BOZOCHANCHADA

 

Nas décadas de 1970 e 1980, o cinema brasileiro produziu filmes que ficaram conhecidos como pornochanchadas. Os títulos são sintomáticos: Os mansos; Memórias de um gigolô; Vítimas do prazer; A virgem e o machão; Caçadas eróticas; Sexo a domicílio; Senta no meu, que eu entro na tua; Ônibus da suruba. Chanchada tem a ver com humor ingênuo e popularesco. Pornochanchada eram comédias eróticas que exibiam corpos femininos com a regularidade necessária para prender a atenção do público. Eram tempos de ditadura empresarial-militar, censura, moralismo e repressão. Mas as pornochanchadas passavam nos cinemas e rivalizavam com os filmes estrangeiros. Faziam um sucesso razoável, talvez por serem uma espécie de espelho privilegiado da sociedade brasileira.

 

As comédias eróticas fazem uso de personagens caricatos: a virgem, a adúltera, o machão, o corno, o cafajeste, o canalha. É aqui que me ocorreu a comparação. Bolsonaro parece um personagem de pornochanchada. Daí o moralismo, a desfaçatez, a pilantragem, as idas e vindas, o entreguismo, a cara de pau. O próprio apelido, Bozo, além do jogo de palavras com Bolso, remete a um palhaço e a um tipo discutível de humor. Procurando na internet, percebi que a semelhança foi notada, também, por Xico Sá: “Bolsonaro é típico personagem da pornochanchada brasileira”. O cronista, como eu, deve ter pensado nos delegados, advogados e empresários canalhas das comédias eróticas. Bolsonaro é uma síntese de todos eles.

 

Mas como a vida supera a arte, o personagem caricato se tornou presidente do Brasil. Salvo engano meu, que não sou grande conhecedor de pornochanchadas, nenhum roteirista, nem o mais ousado, imaginou um personagem grotesco ocupando a presidência da república, inclusive porque a comédia erótica se tornaria uma tragédia generalizada.

 

No final dos anos 1980, com a crise do cinema brasileiro e a chegada da pornografia stricto sensu, as pornochanchadas perderam espaço. Mas a sociedade espelhada nas comédias eróticas pouco mudou, o que ajuda a explicar Bolsonaro, figura caricata que soube aproveitar as oportunidades que surgiram.  

 

As falas e posturas autoritárias, machistas, racistas, homofóbicas e moralistas de Bolsonaro parecem extraídas de uma pornochanchada. O que talvez explique por que os posicionamentos não chocam boa parte da sociedade brasileira, que pode não dizer exatamente as mesmas coisas, mas pensa parecido, porque foi educada e limitada pelo mesmo referencial estético e ideológico. Exemplo: a fixação bolsonarista por fezes, bundas e armas de fogo já estava no filme Um pistoleiro chamado Papaco. O que indica que as linhas gerais do bolsonarismo existiam na sociedade brasileira há tempos.

 

Para quem quiser ter uma ideia da comparação que tento estabelecer sem precisar assistir muitas pornochanchadas, recomendo o excelente Histórias que o nosso cinema (não) contava, da diretora Fernanda Pessoa, que montou o filme a partir de recortes extraídos de 27 comédia eróticas. Está tudo lá: o autoritarismo, o machismo, a homofobia, o entreguismo, o moralismo, o humor discutível e até o medo da esquerda e do socialismo.

 

Nos anos 1990 as pornochanchadas haviam perdido espaço e deixaram de ser filmadas, mas eram exibidas nas sessões eróticas da madrugada, na TV aberta. Muita gente cresceu assistindo os filmes com volume baixo, para não acordar os familiares. Às vezes perdendo trilhas sonoras interessantes. Algumas atrizes das novelas voltavam mais tarde, mais jovens e com menos roupa, nas sessões da madrugada, para delírio e deleite do público masculino. Tempos depois, personagens como Bolsonaro ocuparam o horário nobre e escancararam o que, nas pornochanchadas, pareciam ser possibilidades limitadas e residuais da sociedade brasileira. Bolsonaro atravessou a fronteira que os personagens das comédias eróticas se limitaram a tangenciar.

