Juan Pablo Castel: o túnel sem saída

“Basta dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não são necessárias maiores explicações sobre minha pessoa.”

Há personagens literários que fascinam e retêm, Juan Pablo Castel é um deles. Castel veio ao mundo em 1948, pela caneta do argentino Ernesto Sabato, em seu primeiro romance, O Túnel, que começa com a confissão acima citada.

Juan Pablo é um assassino, como Meursault, o estrangeiro de Camus; e como Rodion Românovitch Raskólnikov, de Crime e Castigo, de Dostoiévski. Um túnel infinito – transcontinental e ultramarino – liga estes três matadores. É o túnel da incomunicabilidade.

Por que Castel matou Maria Iribarne? Esta é a pergunta que ele tenta responder ao longo de doze dezenas de páginas chamejantes, registradas em primeira pessoa, como não poderia deixar de ser. A julgar pelo relato do Juan Pablo a   frustração motivou o assassinato. Maria teria sido a única pessoa que compreendeu sua pintura, Castel se apaixou e se frustou. Ele – “atormentado em um minucioso inferno de raciocínios e imaginações” – concluiu pela falsidade de Maria, que seria como uma puta, e a assassinou com um punhal, que poderia ser a machadinha de Raskólnikov.

Mas esta é apenas a versão de Castel, a que ele nos oferece, e isso não é o mais significativo do relato. A questão fundamental é: o que a solidão quase absoluta faz com um homem? Seja num quarto de pensão da Rússia de Dostoievski ou na pampa argentina de Sabato.

Juan Pablo Castel é mais do que um homem ensimesmado, ele se define como um “ser encaixotado”, vive num túnel sem saída e sem acesso a Maria Iribarne. A sensação de asfixia é total. Apesar de aparecer pelo avesso nos pesadelos do pintor assassino. Ele se imagina despertando num quarto escuro e infinitamente grande, sem limites. O subsolo de Dostoievski é o ateliê de Castel, ou as ruas de Buenos Aires, ou a Recoleta.

“Um solitário total” pode “ligar o gás e se matar de solidão, de cansado de viver”, como o homem chamado Alfredo, de Vinicius de Moraes. Ou pode ser um Castel, e afirmar:

“A verdade é que, muitas vezes, havia pensado e planejado minuciosamente minha atitude no caso de encontrá-la. Creio ter dito que sou muito tímido; por isso havia pensado e repensado um provável encontro e a forma de aproveitá-lo. A dificuldade maior, com que sempre tropeçava nesses encontros imaginários, era a forma de entrar em conversação.”

Ou: “É normal que nas noites de insônia sejamos teoricamente mais decididos que durante o dia, ante os fatos.”

O fato inequívoco é que o mundo é muito grande, e escapa dos “raciocínios e imaginações” de Juan Pablo. Mas também é fato que o mundo é grande para abrigar outros tantos Castels: na planície argentina, no planalto paulista e em qualquer lugar.





São Paulo: A Paulista Reconquistada

Depois do bloqueio policial da última quinta, a Paulista foi reconquistada pelos manifestantes. Faria Lima tomada nos dois sentidos, Juscelino idem.  Gente na marginal. Gente na porta do governador. Gente na porta do prefeito. Gente subindo sem parar pela Brigadeiro, um rio de gente correndo de baixo para cima, por um lado num dia e pelo outro no outro. E a tropa assistindo pela TV. O número total de manifestantes é incalculável, mas se a parada gay coloca 4 milhões de pessoas entre a Paulista e o Centro de SP, a parada dos últimos dias colocou muita gente também, porque tinha gente do Itaim à Paulista (na segunda) e do Centro à Paulista (na terça). Ou a parada gay não é tão grande, ou a parada desses dias não é tão menor.

A massa cresceu e com ela a verde-amarelice e o risco. Outros povos saudaram o despertar do povo brasileiro, o povo brasileiro não saudou outros povos. O internacionalismo não se apresentou. Ao mesmo tempo em que se rechaçava a rede globo, se cantava o bordão “sou brasileiro com muito orgulho...”

