HOMENS E NÃO: A ITÁLIA QUE AMO

Os homens podiam se perder por toda parte e por toda parte resistir. Não podiam se perder por toda parte e por toda parte resistir?
(Elio Vittorini – Homens e Não)

Na capa espessa duas palavras se destacam: “homens” e “não”, entre elas, há um “e” cortado, que parece um “i” sem o pingo. O nome do autor, Elio Vittorini, praticamente não aparece. Quase se lê Homens Não. Mas o título é Homens e Não. Na contracapa, em tons de cinza, se vê uma cidade bombardeada. As orelhas informam se tratar de um romance publicado no final da Segunda Guerra Mundial, que fala da resistência italiana e de homens partidos, como a Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Comprei sem hesitar. Atraiu-me, sobretudo, o “não” estampado na capa.     

Cresci entre imigrantes italianos que chegaram ao Brasil na metade do século XX. Trinta anos depois, ouvia-se uma espécie de “brasiliano” nas ruas, calçadas e quintais que frequentei. Era um idioma paralelo, gesticulado, viril e de difícil compreensão para quem não fosse dali. Acredito que, naqueles anos, na primeira infância, comecei a desconfiar da vida, como se houvesse uma ambiguidade fundamental e inescapável na existência, que se descortinava ali e que, posteriormente, me empurraria para a esquerda e para a literatura. Havia entre aqueles homens uma profunda desconfiança na polícia e no Estado, desconfiança nem sempre explicitada, mas sempre presente. Eu ouvia histórias da “guerra contra Alemanha”, exatamente o contrário do que ensinavam na escola, onde se aprende que italianos e alemães lutaram lado a lado. Lembro de ouvir um daqueles homens contando que, cercado pelos alemães e para não ser morto, se refugiou no esgoto por dois dias. Desconfio que aquela história me causou certo pânico de cercos policiais, fazendo-me torcer pela fuga quase sempre impossível. Imaginava aquele homem percorrendo as tubulações, espremido entre os ratos e a sujeira da cidade, por baixo dos soldados inimigos. Era difícil conciliar o que ouvia nas ruas, calçadas e quintais com as lições ensinadas na escola. Talvez daí certa tendência a não levar as coisas a sério. Como escreveu Milan Kundera: “quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida.”1

Tempos depois, cheguei a pensar que posso ter crescido junto com homens e mulheres da resistência italiana, o que explicaria a “guerra contra os alemães” e não ao lado deles. Mas, mesmo podendo fazê-lo, nunca indaguei nenhuma daquelas pessoas sobre o passado político delas. Era desnecessário. Sentia-me um deles. Bastava. A pergunta talvez violasse a nossa cumplicidade, poderia ressuscitar fantasmas do passado.

Elio Vittorini integrou a resistência na vida real. No romance, a ação ocorre em Milão, à época ocupada pelos nazistas, no final da Segunda Guerra Mundial. A história é contada em diálogos duros, completados por descrições breves e comentários do autor. Os personagens se tratam por codinomes. Bicicletas cortam as ruas, como no cinema italiano. As fugas são por becos e telhados, e não pelo esgoto, como na história que ouvi quando criança. Ocorre um cerco que me fez parar a leitura e respirar fundo, além de torcer pela fuga. Há amores interrompidos, apressados, por fazer. Em um dos trechos mais pesados do romance, uma passagem com um cão de caça remete ao capítulo A Revolta, dos Irmãos Karamazov, de Dostoievski.

Refletindo sobre a batalha de Stalingrado, Drummond escreveu que o homem é “uma criatura que não quer morrer e combate, contra o céu, a água, o metal, a criatura combate, contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate, contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate”. Refletindo sobre a resistência italiana, Vittorini completaria: “Não havia somente luta e sobrevivência. Havia também lutar e se perder.” Impressiona notar que, tanto no poema de Drummond quanto no romance de Vittorini, os homens combatem para viver. A luta é muito mais pela vida presente do que pelo futuro imaginado. Dito de outra maneira: nas obras citadas (Carta a Stalingrado e Homens e Não) não é a utopia que sustenta a resistência, é a resistência que sustenta a utopia. Drummond: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero.”