 

Como pontuou Thiago Canettieri, o bolsonarismo é, sobretudo, um projeto de destruição: de instituições e políticas públicas, de vidas e possibilidades. A destruição bolsonarista precisa ser compreendida como uma possibilidade do tempo presente, e não como um “desvio atávico na rota do progresso”. Bolsonaro “joga com a experiência cotidiana do colapso”, é um “realista do colapso”.

 

Na minha opinião, o bolsonarismo existe devido à herança escravista da sociedade brasileira, porque a ditadura empresarial-militar de 1964 não foi passada a limpo e por aí vai. Bolsonaro é um atavismo mobilizado para atuar em nome da destruição, um capitão do mato na pós-modernidade. Daí os traços de personagem de pornochanchada. Mas aqui talvez surja, se não a resposta para a tragicomédia bolsonarista, ao menos um caminho e uma possibilidade. Bolsonaro é escrachado, bisonho e trapalhão, atuou como personagem de comédia erótica, suas negociatas e destruições aparecerão cada vez mais quando ele estiver fora do governo, e não houver uma tropa de choque institucional com força para protegê-lo. Será uma possibilidade. Se a sociedade brasileira não passar o atavismo moralista e destrutivo a limpo, a Bozochanchada vai se repetir atualizada e piorada.

 

Bolsonaro destruiu o que pôde, inclusive vidas foram ceifadas antes e, principalmente, durante a pandemia de Covid-19. O que vai se fazer com ele fora do poder? Aceitar tudo como se não tivesse acontecido nada? Como se fosse uma sessão de pornochanchada? Como se tivesse sido uma brincadeira ou algo inevitável? Como se fosse um desvio perdoável? Esquecer com um grande acordo, à moda brasileira?

 

Imediatamente após a vitória de Lula, muita gente vestiu camisa vermelha e se manifestou contra Bolsonaro, o “assassino genocida” que governou o Brasil. Não eram só petistas e lulistas, nem eram apenas pessoas com ilusões no novo governo, era um sentimento entalado e desesperado (que não espera muita coisa de Lula e do PT, mas que quer se livrar definitivamente da tragicomédia bolsonarista). É essa energia que precisa ser fortalecida, sustentada e mobilizada para passar a Bozochanchada a limpo. É isso ou será um grande problema. Se a sociedade brasileira não enfrentar seus atavismos, outros personagens de pornochanchada serão mobilizados para promover a destruição. A chance é agora. O tempo é escasso. Se não, amanhã será pior!       


Publicado originalmente no Passa Palavra


PARA MANÉ, PARA DIDI, DE DIDI PARA JACOB E PIXINGUINHA

Era uma vez um menino criado sozinho numa pensão. A mãe tentava proteger o filho. O menino quase não saía, ia da casa para a escola e desta para aquela. Aos cinco anos fez a segunda voz durante o hino nacional, e ficou de castigo. Tinha um velocípede e um cão. Tinha também um vizinho cego, que tocava violino. O som escapava do quarto do cego para o resto da pensão, e encantava o menino. Então pediu e ganhou um violino, mas não se adaptou ao arco do instrumento e passou a tocar com grampos de cabelo. Resultado: estourou as cordas. Foi quando aconselharam o menino a tocar bandolim. Ganhou o instrumento e começou a recriar os sons que ouvia, hábito que cultivou por toda a vida.

Um dia ouviu o choro É do que Há, de Luiz Americano. Tinha 13 anos e uma vizinha que trabalhava numa gravadora. O chorinho escapou da vitrola para a janela e chegou até o menino. Começava uma paixão. Jacob se transformaria em defensor intransigente do choro: pesquisou, resgatou partituras, deixou um acervo vasto, tocou e divulgou a obra de chorões do passado, como Ernesto Nazareth entre outros. E foi além, com suas palhetadas peculiares Jacob traduziu a brasilidade para o bandolim. Virou Jacob do Bandolim.  