Faltou poesia. Faltou o “alargador de horizonte” do poeta Manoel de Barros. Na segunda-feira a politização veio com o grupo que foi para o Palácio do Governo, porque o Sr. Alckmin é a personificação da violência policial, da direitolice e da privatização dos sonhos. Rechaçar o Sr. Alckmin é rechaçar o que há de pior.

Se gritava “Ooooo, o povo acordô, o povo acordô”; falta o povo sonhar. É preciso desprivatizar os sonhos. É preciso sonhar coletivamente. Verbalizar o rechaço é necessário.

Um mundo cheio de carros e consumismo não nos contempla. Um mundo tão cheio de eletrodomésticos e tão vazio não nos contempla. Um mundo tão cafona e careta não nos contempla. Um mundo cheio de shoppings e sem hospitais não nos contempla. Um mundo tão cheio de estádios e sem escolas não nos contempla. Um mundo tão cheio de celebridades e tão feio não nos contempla. Um mundo tão siliconado como burro não nos contempla. O mundo capitalista não nos contempla.

O aumento da tarifa e a violência policial levaram o povo para as ruas. A azedice do mundo capitalista engrossou o caldo. Como avançar? Que fazer?

O desafio é propor na segunda pessoa do plural. Chegou a hora da verdade para a esquerda de verdade, é agora ou sabe-se lá quando. É preciso colocar o socialismo nas bandeiras, palavras de ordem e nos corações. O transporte é caro e ruim porque é privatizado e organizado para dar lucro para a burguesia. A saúde idem. A educação idem. E assim sucessivamente. Dezenas de milhares de pessoas tem que perder para que um punhado ganhe. Dos transportes às comunicações, da educação ao agronegócio: capitalismo é isso aí. Tem um burguês feliz com o aumento da tarifa. A tropa resguarda um punhado de burgueses, mas não se enxerga essa verdade elementar no meio do gás lacrimogêneo. A tropa sumiu das ruas de SP para esconder essa verdade inconveniente. Os políticos profissionais são funcionários de um punhado de burgueses, mas essa verdade ainda se esconde atrás das gravatas.

O povo acordou e está nas ruas. Faltam os sonhos e a utopia. O futuro está escondido atrás dos prédios de SP, o socialismo de um lado e o fascismo do outro: o tempo responderá.

Fora Fifa!
Tarifa zero!
Abaixo as privatizações!
Abaixo a repressão!
Abaixo a grande mídia!
Abaixo o estado capitalista!
Abaixo o capitalismo!

Viva o poder popular!
Viva o socialismo! 

Passe Livre para a Luta

Virada Cultural, maio de 2013, uma sensação: a cidade vai explodir. Faltava uma fagulha, que veio pouco depois, foi o aumento das tarifas. Outra sensação: grandes incêndios podem nascer de pequenas fagulhas.

Quinta-feira, 13 de junho (13J), sirenes e barulho de helicópteros o dia todo. Vou cruzando a cidade a pé. Levo comigo a sensação de que eles (burguesia, grande mídia, polícia e Estado) estavam vencendo a batalha política, fazendo passar a versão de que os manifestantes contra o aumento das passagens são vilões e eles mocinhos.

Chego na Praça Ramos pela Xavier de Toledo, o aparato policial bloqueia o Viaduto do Chá para impedir o acesso à Prefeitura: são uns vinte “homens” do choque, algumas viaturas e motos. Manifestantes detidos são levados para o outro lado do Viaduto, apesar da manifestação já ter avançado. Quem foi pego com vinagre foi pro vinagre. Vinagre virou crime.

Me oriento pelo movimento dos helicópteros midiáticos e pelas informações da população. Corto para a Praça da República, encontro o Ato um pouco à frente: com as costas na Ipiranga e o peito na Consolação. O aparato policial é disparatado, a manifestação é pacífica. Chego a pensar que a violência policial não daria a cara, porque seria um tiro no pé deles, a mídia estava presente e a manifestação era claramente pacífica. Minha ilusão durou 100 metros e 10 minutos. Os “homens” da lei (do capital) fecham a Consolação, uma coluna de “homens” com escudo corta a manifestação pela direita, explodem as primeiras bombas (esse começo foi amplamente divulgado e é incontestável). A manifestação grita “sem violência”, a polícia atira bombas. É o começo da nossa vitória moral e política. Os mocinhos atiram bombas enquanto os violões gritam “sem violência”? Não cola. Dezenas de vídeos mostram quem são os vândalos, os bárbaros, quem começou, quem é violento...