Mas, pensar que os homens lutam e se perdem ao mesmo tempo, como no romance de Vittorini, chocaria militantes e poetas líricos, como Pablo Neruda.2 Para o poeta chileno, os homens não somente lutam, ao mesmo tempo constroem a vida futura, não se perdem porque resistem. Exemplo. Há uma imagem de Drummond que é tão áspera e desoladora que, inconscientemente ou não, Neruda a reconstruiu. Drummond: “Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede, mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol, ó minha louca Stalingrado!” Neruda: “Estes livros, em frescas caixas de pinho e cedro, estão reunidos sobre o túmulo dos verdugos mortos: estes teatros feitos nas ruínas cobrem martírio e resistência: livros claros como monumentos: um livro sobre cada herói, sobre cada milímetro da morte, sobre cada pétala desta glória imutável.”  

O personagem principal de Homens e Não, o partigiano Ene 2, luta e se perde ao mesmo tempo. É uma espécie de Mersault, o estrangeiro de Camus, misturado com Bartleby, o escriturário de Melville, Ene 2 combina a indiferença absurda do primeiro com o “preferiria não” do segundo. Vittorini dá vida a outros partigianos. Filho-de-Deus, que amava os cachorros. Coriolano, que levava a família para os esconderijos. Foppa, que gostava de cinema e dos chineses. El Paso, que havia lutado contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola. Um operário que aderiu à resistência, mas não matou um soldado inimigo por considerá-lo triste. São homens concretos, de carne e osso, como os que conheci num canto de São Paulo. É o ponto forte do romance.

Um dia recebi notícias sobre um daqueles italianos que conheci. Passava o tempo numa poltrona que levava para a calçada. Varria o chão e até cochilava sentado. Os edifícios avançavam sobre as casas do bairro, inclusive a dele. Ele próprio havia recebido mais de uma proposta para trocar a casa por um apartamento. Mas nunca aceitou. Lutava e se perdia? Naquela manhã, um casal passeava com o cachorro, perto da poltrona do italiano. Quando o animal ameaçou sujar a calçada, o homem tentou espantá-lo com a vassoura. Na confusão, os donos protegeram o cachorro e foram atingidos por vassouradas. Eram advogados. Disseram que chamariam a polícia e que processariam o italiano. O homem tinha 98 anos. Imagino a polícia abordando aquele homem quase centenário, na poltrona posicionada na calçada. Ter problemas com a lei, mais um, aos 98 anos, é para poucos.

Escrevo durante a pandemia provocada pela Covid-19. Aproveitei o período de distanciamento social para reler Homens e Não. Da Itália chegam notícias tristes. No momento, é o país que contabiliza o maior número de mortos. Da Itália também chegam imagens emblemáticas, que emocionam. Homens, mulheres e crianças cantam Bela Ciao nas sacadas dos apartamentos em plena quarentena. Vejo Ene 2, Filho-de-Deus, Coriolano, Foppa, El Paso, o operário partigiano e os italianos que me criaram cantando. Também os vejo lutando e se perdendo nos hospitais, entre os profissionais da saúde, sem condições mínimas de trabalho. 

A Itália é um dos alicerces fundamentais da civilização, basta pensar no Renascimento. Quinhentos anos depois, Italo Calvino escreveu: “a Itália é hoje, em parte, um país moderníssimo, industrializado, com um alto nível de bem-estar; em parte, porém, é um país antiquado, imóvel, paupérrimo [...] Temos ao alcance da mão, a um só tempo, Detroit e Calcutá.”3 O melhor da Itália nasce justamente da contradição entre as possibilidades esboçadas pelo Renascimento e os limites impostos pelo capitalismo. Isso ajuda a explicar a força do movimento operário italiano dos anos 1960, por exemplo. É a possibilidade tencionando o limite. É a Itália dos homens que lutam e se perdem, como no romance de Elio Vittorini. É a Itália dos homens e do não. É a Itália que amo.   
  
