaçarem romper as possibilidades comunicativas. Precisam ser frequentados com calma e tenacidade. Água, fogo, ferro, corpo, merda, sangue, pedra, pau e pelo são palavras presentes nos versos do poeta. É uma poesia materialista: bela, mas também seca, dura, quente, com espinhos e difícil de ser percorrida, como a Caatinga.

 

Nei Lopes e Luiz Antonio Simas concluem bela a obra Filosofias Africanas comentando “a sabedoria das árvores”. Retomam o livro A Geografia da Pele, de Evaristo de Miranda, para falar de uma árvore conhecida pelos Hauçás como gao. É uma acácia que cresce no Sahel, região africana de transição entre a savana e o deserto. O gao seria uma espécie de árvore do contra. Na época das chuvas, quando a vegetação verdeja e floresce, o gao perde as folhas, murcha e fica cinza. Na época da seca, quando a floresta murcha, o gao esverdeia e floresce. A árvore do contra subverte o normal e, assim, oferece sombra e alimento em tempos difíceis. Gosto de pensar em Souzalopes como uma espécie de gao, um poeta do contra, um plantador de pedras. Um homem que sabia, como sabem os povos da África Austral, que “a palavra é como pedra: se atirada, não tem volta.” Dizia que um romance só deveria ser publicado se estivesse no nível de um Dostoievski. Publicou apenas livros artesanais. Floresceu em tempos de seca. 

 

Fecho com algumas pedras plantadas pelo poeta, cinco poemas da florada de Mário Luiz de Souza Lopes (1954 – 2012), o Souzalopes. Os desenhos são anteriores aos versos e foram elaborados pelo irmão do poeta, Marciano Lírio de Souza Lopes (1953 – 1978). Desenhos e poemas compõem o livro Todo Fogo, publicado artesanalmente, no melhor sentido da palavra, em 1983. Em tempos grafomaníacos, quando até versos são transformados em mercadoria, vale (re)descobrir um poeta que tratava a poesia como uma “cadela dialética”.







Publicado originalmente no Passa Palavra.



 

Eram os saudosos anos 1980. Eu fazia catequese todo domingo às sete horas da manhã. As aulas terminavam às nove, quando começavam as missas, que devíamos assistir. O padre pregava no mesmo horário em que a televisão exibia jogos do campeonato italiano de futebol. Alguns moleques, eu entre eles, sempre davam um jeito de escapar das missas para assistir as partidas. Maradona jogava com a camisa 10 do Napoli. Sem nominar os pecadores, a professorinha de catequese lembrava que alguns não assistiam as missas, mas Deus estava vendo. Era quando os coleguinhas que sentavam nas primeiras carteiras olhavam para trás, nos encaravam e balançavam as cabeças em sinal de reprovação. Eu ficava preocupado porque conseguia fugir da professorinha, do padre e até dos coleguinhas caguetas, mas não de Deus. Pensei em confessar minhas fugas algum dia. Mas nunca assumi que trocava as missas de domingo pelo campeonato italiano. Precisava inventar algum atenuante que não elaborei em tempo. Não queria repetir a mesma desculpa dos outros moleques. Época de provas? Ajudar a família? Fazer feira para os velhinhos? O que dizer no confessionário? Depois cresci e entendi que Deus não estava preocupado com os moleques que fugiam da missa. Naquele tempo, Deus jogava futebol com a 10 do Napoli, ou então estava ocupado assistindo Maradona jogar com a 10 do Napoli.

 



Publicado originalmente na Revista Aroeira

  O BRASIL E A PARALISIA DO SONO


O teatro dos vampiros é uma canção da Legião Urbana lançada em 1991, quando o neoliberalismo dava os primeiros passos no Brasil: “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro. Os meus amigos todos estão procurando emprego [...] a cada hora que passa envelhecemos dez semanas”. Passadas três décadas, a sensação é parecida. O Brasil é um enorme teatro de vampiros. 

 

Matéria publicada na Folha de São Paulo informou que, entre os entrevistados, 26% cortaram ou reduziram despesas com planos de saúde, enquanto 14% deixaram de pagar escolas privadas e transferiram os filhos para a rede pública [1]. Ao mesmo tempo, tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, também conhecida como reforma administrativa, ou PEC da Rachadinha, porque amplia a possibilidade de indicação, sem concurso público, para cargos de “liderança e assessoramento”. Como se não bastasse o patrimonialismo escancarado, todo movimento da PEC é privatizante, reposiciona o Estado como subsidiário do mercado. Ou seja, não é uma simples reforma administrativa, é uma reorganização do capitalismo brasileiro para garantir os lucros da burguesia. Originalmente, o texto propunha que a subsidiariedade fosse incluída entre os princípios da administração direta e indireta dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Na prática significa que só deve haver serviços públicos em áreas não alcançadas por empresas privadas. O princípio da subsidiaridade foi retirado, mas a essência da PEC se mantém: fragiliza e enfraquece os serviços públicos para garantir os lucros da burguesia.  Numa conjuntura de forte crise do capital, com a população sem condições de pagar por saúde e educação, a burguesia amplia o problema destruindo e enfraquecendo os serviços públicos.