“A burguesia fede” e peida gás lacrimogêneo, são peidos explosivos, com som de bomba. O fedor é insuportável. Desespero. Não vejo nada e não sei para onde ir. Desço para a Amaral Gurgel. Encosto na parede e tento respirar. Mais peidos. Tento encher o peito de ar, dobro a esquina para a Cesário Mota. Um companheiro (ou companheira) não consegue correr, é cercado (ou cercada) e apanha dos fardados. Agonia. Que agonia. Um companheiro ou companheira apanha porque ficou para trás. Impotência e revolta. Bombas e viaturas circulam em alta velocidade. Muito gás. Me abrigo num bar. Um homem bebe cerveja e defende a violência policial. Não digo nada, apenas olho nos seus olhos. Esse homem recalcou toda a história do Brasil, toda violência e todos massacres, tem tanto medo da polícia que passou a amá-la, tem ódio dos que o fazem lembrar daquilo que ele recalcou, é a ética da servidão: amar o opressor sobre todas as coisas e a ordem como a si mesmo. O aparato militar disparatado serve para isso: dissuasão, internalizar a repressão e o medo. A ética da servidão corre nas veias daquele homem, ele vive embriagado pela ética da servidão. Lembro-me das palavras de Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.” Porque não suporta seu temor pelos 5 mil soldados, o homem embriagado pela ética da servidão transforma seu medo em amor, é um amor medroso e covarde.

Viaturas e sirenes arrancam, freiam e derrapam. Barulho insuportável. Bombas. Medo. Mas um copo salta de algum prédio para o teto de uma das viaturas, e estilhaça, nem todos são seguidores da ética da servidão.

Recuperado, tento avançar para a Avenida Paulista: Frei Caneca fechada pelos “homens” de farda, Augusta, Bela Cintra e Consolação idem. Os “homens” da lei do capital param a cidade. Vou sendo empurrado para Higienópolis. De dois apartamentos a burguesia higienopolista nos xinga, porque o barulho de bomba atrapalha a novela. Gás lacrimogêneo sobe para os apartamentos higienopolistas: a burguesia experimenta seus próprios gases.

Um garoto desce carregado, ajudo como posso, ele se recupera uns dois quarteirões depois, fica em pé com as próprias pernas e diz que quer voltar, que quer lutar até a morte.

Tento subir novamente a Angélica rumo à Paulista, vou pela calçada da Praça Buenos Aires. Bombas. Gás. “Homens” com escudos descem a Angélica. Todos correm. O inusitado acontece: um sujeito com fones de ouvido se exercita, faz cooper, corre na direção das bombas, alheio à situação, alerto-o, ele vira e dispara, me ultrapassa e some.

Encontro um grupo de manifestantes, mais ou menos quinhentos, eles dizem que os “homens” de farda estão cercando a região. Sigo com o grupo por alguns quarteirões. São quase 21:30. Estou exausto. Apesar do risco, me separo do grupo e me retiro sozinho. Encontro uma viatura da tropa de elite de SP, aquela que arrota morte, pneus e rodas brilham no escuro, impecavelmente polidos com a cera da morte. Sigo em frente na rua escura.

Resultado final: centenas de presos, jornalistas agredidos, não manifestantes baleados, dezenas de feridos. Mas a verdade explode em vídeos e fotos: policiais quebrando o vidro da própria viatura, atirando em jovens ajoelhados e em moradores que filmavam de suas casas. Uma denúncia para cada bomba. De um lado gritos de “sem violência”, do outro bombas. A força bruta dos cassetetes e microfones perdeu a luta política, os microfones da grande mídia não puderam redimir os cassetetes. Os mocinhos fardados da burguesia apareceram de cara limpa, como são: repressores.