Notas:

1 A sacada de Milan Kundera está no romance A insustentável leveza do ser.

2 Uma análise sobre o diálogo de Neruda com Drummond pode ser lida aqui

3 A reflexão de Italo Calvino está no ensaio Diálogo de dois escritores em crise, que foi publicado no livro Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade


(Texto publicado originalmente no portal A Terra é Redonda)


LIBERTEM MARIO QUINTANA

Eles passaram...
Você passarinho.
Eles choraram...
Você chorinho!

Os poetas têm seus temas. Ou, como escreveu Carlos Secchin, os poetas cultivam “jardins de obsessões”. Para Ferreira Gullar, a agonia das frutas e dos legumes que ficaram por vender, o lento apodrecer das frutas e dos legumes. Para Manoel de Barros, o “delírio do verbo”, as “insignificâncias” e as visões das crianças, como as cores das palavras e os bichos que habitam as pedras do calçamento. Para Mario Quintana, “as coisas simples”: as estrelas, o vento, a morte, o azul, a lua, o céu de Porto Alegre. Manoel de Barros escuta as crianças e, com elas, olha para baixo e procura a poesia dos bichos que habitam as pedras do calçamento. Mario Quintana olha ao redor, poetiza o efêmero e o transitório, daí o humor; mas também olha para o alto, sente o vento e registra a poesia do céu porto-alegrense, talvez por isso azul seja a cor que mais aparece nos versos do poeta gaúcho. 

Antes de publicar poemas, Quintana trabalhou na imprensa e fez traduções. Consta que, no começo do século XX, na cidade de Alegrete, a família do poeta se comunicava em francês, para que os empregados não entendessem o que se falava. Quintana foi para Porto Alegre ainda jovem. Traduziu Balzac, Proust, Voltaire e outros. O francês utilizado pela família, em Alegrete, serviu para alguma coisa além de disfarçar o conteúdo político das conversas familiares. Já o primeiro livro de poemas, A rua dos cataventos, foi publicado em 1940. São 35 sonetos identificados por algarismos romanos. A forma incomum para a época evitou que Quintana fosse vinculado aos movimentos literários da primeira metade do século XX, o que, para ele, não era problema: “como o soneto era uma forma meio desvalorizada, eu fiz questão de estrear com um livro de sonetos”. É o próprio quem registrou: “pertencer a um escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.” A mesma ideia reaparece rearranjada pelo poeta: “O preço da poesia é a eterna liberdade... E aderir a determinada escola poética é o mesmo que internar-se, voluntariamente, num asilo de incuráveis.”

Às vezes parece que os poetas nascem velhos. Quem pensa em Carlos Drummond de Andrade e em Mario Quintana vê velhinhos calvos e simpáticos. Drummond gostava de desenhar e, para se antecipar aos caricaturistas, se divertia fazendo desenhos de si mesmo, destacava a careca vasta, o nariz afilado e os óculos espessos. Com seus desenhos, Drummond ajudou a fixar a imagem de si próprio que conhecemos. Quintana parecia ser um senhor simpático, com uma careca vasta e óculos espessos, às vezes cercado por acadêmicos que lhe atravancam o caminho.Mas as aparências enganam. Drummond foi um incendiário, disse que talvez fosse um anarquista radical, se não tivesse casado e constituído família. Quintana foi um homem nem sempre simpático e bem-humorado, não raro fazia uso da ironia contra chatos e impertinentes. Causos relacionados ao poeta podem ser lidos no livro Ora Bolas, de Juarez Fonseca. Quintana se definia como “a falta de assunto predileta das professoras de português da Grande Porto Alegre”. Certa vez, visitado por um grupo de estudantes, foi questionado sobre o problema da solidão, se saiu com essa: “O maior problema da solidão, minhas filhas, é preservá-la.” Mario Quintana não casou nem teve filhos.

A obra do poeta é grande. São dezenas de livros escritos e traduzidos. Poemas, máximas e pequenas crônicas. Prevalecem o efêmero, o movimento, o cotidiano, a simplicidade, o humor e o vento: “Eles passarão... Eu passarinho!”