 

Com a PEC da Rachadinha, a precarização chega ao último reduto do trabalho estável no Brasil, o funcionalismo. Se a reforma administrativa for aprovada, virão contratações por prazo determinado, inclusive devido à paralisação de atividades (greves), restrições para concessão de estabilidade, fragmentação de carreiras, avaliações duvidosas. Tudo somado, crescerá ainda mais o assédio moral, além de fragilizar os sindicatos e os serviços públicos, comprometendo, sobretudo, a população que não pode pagar por saúde, educação e outros serviços.

 

Em 18 de agosto, houve um dia nacional de luta dos trabalhadores do setor público contra a PEC da Rachadinha e pelo fora Bolsonaro. A mobilização foi importante, mas insuficiente para atingir os objetivos a que se propôs. Parece que, quanto mais cristalino fica que o bolsonarismo só pode ser derrotado nas ruas, mais a esquerda institucionalizada adia e limita os enfrentamentos para a eleição de 2022. A esquerda mais à esquerda esbraveja, lança panfletos, denuncia, escreve notas de repúdio, organiza lives, mas não consegue influir decisivamente nos acontecimentos.

 

No Brasil estão sendo destruídos os biomas, os direitos trabalhistas, a seguridade social, a saúde, a educação, as universidades, as instituições de pesquisa. A população pobre e periférica é vítima constante das polícias militares. Estão ameaçadas as demarcações das terras dos povos originários. A conta de luz sobe sem parar e há risco de ocorrerem apagões nos próximos meses. A inflação devora a renda da classe trabalhadora. A pandemia ceifou, até agora, mais de meio milhão de vidas, sendo que muitas mortes poderiam ser evitadas. O aumento da miséria é visível nas calçadas, com dezenas de pedintes nas portas dos bancos, drogarias, supermercados e restaurantes. A precarização é visível nas ruas e avenidas, com centenas de trabalhadores correndo, arriscando a vida e ganhando pouco para entregar comida e outras mercadorias. 

 

A partir dos anos 1990, inclusive durante os governos do PT, a burguesia brasileira atuou para transformar o neoliberalismo em lei, fechando as possibilidades para keynesianismos e desenvolvimentismos. Penso, por exemplo, na lei de responsabilidade fiscal. Como ser keynesiano e/ou desenvolvimentista sem poder intervir na economia ampliando os investimentos públicos? Por trás de todas as contrarreformas estava – e está – a inconfessável necessidade de garantir recursos para o pagamento da dívida pública, que consome aproximadamente metade do orçamento do Estado brasileiro, asfixiando a economia para enriquecer um punhado de parasitas. Nos últimos anos, com a crise do capital, a burguesia intensificou os ataques: uma nova e mais brutal reforma da previdência, a autonomia do Banco Central, a Emenda Constitucional do Teto de Gastos, mais privatizações, as reformas trabalhista e administrativa. Enquanto o presidente arrota sandices e golpes de Estado, os burocratas abaixo dele conspiram para eliminar direitos dos trabalhadores e desconstruir o pouco que ainda resta dos serviços públicos. Em agosto passado, no mesmo dia em que tanques de guerra passearam por Brasília espalhando fumaça, a Câmara aprovou mais um grande ataque aos trabalhadores, dessa vez definido eufemisticamente como minirreforma trabalhista. Mas, como era previsível, nenhuma das contrarreformas, nem todas somadas, produziram – ou produzirão – o crescimento econômico que prometiam, antes pelo contrário, na última década o país empobreceu em termos absolutos e relativos [2].

 

A paralisia do sono é um fenômeno assustador. A consciência desperta, mas o corpo é incapaz de se movimentar porque os músculos não respondem. Trata-se de uma desconexão temporária das funções motoras. O indivíduo vê vultos e monstros, mas não consegue se mexer, como se estivesse acordado dentro de um pesadelo. A paralisia do sono é uma boa metáfora para o Brasil. Excetuando-se os bolsonaristas, a extrema direita e os setores da burguesia favorecidos diretamente pelas contrarreformas, a decomposição social e econômica não interessa a ninguém, mas avança com passos largos. Não se trata de falta de consciência, é razoavelmente sabido que as contrarreformas e os ajustes fiscais – intensificados a partir de 2015 e aprofundados ainda mais com Temer e Bolsonaro – são péssimos para a classe trabalhadora. Mas não há resposta à altura. Não é falta de consciência, é incapacidade de mover os músculos coletivamente. O mal-estar generalizado do tempo presente tem a ver com isso, é causado pela sensação de impotência e de incapacidade coletiva para combater os ataques dos governos de plantão. Sabe-se que as contrarreformas e os ajustes fiscais serão revertidos com ação direta, ou não serão, mas a classe trabalhadora não se movimenta, não está morta ou derrotada, está paralisada, as lutas estão isoladas e limitadas, apesar do desemprego, da inflação, da carestia, da violência policial, da destruição do meio ambiente, da expropriação das terras dos povos originários, das vidas desperdiçadas pelo negacionismo. A questão é: até quando? Porque exploração e espoliação têm limites. Nos indivíduos, a paralisia do sono é passageira, dura segundos ou, no máximo, minutos. Será passageira, também, a paralisia do sono na classe trabalhadora brasileira?

 

Notas

 

[1] Avião, plano de saúde, escola privada; brasileiro abre mão de benefícios para viver com inflação e desemprego

 

[2] Enquanto Brasil cresce apenas 2,2% na década, mundo avança 30,5%

 

Publicado originalmente no Passa Palavra