Nos olhos cheios de lágrimas e orgulho de todos se lia “amanhã vai ser maior”. E vai mesmo. Pequenas fagulhas podem causar grandes incêndios, especialmente no solo seco de São Paulo. A impressão é que o problema não é só o aumento nem só o transporte público precário. É tudo isso e muito mais. Os gestores da burguesia, se tiverem siso, recuarão (e assim ganharão algum tempo), se não... Ninguém sabe o que pode acontecer. “Amanhã será maior”. O escudo não pode conter o oceano.

Última sensação: a revolta e a solidariedade dos manifestantes e o tamanho da repressão me fazem pensar que esse 13 de junho pode marcar a virada da maré, pode colocar o Brasil no mapa dos levantes mundiais.

Allende: “não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.” Novamente se abrem grandes alamedas para a passagem do homem livre, como previu Allende há 40 anos. Parafraseando Drummond: Uma rua sai de São Paulo e vai dar em qualquer lugar do mundo. “Ó abre alas que eu quero passar. Eu sou da lira, não posso negar”

E por fim. Ernestito, felicitaciones por su cumpleaños.



São Paulo, 14 de junho de 2013






Porto Alegre, 25.02.2011, um motorista avança sobre ciclistas que se manifestavam na via pública, bicicletas e ciclistas são lançados para o alto, o motorista foge. A cena é bárbara. Imagem registrada: comoção geral. O motorista foi identificado e responde por 11 tentativas de homicídio.  

São Paulo, 11.06.2013, um motorista avança sobre manifestantes que tentavam bloquear um via pública, os manifestantes são lançados para o alto, o motorista foge. A cena é bárbara. Imagem registrada: comoção nenhuma. O motorista pode ser facilmente identificado, há milhares de câmeras em SP, mas nada foi feito.

Por que a indiferença? Qual a diferença? Por quê?



o morto
enterrado
na cova

não sente
o toque
das formigas

nem ouve
o canto
do sabiá

nem vê
seu corpo
apodrecer

o morto
enterrado
na cova

está matando
a fome
da terra

está tingindo
as folhas
de verde




DANÇA DA TERRA

movimento
de placas
tectônicas

movimento
sísmico

corte terra
terra morte
movimento

gritos

som de vidro
estilhaçando

ossos
dos mortos
bailando
debaixo
da terra

terremoto

baile
da morte

moto
mortis





Um olhar livre sobre a arte de Antanas Sutkus

Chegou a São Paulo a exposição de fotos Antanas Sutkus: um olhar livre.  Sutkus fotografou a vida cotidiana na Lituânia entre 1950 e 1990 (época em que a Lituânia era parte da URSS).

O cotidiano nos mal chamados países do socialismo real me intriga. Penso em filmes como A Vida dos Outros e Adeus Lênin, penso na literatura de Milan Kundera. Uma das personagens mais fascinantes de Kundera é a pintora Sabina, que emigrou da então Tchecoslováquia para a Europa Ocidental. Sabina diz: “Meu inimigo não é o comunismo, meu inimigo é kitsch!” 

Mas o que é o kitsch? Kundera diz: “O kitsch é um biombo que dissimula a morte.” Se é assim, o kitsch está em todos os cantos, inclusive no mundo capitalista, porque a morte é onipresente.

E o que é um olhar livre? Existe um olhar preso? Algemado? Quando li o título da exposição pensei que seria mais da mesma campanha anti-socialista de sempre, e em alguma medida é (refiro-me ao título da exposição e não ao trabalho exposto). Sutkus é apresentado como alguém que resistiu ao comunismo, dizem que arte do fotógrafo não cabia no realismo socialista, e não cabia mesmo. Mas também Sutkus poderia dizer que seu inimigo não é o comunismo, é o kitsch.