Com o desenvolvimento dos meios de transporte e, por tabela, do turismo, é possível se aproximar fisicamente do universo de poetas e escritores, inclusive, não raro, visitando locais em que viveram. A Casa Velha da Ponte e os becos de Goiás, de onde fugiu e para onde retornou Cora Coralina. A rua Lopes Chaves e o centro da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade. As fazendas, as boiadas e a casa que Guimarães Rosa habitou em Cordisburgo. Em Itabira, placas de ferro com poemas formam o Museu de Território Caminhos Drummondianos, também é possível visitar a casa e a fazenda habitadas pelo poeta, esta última demolida e reconstruída posteriormente pela Vale do Rio Doce, mas em um ponto distante do terreno original. Na Fazenda do Pontal, entre mangueiras, o menino Carlos Drummond de Andrade lia a comprida história Robinson Crusoé, sem saber aquela área seria transformada em depósito de rejeitos da mineração. O exemplo é suficiente para alertar sobre os riscos envolvidos na criação de casas-museu.

Em 1968, a cidade natal de Quintana resolveu homenageá-lo. Pediram que o poeta indicasse um dos seus poemas para ser gravado em praça pública. Sem conseguir escolher, Quintana explicou a dificuldade ao prefeito e ao presidente da câmara: “um engano em bronze é um engano eterno”. E foi a frase que ficou registrada na praça de Alegrete. Tempos depois, em Porto Alegre, foi instalada a Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), que ocupa todo o antigo Hotel Majestic, local em que o poeta morou entre 1968 e 1980. No segundo andar, atrás de uma parede de vidro, é possível ver o quarto que foi ocupado por Quintana: cama, lixeira, cinzeiro e outros objetos pessoais. Tudo organizado como se o hóspede tivesse saído pela manhã para voltar à noite. Detalhe importante. Quarto fechado, ou, como se diz por lá, chaveado.

“O mais irritante de nos transformarem um dia em estátua é que a gente não pode coçar-se.” – escreveu Quintana, que foi transformado em estátua instalada na praça da Alfândega, também em Porto Alegre. Na Casa Velha da Ponte, em Goiás, quase nada se fala da relação difícil de Cora Coralina com sua cidade natal. O mesmo ocorre em Itabira, que não gostou de ser apenas uma fotografia na parede do poema de Drummond. Mas a contradição é mais explosiva na Casa de Cultura Mario Quintana, porque o poeta chegou a ser despejado do então Hotel Majestic. Ironia do destino, Quintana emprestou o nome ao espaço de onde foi despejado.

Composta por salas de cinema, museu, mezanino, teatros, bibliotecas, galeria, discoteca, jardim, passarelas, lojas, café, acervo Elis Regina, Travessa dos Cataventos e o quarto habitado por Quintana; a CCMQ oferece mais opções e possibilidades que a maioria aparelhos semelhantes. Vale a pena visitar o espaço e aproveitar todas as possibilidades, incluindo os bares da rua dos Andradas. Mas com um problema: a principal referência a Quintana contraria a obra do poeta, e não apenas porque ele foi despejado do local. O quarto fechado parece um caixão de vidro, aprisiona e limita um ser que transpirava ventos e estrelas. É um segundo despejo, mas ao contrário, espécie de recondução coercitiva. Se nos escritos do poeta prevalecem o efêmero e o movimento, por que trancá-lo num quarto fechado, longe dos pássaros, da lua e do céu? Um cômodo trancado que se observa por uma parede de vidro certamente não combina com nenhuma obra poética, mas, no caso de Mario Quintana a contradição é ainda maior. É o que tentaremos mostrar. Para isso, orbitemos, minimamente, ao redor da obra do poeta.

Em 1984, Mario Quintana concedeu entrevista e afirmou: “Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”. Se é assim, busquemos o que o poeta diria sobre o quarto na casa de cultura que leva seu nome. Comecemos por um trecho do poema que tem o sugestivo título Este quarto:

[...]
Que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto,
o céu me descansa como um seio.
[...]