Tocou em rádios. Teve programas próprios. Gravou discos. Mas como música não paga o pão, por conselho do amigo Donga, prestou concurso público e se tornou escrevente juramentado. Jacob se dizia músico amador porque não vivia de música. Além de garantir o sustento da família, o serviço público lhe garantiu a independência estética, como não vivia de música, viveu para a música, sem se submeter às exigências castradoras da indústria do entretenimento. Se a questão fosse ser ou não ser comercial, certamente Jacob não seria, porque música, para ele, não era mercadoria.

Jacob estudou teoria musical e aprendeu a ler música. Chegou a gravar a suíte Retratos, de Radamés Gnatalli, que homenageia nomes chave da música brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Em carta a Radamés, Jacob registrou: “o prêmio de todo esse esforço foi maior que todos os aplausos recebidos em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfação! Este é que eu queria, que me faltava e que, secretamente, eu ambicionava há muitos anos […] Um sorriso bem demorado, em silêncio, olhos brilhando, tudo significando aprovação e sensação de desafogo por não haver se enganado. Valeu! Ora se valeu!”

Um dia ouviu o choro É do que Há, de Luiz Americano. Tinha 13 anos e uma vizinha que trabalhava numa gravadora. O chorinho escapou da vitrola para a janela e chegou até o menino. Começava uma paixão. Jacob se transformaria em defensor intransigente do choro: pesquisou, resgatou partituras, deixou um acervo vasto, tocou e divulgou a obra de chorões do passado, como Ernesto Nazareth entre outros. E foi além, com suas palhetadas peculiares Jacob traduziu a brasilidade para o bandolim. Virou Jacob do Bandolim.  

Tocou em rádios. Teve programas próprios. Gravou discos. Mas como música não paga o pão, por conselho do amigo Donga, prestou concurso público e se tornou escrevente juramentado. Jacob se dizia músico amador porque não vivia de música. Além de garantir o sustento da família, o serviço público lhe garantiu a independência estética, como não vivia de música, viveu para a música, sem se submeter às exigências castradoras da indústria do entretenimento. Se a questão fosse ser ou não ser comercial, certamente Jacob não seria, porque música, para ele, não era mercadoria.

Jacob estudou teoria musical e aprendeu a ler música. Chegou a gravar a suíte Retratos, de Radamés Gnatalli, que homenageia nomes chave da música brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Em carta a Radamés, Jacob registrou: “o prêmio de todo esse esforço foi maior que todos os aplausos recebidos em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfação! Este é que eu queria, que me faltava e que, secretamente, eu ambicionava há muitos anos […] Um sorriso bem demorado, em silêncio, olhos brilhando, tudo significando aprovação e sensação de desafogo por não haver se enganado. Valeu! Ora se valeu!”

As fronteiras entre a música dita erudita e a música dita popular são ilusórias. Uma não existe sem a outra e vice-versa. Uma se alimenta na outra, da outra e com a outra. São gêmeas. Se separadas, agonizam. Exemplificando. Radamés Gnatalli, compositor erudito, escreveu a suíte Retratos para bandolim e orquestra dialogando com compositores populares, como Pixinguinha, e foi gravado por um músico que transitava pelas duas tradições, Jacob do Bandolim. São esses diálogos e essas transições que alimentam a música.

Para criar é preciso se conceder liberdade de criação, o músico dito erudito que não se concede liberdade de criação será, na melhor das hipóteses, um interprete perfeito, mas incapaz de criar. A criação ocorre nas fronteiras e regiões de convergência entre popular e erudito (É Vila-Lobos recolhendo temas tradicionais, recriando cantigas de roda. É Radamés Gnatalli escrevendo uma suíte para bandolim, orquestra e conjunto regional. É Jacob do Bandolim estudando fanaticamente para tocar uma peça de Radamés Gnatalli. É o sorriso deste para aquele). Como se concedia liberdade para criar e por ser capaz de dialogar com a tradição, Jacob do Bandolim produziu uma obra grande numa vida curta. Em 51 anos de existência produziu choros fundamentais: Noites Cariocas, Assanhado, Vibrações, Cabuloso, Doce de Coco, Receita de Samba, Santa Morena, Remelexo… Completaria 100 anos em 2018. O que teria produzido se tivesse vivido mais tempo?

