AINDA AQUELE JUNHO

 

Retomo o tema da última coluna, daí o título. Junho de 2013 repensado a partir de alguns dados.

 

Segundo o Datafolha, em 2003, três meses após o início do governo Lula, o desemprego era o principal problema do país para 31% dos brasileiros, depois vinha a fome/miséria, para 22%, e a violência/segurança, para 18%. De acordo com o mesmo instituto de pesquisas, dez anos e três meses depois, em junho de 2013, já no governo Dilma, o desemprego era o principal problema do país para 4% dos brasileiros, enquanto 2% mencionaram a fome/miséria e 10% citaram a violência/segurança. Os problemas que mais preocupavam os brasileiros, em junho de 2013, eram a saúde, para 48% dos entrevistados, a educação, para 13%, e a corrupção, para 11%.

 

Os dados sinalizam que no período (2003 a 2013), com a valorização dos preços das commodities exportadas e as políticas sociais, houve redução do desemprego, da miséria e da fome. É sintomático que maioria dos brasileiros considerasse, em junho de 2013, a saúde e a educação como os dois principais problemas do país. Encampar a demanda popular seria uma possibilidade, se a palavra trabalhadores fosse algo além de 13 letras esquecidas no nome do partido que ocupava a presidência da república.

 

Segundo o DIEESE, em 2004, no segundo ano do governo Lula, houve 302 greves no Brasil, com um total de 23.138 horas paradas. Já em 2013 e de acordo com a mesma fonte, ocorreram 2.050 greves que totalizaram 111.342 horas paradas. Ou seja, o número de greves cresceu aproximadamente 7 vezes enquanto as horas paradas aumentaram quase 5 vezes. Se houve redução do desemprego e, portanto, do exército industrial de reserva, é natural que crescessem as greves e a luta dos trabalhadores.

 

Por mais imprecisos que possam ser, os dados sobre as greves e os principais problemas do país ajudam a esboçar traços importantes da conjuntura brasileira em junho de 2013. Uma economia razoavelmente aquecida, transformando desempregados e miseráveis em consumidores de baixa renda. Redução do exército industrial de reserva e, consequentemente, fortalecimento das lutas da classe trabalhadora. Elevação dos salários [1]. Ameaça aos lucros do capital. Demanda crescente por saúde, educação e transporte de qualidade.

 

Um exemplo. De acordo com cientista político André Singer [2], houve escassez de trabalhadores domésticos no Brasil entre 2011 e 2013, o que ocorria devido ao crescimento da economia e à redução da miséria. Além disso, a categoria conquistou direitos como a limitação da jornada, pagamento de horas extras e adicionais noturnos. Abriam-se possibilidades mínimas para quem não as tinha. No Brasil, contar com empregados domésticos é sinal de status, além de ser, também, parte da nefasta herança escravista. O fato é que a escassez de trabalhadores e os direitos conquistados se chocavam com atavismos nacionais. André Singer novamente: “O lulismo não pretendia produzir confronto com as classes dominantes, mas ao diminuir a pobreza o fazia sem querer.” 

 

A panela de pressão explodiu em junho de 2013. Colocado numa encruzilhada histórica que ajudou a construir, ainda que involuntariamente, o petismo tinha duas alternativas: 1) Promover um forte ajuste fiscal e retirar direitos dos trabalhadores, regredindo ao velho normal. 2) Mover-se para a esquerda no sentido apontado pelas ruas e pelas demandas populares: ampliando o acesso à saúde, à educação, ao transporte e outros serviços. A tal guinada para a esquerda que nunca aconteceu.

 

Dilma e o PT escolheram a primeira opção, mas não com a intensidade e a rapidez exigida pela burguesia brasileira, o que determinou os acontecimentos posteriores. Ao tentar conciliar o inconciliável, desagradaram todos os lados. De acordo com o Datafolha, em março de 2013, o governo petista era ótimo/bom para 65% dos brasileiros e ruim/péssimo para 7%; três meses depois, no final de junho, apenas 30% avaliavam o governo como ótimo/bom, enquanto 25% o consideravam ruim/péssimo. 

 

A mídia empresarial mudou o tom depois da repressão policial ocorrida em 13 de junho de 2013. Do “Chegou a hora do Basta” (Estadão) e do “Retomar a Paulista” (Folha) para “A revolta dos jovens – depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade” (Veja). De acordo com o Datafolha, no final de junho de 2013 a corrupção era o principal problema do país para 11% dos brasileiros, dois anos e cinco meses depois o número havia crescido para 34%. Era o efeito da atuação combinada da mídia empresarial com a operação Lava Jato, abrindo caminho para a derrubada do governo Dilma, o ajuste fiscal e a retirada de direitos no ritmo exigido pelo capital.    

 

Como pontuou André Singer [3]: o lulismo, especialmente no governo Dilma, cutucou onças com bases curtas. Mas faltou o cientista político complementar a sacada problematizando a questão. O lulismo atua freando as luta dos trabalhadores e, para isso, necessariamente encurta as próprias bases. Ou seja: fornece a corda em que será enforcado. Basta pensar nas lideranças que ganharam cargos e trocaram os movimentos populares pelos governos petistas, fortalecendo estes e enfraquecendo aqueles. O que não estava na conta do lulismo – um pouco por opção, um pouco por ilusão, um pouco por deslumbramento e outro pouco por miopia política – é que o atraso brasileiro é lucrativo e funcional para a burguesia e, sendo assim, nenhum avanço é possível sem mobilização popular e rupturas. Sem estas, o máximo que se consegue são melhorias pontuais permitidas pelos ciclos econômicos, mas que se perdem posteriormente. É o que explica a rápida reversão das “conquistas” dos anos petistas.  

 

No calor dos acontecimentos, em 24 de junho de 2013, Dilma Rouseff anunciou cinco pactos para tentar conter as manifestações: responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação. Era uma tentativa de dialogar com as ruas se mantendo em cima do muro, como se fosse possível. Responsabilidade fiscal para atender o “mercado” e garantir os pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Reforma política, saúde, transporte e educação para atender os manifestantes. Era tentar conciliar o inconciliável. Mas não se agrada a dois deuses ao mesmo tempo. Prevaleceu o arrocho (“responsabilidade fiscal”) e a retirada de direitos, como manda a cartilha neoliberal. Deu no que deu.

 

Por fim. Se as greves estavam crescendo e se a população queria saúde, educação e transporte público de qualidade, é possível pensar Junho de 2013 como uma última saída (à esquerda) antes do pedágio (que custaria caro). Mas o lulismo, como sempre, deu seta para a esquerda e entrou para a direita. Dilma Roussef cumpriu efetivamente o primeiro pacto, a responsabilidade fiscal (arrocho), e esqueceu os outros. Já as forças mais à esquerda não conseguiram unificar, encorpar e potencializar a revolta.  

 

Notas

 

[1] No livro O lulismo em crise – um quebra-cabeça do período Dilma (2011 – 2016), André Singer informa que “embora mais de 90% dos empregos criados fossem de baixa remuneração, a renda média do trabalho se elevou em cerca de um terço entre 2003 e 2014, também graças a acordos coletivos vantajosos aos trabalhadores.”

 

[2] Livro citado na nota anterior.

 

[3] A sacada de André Singer está no livro mencionado nas notas anteriores. 


Publicado originalmente no Passa Palavra