Antes de prosseguir, vale registrar um dito/chacota escrito pelo poeta: “Prefiro ser alvo de um atentado a ser alvo de uma homenagem: um atentado é mais expedito e não tem discursos.” O que diria sobre o discurso claustrofóbico do quarto fechado na casa de cultura? Que bloqueava a visão do céu? Que era pior que um atentando? Que parecia uma cela? Outro poema que dialoga com o quarto da casa de cultura é Canção da janela aberta:

Passa nuvem, passa estrela,
Passa a lua na janela...

Sem mais cuidados na terra,
Preguei meus olhos no céu.

E o meu quarto, pela noite
Imensa e triste, navega...
Deitou-me ao fundo do barco,
Sob os silêncios do Céu.

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o teu Poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no Céu!

Aqui o contraste é evidente. No poema: a janela aberta e as estrelas. No quarto: a janela e a cortina fechadas. Em um passa a lua, passa estrela e passa nuvem. No outro, através da parede de vidro, se vê uma cortina, que bloqueia a visão de dentro para fora. A ausência de movimento denuncia a janela fechada, ou seja, não passa nem lua, nem estrela, nem nuvem, nem vento. Vale destacar que o poema citado contém palavras e temas que se repetem na obra do poeta: nuvem, estrela, lua, céu, passagem. É o tal “jardim de obsessões”. 

Na Canção do amor imprevisto, o poeta se define como um homem fechado e solitário. Mas alguém surge com passos leves e a boca fresca de madrugada. O amor imprevisto provoca a alegria atônita:

[...]
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Mas um quarto fechado dispensa os espantalhos, inclusive os inúteis; e o passarinho pode até se confundir e bater na parede de vidro, como acontece nos edifícios discutíveis das grandes metrópoles.

Canção de barco e de olvido é outro poema que contém palavras e temas freqüentes na obra do poeta: efêmero, passagem, nuvens. Os versos também contrastam com o quarto fechado na casa de cultura. Clausura x movimento. Baú do morto x mapa das nuvens:

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas…
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Quintana registrou que os livros de poema precisam conter páginas em branco e margens largas, para as crianças preencherem com desenhos. São justamente páginas em branco e margens largas que faltam no quarto da casa de cultura, que não deixa brechas para a imaginação. Vejo Quintana caminhando por uma rua perdida numa cidade fantasma, contemplando o “desvario do vento”, porque “à noite as almas deste mundo vagam em alcatéias como lobos.” Não vejo Quintana trancado num quarto fechado como um caixão de vidro. O poeta preso no quarto é um ser triste como um passarinho empalhado, “um espantalho inútil”, um morador de rua sem cachorro, ou o vencido que procura a lua no poema Floresta:

[...]
            E o vencido... são duas mãos e a cabeça do
                                        [Vencido que se arrastam
Que se arrastam penosamente para o poço da Lua,
Para o frescor da Lua, para o leite da Lua para a
                                                              [lua da lua!
           (Filha, onde teria ficado o resto do corpo?)

A morte é também tema recorrente na obra de Quintana. Como nos versos acima, o poeta às vezes registra pequenos testamentos. Todos libertação e movimento. Sempre contrastantes com o quarto na casa de cultura. Exemplo, poema Seiscentos e sessenta e seis:

[...]
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente...
e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Temática retomada em O morituro: “Quero morrer na selva de algum país distante... Quero morrer sozinho como um bicho!” Ideia semelhante reaparece no último livro publicado por Quintana, Velório sem defunto: “Quando eu me for, os caminhos continuarão andando... E os meus sapatos também!” A mesma ideia escrita com outras palavras reaparece no mesmo livro: “Morrer, enfim, é realizar o sonho que todas as crianças têm... O motivo? Só elas sabem muito bem: fugir... fugir de casa!”Aliás, o título do livro de Mario Quintana (foi último publicado em vida) é a melhor definição para o quarto do poeta na casa de cultura: velório sem defunto.