Defensor intransigente do choro, Jacob organizava saraus em que reunia a “fina flor” da música brasileira: Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Paulinho da Viola, Turíbio Santos, Canhoto da Paraíba. Quem atrapalhasse ou fizesse barulho era expulso. Bebidas alcoólicas eram proibidas (menos quando Pixinguinha comparecia). Jacob achava que o choro estava condenado, não se compreende choro sem quintal, e os quintais estão acabando, dizia. Eram tempos de tropicalismo, da jovem guarda e dos sambas de apartamento.   
    
Em 1967, Jacob enfartou no palco, estava nos primeiros acordes de Murmurando, e já havia tocado Lamento, de Pixinguinha. Em 1969, Jacob procurou Pixinguinha, que passava por dificuldades, queria gravar um disco só com músicas do mestre, para arrecadar grana para o amigo. Naquele dia lhe veio o enfarto fatal.

Jacob deixou esposa, filhos, amigos e uma obra fundamental. Resgatou e deu vida a peças de chorões do passado, imitou a sonoridade vocal e as palavras cantadas, criou novas possibilidades para o bandolim, musicou o voo da mosca e a dança do mágico das pernas tortas (A Ginga do Mané). 

Viajando. Nelson Rodrigues já havia cunhado a expressão “complexo de vira-lata” para definir o futebol brasileiro, tão vistoso quanto falho em momentos decisivos. A Bossa Nova estava nascendo, Jacob do Bandolim estava no auge e o Brasil estava na final da Copa do Mundo de 1958. Tinha um garoto prodígio de 17 anos (Pelé), o mágico de pernas tortas (Mané Garrincha), o meia do chute “folha seca” (Didi) e outros craques. Brasil x Suécia, na Suécia. Os donos da casa abrem o placar. 1 x  0. Preocupação. “Complexo de vira-latas” reencontrado. Lembrança do Maracanaço de 1950. Tudo ao mesmo tempo. Mas Didi caminha calmamente, apanha a bola no fundo do gol e a carrega debaixo do braço até o meio do campo, para reiniciar a partida, no caminho, conversa e orienta os jogadores. Resultado final: Brasil 5 x 2 Suécia. Brasil campeão do mundo pela primeira vez.

Comparando. Pela genialidade e pelo despojamento, Pixinguinha pode ser comparado a Garrincha, e vice-versa. Pela liderança e pela técnica, Jacob pode ser comparado a Didi, e vice-versa.

Perguntando e concluindo. A seleção brasileira seria campeã mundial se Didi não tivesse buscado a bola no fundo gol em 1958? Qual o tamanho da contribuição de Jacob do Bandolim para a música brasileira? Perguntas difíceis de responder. O importante é que: “Valeu! Ora se valeu!”   

Fonte: http://www.jacobdobandolim.com.br/

Notas soltas

 1)      O título deste texto saiu da canção O Futebol, de Chico Buarque, a tabelinha com Jacob e Pixinguinha fica por nossa conta.

 2)      Jacob compôs A Ginga do Mané, mas torcia para o Vasco, para seu time de coração criou o choro Vascaíno.

3) Para conhecer mais sobre Jacob do Bandolim: http://radiobatuta.com.br/documentario/vibracoes-o-som-de-jacob-do-bandolim/ e http://www.jacobdobandolim.com.br/ respectivamente: documentário radiofônico da Rádio Batuta e Instituto Jacob do Bandolim.

4) A Ginga do Mané tocada por Jacob do Bandolim: https://www.youtube.com/watch?v=zclOc7ePmWs

5) Imagens raras de Mané Garrincha mais os choros A Ginga do Mané (de Jacob do Bandolim) e 1 x 0 (de Pixinguinha):


 

FORÇAS PRODUTIVAS X RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

 

No prefácio de Contribuição à crítica da economia política está um parágrafo famoso e intenso [1], com um trecho que sintetiza, de certa forma, o pensamento marxista (do próprio Marx e não necessariamente dos marxistas que vieram depois): “Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social.”

