SOUZALOPES

 

em qualquer lugar aqui o tempo grita

grita vamos plantar pedras vamos

(Souzalopes)

 

Há dezenas de anedotas contadas sobre e pelo poeta Souzalopes. Quando algum amigo dizia que estava escrevendo um romance, para depois lhe pedir a opinião, o poeta se antecipava e perguntava se o escrito estava no nível de um Dostoievski. Se não estivesse, melhor não publicar. A história se repetia toda vez que alguém dizia estar escrevendo um romance. O que podia parecer uma provocação era realmente uma provocação, mas era, também, um programa estético, quase uma ética: só publicar o que deve ser publicado.  

 

Como não podia deixar de ser, Souzalopes publicou pouco. Três livros artesanais organizados e editados pelo próprio autor. Poemas espalhados em jornais, revistas, antologias, zines, sites, blogs. Ficaram, também, sacadas em cartas, e-mails e na memória dos que conviveram com o poeta. Era uma inteligência rápida e sarcástica. Deixou inéditos. Mas é difícil publicar um poeta que não gostava de editoras comerciais sem lhe trair os princípios. Foi possível, pelo menos, digitalizar os livros artesanais disponíveis, além de reunir escritos esparsos (poemas e contos, Todo Fogo, Hágua, Ferro & Carcoma, Pau & Pelo, Manifesto do Partido Comunista em Cordel).

 

Há um quê de poesia marginal em Souzalopes, mas com diferenças importantes. É difícil imaginar o poeta vendendo livros em teatros, cinemas, bares e cafés. Além disso, enquanto a poesia marginal é espontaneidade, Souzalopes é uma intensa luta com as palavras, no sentido drummondiano.

 

No tempo presente há uma grande proliferação de “poetas”. Muitos vendendo livros nos saraus como se vendem automóveis nas concessionárias e jazigos em cemitérios. Desconfio que existam, atualmente, mais poetas do que leitores de poesia. É uma lástima. Limitados a vender o que escrevem e devido a pouca leitura, muitos “poetas” sequer percebem os próprios limites. A grafomania (mania de escrever livros) e o capital, que transforma tudo em mercadoria, transforma “poetas” em vendedores. Mas não há nada menos mercantil do que a poesia.

 

Souzalopes participou do grupo Pindahyba. Também escreveu para a revista Brasil Revolucionário e, no final da vida, foi próximo do Espaço Cultural Mané Garrincha. Com os coletivos Cacimba e Cacorê, Souzalopes organizou um seminário de poesia contra a privatização do alfabeto, discutiu desde a Grécia antiga até os dias atuais. Só poesia, sem academesmices. Não comentava escritos próprios. Não adiantava insistir. Foi poeta e leitor. Leu muito mais do que escreveu. Dominava a arte de fazer versos como poucos, o que se expressou, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista recriado em cordel, com sextilhas e versos de sete sílabas poéticas. Nos primeiros poemas, publicados em livros artesanais, criou versos difíceis, que não se oferecem de primeira, além de ameaçarem romper as possibilidades comunicativas. Precisam ser frequentados com calma e tenacidade. Água, fogo, ferro, corpo, merda, sangue, pedra, pau e pelo são palavras presentes nos versos do poeta. É uma poesia materialista: bela, mas também seca, dura, quente, com espinhos e difícil de ser percorrida, como a Caatinga.

 

Nei Lopes e Luiz Antonio Simas concluem bela a obra Filosofias Africanas comentando “a sabedoria das árvores”. Retomam o livro A Geografia da Pele, de Evaristo de Miranda, para falar de uma árvore conhecida pelos Hauçás como gao. É uma acácia que cresce no Sahel, região africana de transição entre a savana e o deserto. O gao seria uma espécie de árvore do contra. Na época das chuvas, quando a vegetação verdeja e floresce, o gao perde as folhas, murcha e fica cinza. Na época da seca, quando a floresta murcha, o gao esverdeia e floresce. A árvore do contra subverte o normal e, assim, oferece sombra e alimento em tempos difíceis. Gosto de pensar em Souzalopes como uma espécie de gao, um poeta do contra, um plantador de pedras. Um homem que sabia, como sabem os povos da África Austral, que “a palavra é como pedra: se atirada, não tem volta.” Dizia que um romance só deveria ser publicado se estivesse no nível de um Dostoievski. Publicou apenas livros artesanais. Floresceu em tempos de seca. 

 

Fecho com algumas pedras plantadas pelo poeta, cinco poemas da florada de Mário Luiz de Souza Lopes (1954 – 2012), o Souzalopes. Os desenhos são anteriores aos versos e foram elaborados pelo irmão do poeta, Marciano Lírio de Souza Lopes (1953 – 1978). Desenhos e poemas compõem o livro Todo Fogo, publicado artesanalmente, no melhor sentido da palavra, em 1983. Em tempos grafomaníacos, quando até versos são transformados em mercadoria, vale (re)descobrir um poeta que tratava a poesia como uma “cadela dialética”.







Publicado originalmente no Passa Palavra.



 

Eram os saudosos anos 1980. Eu fazia catequese todo domingo às sete horas da manhã. As aulas terminavam às nove, quando começavam as missas, que devíamos assistir. O padre pregava no mesmo horário em que a televisão exibia jogos do campeonato italiano de futebol. Alguns moleques, eu entre eles, sempre davam um jeito de escapar das missas para assistir as partidas. Maradona jogava com a camisa 10 do Napoli. Sem nominar os pecadores, a professorinha de catequese lembrava que alguns não assistiam as missas, mas Deus estava vendo. Era quando os coleguinhas que sentavam nas primeiras carteiras olhavam para trás, nos encaravam e balançavam as cabeças em sinal de reprovação. Eu ficava preocupado porque conseguia fugir da professorinha, do padre e até dos coleguinhas caguetas, mas não de Deus. Pensei em confessar minhas fugas algum dia. Mas nunca assumi que trocava as missas de domingo pelo campeonato italiano. Precisava inventar algum atenuante que não elaborei em tempo. Não queria repetir a mesma desculpa dos outros moleques. Época de provas? Ajudar a família? Fazer feira para os velhinhos? O que dizer no confessionário? Depois cresci e entendi que Deus não estava preocupado com os moleques que fugiam da missa. Naquele tempo, Deus jogava futebol com a 10 do Napoli, ou então estava ocupado assistindo Maradona jogar com a 10 do Napoli.

 



Publicado originalmente na Revista Aroeira