Milan Kundera registrou que, antes de sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch, porque o kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento. É o risco que assumem as casas-museu: contrariar o objetivo manifesto e a preservação da memória, transformar os homenageados em kitsch contribuindo para o esquecimento. No caso de Mario Quintana, o poeta acabou preso no local de onde foi despejado, teve a intimidade revelada e a obra contrariada.

Se, como escreveu o poeta, “amar é mudar a alma de casa”: libertem Mario Quintana. Por amor e por coerência. Que o poeta não apreciava “dias sem pássaros e noites sem estrelas”, nem espaços confinados. Porque poesia não tem a ver com quartos fechados, paredes de vidro e intimidades reveladas. Porque arte não tem a ver com os reality shows que infestam o tempo presente. Porque a morte – e também a poesia – “é quando finalmente podemos estar deitados com sapatos.” Eles passaram. Quintana passarinho. Eles choraram. Quintana chorinho. O poeta é chorinho tocado na beira do Guaíba, nos bares do país, nas praças e – por que não? – no café instalado no último andar da Casa de Cultura Mario Quintana, de onde se pode tocar o vento e contemplar o pôr do sol porto-alegrense.

Por fim, perguntarão: o que fazer com o quarto no hotel transformado em casa de cultura? Registrem que o poeta foi despejado e sejam coerentes com a obra de Mario Quintana: abram a porta e a cortina, levem livros, plantem flores, instalem comedores para os passarinhos e não esqueçam os cata-ventos.

Quarto do poeta - 1

Quarto do poeta - 2

Quarto do poeta - 3

Quarto do poeta - 4

Por do sol - Porto Alegre

Texto publicado originalmente no Passa Palavra.

 O ESTILO É TÔNICO

 

Em carta enviada para Aleksandra Khotiaíntseva, em 1897, Anton Tchékhov afirmou: “quanto mais alegre eu vivo, mais sombrios saem meus contos.” É uma questão interessante que, não raro, manifesta-se pelo avesso para os leitores. Quando leio textos sombrios, fico alegre.

 

Costumo retornar aos meus escritores preferidos em tempos de tristeza e angústia, interrompo a leitura da vez e retorno a Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Ernesto Sabato, Albert Camus, Milan Kundera, André Comte-Sponville. Às vezes recorro a Enrique Vila-Matas, Manoel de Barros, Eduardo Galeano ou algum outro. Mas, quase sempre, é aos meus escritores preferidos que retorno em tempos de tristeza e angústia. Revigora. Não digo que funcione para todos em todas as situações, nem com os mesmos textos, mas, funciona.

 

É estranho porque meus escritores preferidos são, em geral, pessimistas. Mas as lapadas de desesperança são agradáveis. “A pena da galhofa e a tinta da melancolia” reconfortam com vantagem.

 

No romance A brincadeira, Milan Kundera fez o personagem Ludvik provocar a namorada, Marketa, que “era uma dessas mulheres que leva tudo a sério” e que havia trocado um encontro amoroso por um curso de formação do partido. Quando recebeu uma carta de Marketa dizendo que no curso de formação do partido “reinava um espírito sadio”, Ludvik respondeu num cartão-postal: “O otimismo é o ópio do povo. O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotski.” Era uma brincadeira, mas ocorreu na antiga Tchecoslováquia, foi parar nas mãos dos burocratas estalinistas e não terminou bem. Ludvik foi julgado e condenado, mesmo não sendo trotskista.

 

Já foi dito, contra Kundera e Ludvik, que “o pessimismo é o ópio da intelectualidade.” Pode ser. Mas não resolve a minha questão. Não é exatamente o pessimismo que me encanta nos meus escritores preferidos. É a tinta da melancolia, mas também a pena da galhofa, como se o desespero libertasse o cômico. É a angústia, a tristeza, o humor e algo a mais. O quê? Por que retorno aos meus escritores preferidos em tempos sombrios?

 

Esses dias reli o primeiro livro do filósofo André Comte-Sponville, Do corpo. Encontrei um aforismo que dialoga com a constatação de Tchékhov. Por que Tchékhov escrevia contos sombrios quando estava alegre? Porque:


“Toda criação é uma alegria – pelo aumento de ser que ela supõe. Isso não significa que não haja grandes obras tristes; mas elas não são conformes ao impulso que as suscitou.”