 

Para iniciar é preciso definir, minimamente, o que se entende por forças produtivas e relações de produção. Forças produtivas: capacidade social de gerar valor própria da força de trabalho. Relações de produção: regime de propriedade, formas de organização do processo produtivo e de exploração da força de trabalho.

 

No modelo marxista o desenvolvimento das forças produtivas determina as relações de produção, até que estas entrem em contradição com aquelas, abrindo o tempo da revolução social. Marx deixou indicações sobre como pode se expressar a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas no capitalismo. São possibilidades que não se excluem e podem ocorrer simultaneamente:

 

- Queda tendencial da taxa de lucro causada pelo desenvolvimento tecnológico e o crescimento da composição orgânica do capital, movimento que intensifica a exploração e a luta de classe.

 

- Crises periódicas provocadas pela queda da taxa de lucro, acirrando a exploração e a luta de classes. Vale pontuar, para diferenciar do item anterior, que as taxas de lucro podem cair por outras razões que não o crescimento da composição orgânica do capital.

 

- Miséria relativa da classe trabalhadora, que apesar de consumir mais quantitativamente devido ao crescimento da produtividade, fica com parcelas decrescentes da riqueza social, expropriada em parcelas crescentes pela burguesia.

 

- Estranhamento provocado pela separação dos produtores em relação aos meios de produção, ou, dito de outra forma, pelo não reconhecimento dos trabalhadores nos produtos do trabalho, que lhes aparecem como entidades estranhas, hostis e que se voltam contra seus produtores.

 

Como não poderia deixar de ser, o pensamento de Marx provocou diversas interpretações e possibilidades. Cito algumas:

 

- Há quem enxergue uma inevitabilidade na revolução, como se o capitalismo fosse morrer de velho, sem a ação revolucionária da classe trabalhadora. Leitura apressada de um trecho presente no mesmo parágrafo de Marx, segundo o qual as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam condições para resolver antagonismo entre as classes sociais. Quem vai por este caminho esquece que criar condições não é necessariamente resolver, além de que a força de trabalho é elemento central das forças produtivas e, sendo assim, a contradição se dá, sobretudo, entre as relações de produção capitalistas e o proletariado. A força de trabalho é inseparável dos corpos dos trabalhadores, ou seja, o processo produtivo destrói quem trabalha. Basta pensar, por exemplo, nas doenças laborais e no desgaste causado pela intensificação do trabalho.

 

- Há quem considere que as forças produtivas não são neutras, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas reforça as relações de produção capitalistas. É uma possibilidade aparentemente atestada pela realidade. Mas, se vamos por este caminho, perde-se uma espécie de esteio econômico da revolução. É como se a humanidade se propusesse problemas que ela não necessariamente pode resolver, contrariando o que Marx registrou no prefácio citado. Exemplifico perguntando. Consigo pensar a superação do feudalismo a partir da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Na sociedade feudal se desenvolveram forças produtivas que se chocaram com as relações de produção. Mas o mesmo não ocorreu nem ocorrerá no capitalismo? Não há, no modo de produção capitalista, contradição (produtiva, do ponto de vista da produção social) entre forças produtivas e relações de produção?

 

- Há quem considere que a questão central é justamente conter o desenvolvimento das forças produtivas (como se fosse possível). Quem vai por este caminho pode chegar a qualquer ponto, só não deve se reivindicar marxista. Marx pensa a superação do capitalismo como o estabelecimento de relações de produção “novas e superiores”. Qualquer coisa diferente disso seria impensável. O capitalismo será superado pela positiva ou não será.

 

- Há quem considere que as forças produtivas deixaram de se desenvolver. É o que registrou Trotski no Programa de transição, no final dos anos 1930: “A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que possa ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material.” O argumento encaixa com o trecho de Marx, mas está de acordo com o que se observa no mundo real? É razoável afirmar que “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer” a partir do final dos anos 1930? Quem vai por este caminho precisa ignorar a energia nuclear, a nanotecnologia, a internet e as possibilidades produtivas derivadas dela. 