O olhar livre de Sutkus escreve uma história do olhar, como se o fotógrafo quisesse se ver nas retinas das pessoas fotografadas. Os visitantes têm a sensação de estarem sendo encarados pelas fotografias, se vêem nas retinas das pessoas fotografadas. O que querem dizer os olhos daquelas mulheres, crianças e homens da Lituânia? Quantos estão vivos? Quantos morreram? Talvez seja esta a chave para compreender o mistério. Sutkus diz: “Uma missão muito importante para o fotógrafo é capturar e preservar coisas que vão inevitavelmente desaparecer.” Desesperados ou tranquilos, envelhecidos ou infantis; os olhares fotografados estão condenados desaparecer.

O título um olhar livre induz a olhar para o olhar do fotógrafo, o desafio é olhar nos olhos dos fotografados.

PS.: Como está no título, este é apenas um olhar livre (pessoal) sobre a arte de Antanas Sutkus, certamente outros olhares são possíveis. Abaixo três fotos de Sutkus. A exposição Antanas Sutkus: um olhar livre ficará na Caixa Cultural de SP até 21.04.2013. Endereço: Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo/SP. De terça a domingo, das 9h às 20h.



Província. Dzukija, 1969


Família lituana. Pediskiai, 1967


No Mar Báltico. Giruliai, 1972

Buca

Acontece nas melhores famílias, e com os melhores amigos também.
           
Barzinho, cervejinha, porçãozinha... Foi numa linda tarde de sábado. O céu estava limpo, sem nuvens. Não fazia calor nem frio, a temperatura estava perfeita. Os rapazes vestiam bermuda e camiseta, as meninas vestidinhos, curtinhos. Os raios de sol paravam na copa da árvore, muito raramente algum conseguia chegar até a mesa dos amigos, que conversavam logo abaixo, na sombra. A alegria parecia contagiar até os passarinhos, que cantavam felizes.  
           
Havia fartura de cerveja e de petiscos também. Provolone à milanesa, depois torresminho e por aí vai.

O papo evoluiu rápido. Primeiro amenidades para descontrair e integrar todos:
           
- E o seu time hein? Que papelão! Hehehe.

Do futebol a conversa ganhou um tom de crítica à sociedade e ao sistema, alguém que comentava sobre política foi interrompido: 

- Esses caras são tudo ladrão, bandido, sem vergonha. Tem que mata tudo!

Mas aí emendaram uma piada sobre o senador corrupto da vez. Depois outra sobre traição... Até que um desavisado comparou a piada com a vida real:

- Por falar nisso. Vocês viram a Ju e o Pedro? Separaram!

- Separaram? Não pode ser! Eles namoravam desde a oitava série do ginásio. Você vai me dizer que a Ju traiu o Pedro? Não! Não pode ser!

 - Calma! Calma! A traição foi na piada!

 - Ah bom!

Pronto. A conversa esquentou. Começaram a discutir relacionamento, nesse momento a participação era máxima. As meninas insistiam que não se faziam mais homens de verdade, e que os poucos que ainda existiam estavam comprometidos e, portanto, fora do mercado. Nisso o Rafinha se exaltou:

- Isso é besteira! Eu tô solteiro! Como não tem homem no mercado? Eu sou o quê? Aí não! Tá me tirando?

Mas uma alma feminina conciliadora e filosófica conseguiu contornar a situação dizendo que o Rafinha era a exceção que só confirmava a regra, e que elas estavam falando num nível mais abstrato e não empírico-fenômenico. Foi a sorte, porque alguma garota mais exaltada poderia ter respondido a pergunta do Rafinha, ou ter dito o que lhe faltava para ser um homem de verdade.

Muito bem. Os ânimos foram se acalmando, o papo continuou. E o Carlão percebeu que a Paulinha insistia em estacionar o olhar nos olhos dele. Não. Nada acontece por acaso, um olhar diz mais que mil palavras.

Para a sorte do Carlão as novas tecnologias sempre evoluem mais rápido do que a moral e os bons costumes, o que estes proíbem aquelas sancionam, ou no mínimo viabilizam.