 

Alegria criativa do artista, alegria contemplativa do público. Ainda mais nas releituras, devido à possibilidade de reparar nos detalhes e nas entrelinhas, na arquitetura e no acabamento do texto.

 

André Comte-Sponville, também no livro Do corpo, arremata com um aforismo que resolve a minha questão. Por que retorno aos meus escritores preferidos em tempos sombrios?

 

“Nos piores momentos de angústia ou de tristeza, nas fases de desgosto total e de extrema lassidão, quando náuseas de desespero oprimem nosso peito, quando gostaríamos de chorar ou de vomitar, ler uma frase bem construída, sólida, limpa, verdadeira, faz bem, como uma lufada de ar puro, uma bofetada de vento. Uma frase, uma só, e já nos sentimos melhor. O estilo é tônico.”

 

Publicado originalmente no Passa Palavra

RECEITA DE POEMA

Doure palavras cruas,
na gordura quente,
com cebola, alho, tomate.

Tempere a vida,
esta pasta informe,
compacta e branca.

Adicione cores:
verde maritaca,
amarelo canário-da-terra,
vermelho tiê-sangue,
preto black bloc.

Adicione cheiros:
gás lacrimogêneo,
perfume primaveril,
fragrância úmida de sexo humano.

Adicione imagens:
mãe amamentando,
homens se beijando,
pedra atirada na polícia.

Combine o timbre ritmado de cachoeira
ao gorjeio de ave silvestre e
ao borbulhar de assembleia operária.

Junte tudo num tacho de barro,
com água corrente de fonte,
e entorne com vigor proletário.



 A PESTE REVISITADA


Com a pandemia da Covid-19 lembrei do romance A peste, de Albert Camus. Mas quando tentei iniciar a releitura, procurei o livro e descobri que estava emprestado. Esperei mais de um ano para reler o romance, o que foi interessante. Muito já foi dito e escrito sobre A peste e a pandemia da Covid-19. Mesmo assim, gostaria de voltar ao tema.   

Camus publicou A peste em 1947. A ação ocorre na cidade de Orã, no litoral da Argélia. Ratos morrem nas ruas, calçadas e quintais. Depois a peste chega às pessoas. A cidade é isolada. A população se organiza para enfrentar a epidemia.

Há semelhanças e diferenças entre A peste e a pandemia da Covid-19. À medida que crescem as vítimas, a surpresa vai se transformando em pânico e o medo em reflexão. A cidade de Orã foi isolada: quem estava fora não podia entrar, quem estava dentro não podia sair. Famílias, amigos e amantes foram separados. Cafés e teatros não fecharam. Os personagens principais do romance são um médico, um jornalista, um funcionário público, um capitalista, um padre e um sujeito que andava com os artistas da cidade. À medida do possível, todos se unem para lutar contra a peste, que dura menos que a pandemia da Covid-19, mas é mais letal. O narrador informa que Orã tinha uma população de duzentos mil habitantes. No pior momento da epidemia, morreram 700 pessoas numa mesma semana. A população brasileira é aproximadamente mil vezes maior que a de Orã, 21.141 brasileiros perderam a vida na semana mais letal da pandemia da Covid-19. Os números indicam que, proporcionalmente, a peste matou mais em Orã do que o coronavírus no Brasil.

O narrador ressalta que a invasão brutal da doença obrigou as pessoas a agir como se não tivessem sentimentos individuais. Curiosamente, o título do romance é A peste, mas poderia ser A solidariedade ou A esperança, porque é a história da aproximação e da união dos personagens para combater o mal, o que remete à experiência de Camus na resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial.