 

Antes de prosseguir vale lembrar que, para Marx, o modo de produção capitalista foi revolucionário porque permitiu um intenso desenvolvimento das forças produtivas. Olhando de hoje para o passado podemos pensar, por exemplo, na ampliação da produção agrícola, no aperfeiçoamento das formas de transporte e comunicação, no desenvolvimento da medicina e da ciência, no aumento da população e da expectativa de vida. Vão contra-argumentar, com razão, que a maioria desses desenvolvimentos não são isentos de contradições, sendo a principal a destruição ambiental que podem provocar. Mas não é este o ponto, por aqui. Interessa-me registrar que o desenvolvimento das forças produtivas – entendido como a capacidade social de produção – é inequívoco e razoavelmente constate no capitalismo. E isso ocorre por uma determinação do próprio modo de produção. Para sobreviver à concorrência, os capitalistas precisam explorar cada vez mais a capacidade de gerar valor da força de trabalho. Produzir mais com menos. O resultado final pode até ser a destruição do meio ambiente, é uma possibilidade, mas que não altera o fato de que as forças produtivas se desenvolvem cada vez mais. Também é verdade que no capitalismo se mantêm e se relacionam formas de exploração extensiva (mais-valia absoluta) e intensiva (mais-valia relativa), mas a dinâmica do sistema é determinada nos setores mais avançados tecnologicamente, ou seja, que exploram a mais-valia relativa.

 

A questão que sempre me intrigou passa por uma afirmação presente no mesmo trecho de Marx: “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter”. Se é assim, teria o modo de produção capitalista desenvolvido todas as forças produtivas que contém? A pergunta se justifica porque na sequência Marx afirma que “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na própria sociedade.

 

Está mais ou menos nesse ponto a questão que me intriga. A força de trabalho produz cada vez mais. Observam-se seguidas transformações nos métodos e técnicas produtivas que ampliam a capacidade social de produção. Ou, colocando em forma de pergunta: a capacidade de produção da força de trabalho atual é superior se comparada com os tempos de Marx? Se respondemos sim à questão formulada, surgem outras: é possível afirmar que as relações de produção (capitalistas) se tornaram “entraves” para o desenvolvimento das forças produtivas? Quais são e onde estão as condições materiais que permitem o estabelecimento de “relações de produção novas e superiores”?  

 

Mesmo considerando que a força de trabalho é o elemento central das forças produtivas, mesmo considerando que o desenvolvimento destas passa pela exploração intensificada daquela, o fato observável é que a capacidade social de produção continua a se desenvolver. Ou melhor e em forma de pergunta, há contradições entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas, mas estas se tornaram um “entrave” para aquelas?

 

Em Marx o revolucionário se confunde com o teórico, o que explica alguns limites e muitas possibilidades. Não há pensamento revolucionário sem prática revolucionária. Repetidas vezes Marx registrou que a revolução estava próxima. Dificilmente poderia seguir por outro caminho. Não se luta sem certezas. Marx era uma das principais expressões do movimento revolucionário de seu tempo, não ocuparia a mesma posição caso considerasse a revolução como uma possibilidade distante. Mas o fato é que o modo de produção capitalista se revolucionou repetidas vezes e adiou o socialismo para os séculos posteriores.

 

Considerando o grau de desenvolvimento das forças produtivas no tempo presente, partindo principalmente capacidade crescente de geração de valor da força de trabalho, é possível o estabelecimento revolucionário de outras relações de produção. Mas é razoável utilizar os adjetivos empregados por Marx? É possível pensar em relações de produção “novas e superiores”? Se sim, seguindo Marx e considerando que as “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na sociedade, é preciso indicar quais são e onde estão tais condições. E mais, é preciso pensar, a partir do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o que seriam relações de produção “novas e superiores”?

 

Enfim, mantenho uma certeza: a superação do capitalismo passa pelo estabelecimento revolucionário de relações de produção “novas e superiores”. Mas como? Se as forças produtivas não entram em contradição com as relações de produção, se não se tornam entraves produtivos: qual o limite do capital?

 

Notas

 

[1] Além do trecho citado, no mesmo parágrafo Marx registra:

 

[...] “O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” [...]

 

[...] “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.” [...]

 

[...] “As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esse antagonismo.” [...] 


Publicado originalmente no Passa Palavra