Foi o caso. Orkut, MSN... Uma semana depois lá estava a Paulinha nas batalhas do amor, no meio da cama do Carlão. Experiente e tarimbado, ele tinha até normas para estas ocasiões: se beber não transe! Mas dessa vez relativizou um pouco seus princípios. Era preciso relaxar e descontrair o ambiente, Carlão tomou até uma taça de vinho.

Paulinha! Ah Paulinha! Que marquinha! Que cinturinha! Que loirinha! Sorte do Carlão, novamente.

Mas você deve estar se perguntando. Qual o problema do Carlão sair com a Paulinha ou com quem quer que seja? Isso é crônica ou fofoca barata?

Ok, ok. Recapitulando. Acontece com os melhores amigos, na melhores famílias, moral, bons costumes... Percebeu? Não?

Então vamos lá, alternativas:

a)    Os amantes eram grandes amigos que romperam depois desse casinho;

b)    Eram primos de primeiro grau e cometeram um incesto;

c)      PQA (pior que as anteriores).

C? Exato! Na mosca! A Paulinha era namorada do melhor amigo do Carlão, o Buca, “que não tinha entrado na história”, mas que estava de mãos dadas com a ela na mesa de bar naquela linda tarde de sábado.

Carlão cobiçou e teve a mulher do próximo, logo do mais próximo, na mesa e na consideração, logo daquele que aparece do seu lado na foto de recordação do prezinho. Eram tão próximos, mas tão próximos, que no futebol o Buca era lateral direito e o Carlão beque central, quando um saia o outro cobria, formavam a melhor zaga da várzea, e atacavam também, não raro o Buca cobrava um escanteio para o Carlão fazer de cabeça. Mas apesar da proximidade, ou justamente por causa da proximidade, calhou de dividirem até a namorada.

Talvez fosse vingança da Paulinha contra o Buca por todos aqueles domingos de futebol. Ela não conseguia aceitar que o Buca trocasse a macarronada da sogra por uma coxinha amanhecida, ser trocada pelo Carlão então... É verdade que sendo vingança, não precisava ser justamente com o Carlão, podia ser um goleiro ou até um juiz, mas a Paulinha era geniosa.           

O fato é que o Carlão começou a temer os jogos fáceis, quando ele ficava quase parado sem fazer nada, lado a lado com o Buca na direita da defesa. E se o Buca aproveitasse a monotonia para perguntar algo, por exemplo:

- Carlão, você já ficou com a mulher de algum amigo? Você não faria isso, né? Né?

Não! Não! Definitivamente era melhor enfrentar um ponta esquerda bem arrisco. O beque central começou a afligir-se mais com o seu companheiro de zaga do que com o ataque adversário. Até pediu para jogar na ponta esquerda ou na meia, tudo para evitar o Buca, mas ninguém concordou.

Com o tempo o Carlão foi se afastando do pessoal, não parava no boteco depois do jogo, falava pouco, quase nem orientava a zaga como de costume. Churrasco do time então... Jamais! Dividir o mesmo espaço com o Buca e a Paulinha... Nunca! Ele preferia enfrentar o Ronaldo Fenômeno (dos bons tempos) no mano a mano. Apesar que a Paulinha (sozinha) ele queria enfrentar outra vez se fosse possível.

Mas o inevitável aconteceu. O Buca acabou chamando o Carlão para conversar, disse que seria uma conversa particular, que tinha um assunto urgentíssimo para tratar e que estava indo direto para a casa do amigo.

Carlão tremeu. Mas teve que aceitar o encontro, até quis fugir do país, mas não tinha tempo. Pensou em dezenas de milhares de álibis. Nesse caso a melhor defesa poderia ser o ataque, pensava em alguma das suas namoradas que pudesse ter sido roubada pelo Buca, o que transformaria sua traição em legítimo desconto. Vasculhou suas fichas de memória: prezinho nada, ginásio nada, na rua tampouco.       

Encontraram-se. Carlão, Buca e quem mais? Sim, claro, a Paulinha. O primeiro tremia como se tivesse feito um gol contra no Maracanã lotado. Sabia que nada acontece à toa, se a Paulinha estava lá era para ser testemunha de acusação, e não para os amigos falarem dos tempos do prezinho, da Tia Cotinha ou da nova escalação com três zagueiros.

