DEUS NÃO MORREU, MATOU-SE! O SUICÍDIO DO
GRANDE CASTRADOR
Os homens foram criados à imagem e
semelhança de deus, porém uns mais que os outros. Paul Lafargue, André Gorz,
Ernest Hemingway, Wladimir Maiakovski, Virginia Woolf, Mario Monicelli e
Torquato Neto entre os mais semelhantes. Seres humanos são antes de tudo
criaturas criadoras, que se fazem e desfazem continuamente. Mas se por
definição uma criatura é um ser criado, como lhes pode ser permitida a criação
e seu contrário, a destruição? Ainda mais porque a capacidade destrutiva humana
implica na negação da criação divina. O auto-assassinato humano, por exemplo, nega a onipotência divina em sua maior dimensão, a
concessão da vida. A condenação aberta do suicídio pela maioria das religiões
nos diz muito. O mínimo que se pode afirmar é que existe algo como um Complexo
de Édipo entre homens e deuses. Sísifo e Prometeu que o digam.
A relação com deus é dupla: ame-o ou
deixo-o. Deus é o limite, para bem e para mal. É o grande sintetizador na
medida em que pode representar o princípio, a unidade e o fim; mas, pela
mesma razão, é também o grande castrador já que oferece uma solução externa e
inacessível aos homens. À humanidade caberá se libertar de deus ou ser castrada por ele. A divindade é a pedra no caminho do fazer e desfazer-se humano, é o
limite. Alguns caminharão para o deicídio, outros se anularão nos braços do
criador.
Das duas uma, ou deus não é onipotente
ou aos homens não se concedeu o livre-arbítrio. Pela simples razão de que uma
opção inviabiliza a outra. O livre-arbítrio humano se choca com a
onipotência divina.
Na concepção cristã as implicações
deste problema são demolidoras. Para haver pecado é preciso existir livre-arbítrio
e escolha, mas assim abre-se a possibilidade de se negar inclusive o próprio
criador.
Uma questão quiçá mais interessante do
que determinar a medida do livre-arbítrio humano é mensurar a autonomia
criativa de deus, que teria forjado a possibilidade da sua própria negação: o
homem. Como o livre-arbítrio é sempre relativo a algo, seríamos forçados a
terceirizar ou hierarquizar a divindade. Mas suponhamos o pior, quais a
implicações de imaginarmos um deus todo poderoso e livre de qualquer arbítrio
que lhe fosse externo? Como o deus cristão. Se assim fosse, deveríamos cobrar-lhe
a conta de todas as chagas do mundo, incluindo os campos de concentração,
Hiroshima, Nagasaki, Gaza e por aí vai. Se o homem escolhe o pior é porque essa
opção lhe foi disponibilizada pelo criador.
O contrário dessa obviedade é o cinismo
mais meia-boca, ultra-hollywoodiano,
que consiste em afirmar que todo mal deriva unicamente das escolhas humanas.
Transforma-se deus no mocinho redentor e os homens em vilões. Mas a questão é:
quem criou a possibilidade de escolha humana? Quem colocou o ovo de serpente no
cesto? Deus é um pai que deixou um revolver entre os brinquedos de seu filho. A
quem responsabilizar pelo crime cometido com a arma-brinquedo?
O protagonismo de deus é duplo:
primeiro suicida em potencial da história e guru da auto-ajuda. Matou-se ao
criar o seu assassino: homem. Por outro lado, inaugurou a arte do auto-engano,
conhecida atualmente por auto-ajuda, que consiste em acreditar no que é mais
conveniente. Como na canção: “não
há crença sem recompensa.” Crença e recompensa se tornam
diretamente proporcionais, e utilitaristas. A crença religiosa não é um em-si é
um para-íso. Abolido este, extingue-se aquela. Quem perderia tempo rezando à
toa? Deus existe na exata medida em que o crente carece de graça.
Da poesia à literatura, o Complexo de
Édipo homens-deuses deixou marcas. Millôr Fernandes indagou: “Mestre, respeito o Senhor, mas não a sua
obra; que paraíso é esse, que tem cobra?” Mas é nas páginas de
Dostoievski que a relação edipiana vai aos píncaros, na fábula de Ivã
Karamazov, o Grande Inquisidor, em nome de um determinado projeto de
humanidade, condena o representante de deus na terra.
O livre-arbítrio humano é tão livre que
chega a aprisionar-se, tão amplo que fabricou o próprio deus, não sem
desconstruí-lo depois, num contínuo fazer-se desfazendo-se. Enquanto a crença
em deus é utilitarista, posto que fundamentada nos prêmios futuros, a sua mais
firme negação é ética, não negocia princípios, recusa uma criação que admite o
mal em nome da redenção futura, os fins não justificam os meios.
No caminho da desconstrução, seguindo
os passos de Ivã Karamázov, Albert Camus recusa a salvação: deus não existe,
mas isso pouco importa, não seriam legítimas as benesses oferecidas por uma
divindade que aceita o mal. Recusar a salvação torna-se um
imperativo ético.