O pensamento camusiano avançou da noção de absurdo (romance O estrangeiro, de 1942; ensaio O mito de Sísifo, também de 1942) para ideia de revolta (romance A peste, de 1947; ensaio O homem revoltado, de 1951). Inicialmente, tratava-se de julgar se valia a pena viver uma vida finita e sem sentido. Posteriormente, a partir do sim dado à existência, apesar de finita e sem sentido, tratava-se de criar uma ética. Camus forja uma espécie de ética da revolta. Era preciso viver sem se habituar com a morte, que nunca deveria ser legitimada: nem em nome de Deus, nem da revolução, nem do homem futuro. É a ideia-chave presente no romance A peste.

Um dos pontos altos do romance é o embate do padre Paneloux com o médico Rieux sobre o sofrimento das crianças. Camus retoma Dostoievski, especialmente o capítulo A revolta, do romance Os irmãos Karamázovi. O sofrimento imposto a seres inocentes, como as crianças, escandaliza os homens. Colocados diante do escândalo, os personagens reagem de formas distintas. O padre justifica o sofrimento das crianças por considerá-lo o pão amargo sem o qual as almas pereceriam de fome espiritual. O médico se recusa a amar uma criação em que crianças são torturadas. Se o médico é o homem revoltado, o padre é o homem conformado: negação absoluta x afirmação absoluta. São temas presentes nos ensaios camusianosA opinião do médico se aproxima do que Camus discutiu no belo ensaio A recusa da salvação, que compõe o livro O homem revoltado: se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável.     

Mas ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, nem ama duas vezes a mesma pessoa, nem lê duas vezes o mesmo livro. Ao reler A peste senti certo estranhamento. A releitura durante a pandemia da Covid-19 fez o romance parecer demasiadamente otimista. O que não significa que não deva ser lido. O estranhamento surge porque Camus explora a solidariedade que brota nos corações dos companheiros de peste. A opção do romancista é legítima esteticamente e politicamente, mas contrasta com os acontecimentos duvidosos do tempo presente.

Enquanto os personagens se organizam para combater a peste, o grupo político que comanda o Estado brasileiro age para disseminar o coronavírus. Solidariedade no romance, vileza no tempo presente. Enquanto os personagens lamentam todas as mortes, o presidente do Brasil pergunta e daí? Compaixão no romance, perversidade no tempo presente.

A imprensa noticiou que, na cidade de São Paulo, houve casos de psicólogos, biólogos e educadores físicos que, enquadrados como profissionais da saúde, usaram diplomas antigos, burlaram a regra e anteciparam a vacina contra a Covid-19, apesar de não atuarem no combate à pandemia (ver aqui). A manobra não é ilegal. Mas nem tudo que é legal é ético. O erro estava no plano de vacinação, que não exigiu comprovação de atuação na área de saúde. Mas isso não torna a questão eticamente justificável. Alguns vacinados preferirem não se identificar indica que há dilemas éticos. Houve quem argumentou que o problema real é a falta de vacinas, o que é correto. Mas isso justifica se imunizar antes de quem tem mais necessidade? Houve quem alegou ser complicado colocar a responsabilidade sobre o indivíduo, o que também é correto. Mas não significa que práticas eticamente discutíveis devam ser toleradas.

A responsabilidade pelas mortes evitáveis durante a pandemia da Covid-19 é do capital, dos governos e das políticas genocidas, que privilegiam os lucros das empresas. Não dava para esperar nada diferente dos gestores do sistema. Mas as pessoas poderiam agir como se não tivessem apenas sentimentos individuais, como no romance de Camus. Nada – nem o medo, nem a pandemia, nem a falta de vacinas, nem a presença de um genocida na presidência do país – justifica se imunizar antes de quem tem mais necessidade. É neste ponto que A peste, de Camus, é demasiadamente otimista e se afasta dos acontecimentos duvidosos do tempo presente. No romance, psicólogos, biólogos e educadores físicos usariam os conhecimentos que têm para combater a epidemia, no tempo presente alguns usaram os diplomas para burlar a regra e furar a fila da vacina.

Há uma certeza compartilhada pelo dr. Riex, pelo padre Paneloux e pelos demais personagens do romance A peste: haveria, nos homens, mais coisas a admirar do que a desprezar. É uma ideia que a pandemia da Covid-19 colocou em xeque. 


Publicado originalmente no Passa Palavra