O Buca não perdeu tempo:

- Carlão, a gente se conhece desde menino, né? Jogamos juntos. Empinamos pipa. Eu fazia as provas de português e você as de matemática, nunca ficamos de recuperação. Tomamos nosso primeiro porre juntos. Eu gravei aquela fita cassete do Guns and Roses pra você? Lembra?

- Sim – respondeu Carlão. Bons tempos né Buca?

- Pois é. Mas crescemos, as coisas foram mudando. Mas, vamos direto ao assunto.

Carlão quase caiu para trás, ficou paralisado.

- Então Carlão, você conhece a Paulinha, né? Bom, eu amo muito ela, você sabe. Não consigo viver sem ela. Né meu bem? Não posso nem imaginar ela com outro. Pois é Carlão, meu irmão, nós vamos casar, e você será padrinho. Tínhamos que falar primeiro pra você.

O pior não aconteceu. Lágrimas desciam dos olhos do Buca. Carlão também chorou, e abraçou o casal. Depois se levantou e pegou uma cerveja, notícia boa tinha que ser brindada:

- Um brinde a vocês! Felicidades! Que casal lindo!

Sim. No jogo de final de ano vestiriam camisas diferentes, um no time dos casados e o outro no dos solteiros, mas isso seria tranqüilo. Carlão mal podia esperar por esse casamento, seria padrinho, e depois das palavras do padre poderia se calar para sempre, finalmente!
         
P.S.: Qualquer semelhança com a realidade e com personagens reais é mera coincidência. Apesar de ter sido um beque central meia boca, o cronista declara desde já que este texto não é autobiográfico. 

JC 




São Paulo não pode parar.
O Metrô não pode parar.
Então o rapaz
(que estava parado)
acelerou o passo
e pulou na frente do trem
(que não parou).

O rapaz nunca mais trabalhou
e muita gente perdeu a hora.




São Paulo - Vista da Serra da Cantareira
COMUNICADO Nº 001/2013

Este blogue, antiode, nasceu em dezembro de 2010. Completou, portanto, dois anos de vida no mês passado. Surgido para divulgar meu livro de poemas, não foi tão útil nesta tarefa; mas, por outro lado, abriu para mim um campo gramado de possibilidades. Publiquei crônicas, textos, poemas...: de minha autoria, de amigos e dos grandes das letras e das artes plásticas.

Publicar textos e poemas “clássicos” é fácil e aumenta o número de visualizações, mas não resolve nada, há dúzias de blogues e sites que já fazem isso. Prefiro publicar materiais próprios e de amigos que considero bons (os escritos e o amigos: totalidade é tudo, é totalidade ou nada), se minhas avaliações são furadas é outra história, mas não é o fim da história. Enfim desta história e deste parágrafo: quando tropeçar em textos e poemas pouco conhecidos dos grandes das letras, publicá-los-ei, mas esta não é a prioridade.

Nestes dois anos e um mês este blogue recebeu quase catorze mil visitas e setenta e quatro comentários para as cento e sessenta e nove publicações. Razoável.

E agora a parte menos desimportante deste comunicado desimportante. Nos últimos tempos este blogue estava sendo atualizado semanalmente, sempre nos finais de semana, geralmente aos sábados. Ocorre que este cavaleiro (também de triste figura), resolveu sair para nova aventura, quer “penetrar no reino das palavras” por outra porta, derrubando a porta se necessário. Aprendi que o poema é desemprenhado na luta com palavras. Não sei como se desemprenha um romance, mas sinto minhas entranhas pejadas de literatura. Aprendi que o romance é um mapa da existência, isso é fascinante e atrai. Neste 2013 quero pelejar e velejar pelos arroios do romance. Pode ser que esteja gestando um futuro natimorto, ou um naufrágio. Se for assim, que assim seja, porque:

Voltar para o pó
não é difícil.

Difícil
é tirar o pó da casa
diariamente.

É isso. Forte abraço. E um 2013 menos pior para todos.