PESO OU LEVEZA?

 

I

Creio que a maioria dos leitores escolheria, facilmente, o leve e não o pesado. É compreensível, afinal, estamos na “civilização da leveza” [1]. Mas exploremos, de passagem, a contradição pesado-leve, acredito que ela tem algo a nos dizer.

 

A insustentável leveza do ser é um romance misterioso de Milan Kundera. A cada releitura, surgem novas possibilidades, como se o texto estivesse em constante reconstrução. É, provavelmente, uma das características dos clássicos. Numa leitura rápida e superficial, o leitor pode se limitar às relações amorosas. Talvez seja o que ajuda a explicar o fato do livro ter se tornado um best seller. Mas nas releituras, quando ocorrem, aparecem outras possibilidades interpretativas: a Primavera de Praga, aquele “segundo soberbo” da humanidade [2]; a dimensão existencial do kitsch, reflexão que, creio, só poderia ser realizada num romance; o eterno retorno; a contradição pesado-leve, que, de acordo com o romancista [3], “é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições”.

 

Antes de explorar como a leveza e o peso aparecem nas vidas dos personagens, no contexto da Primavera de Praga, Kundera passa por Nietzsche (“o eterno retorno é o mais pesado dos fardos”) [4], Parmênides (“o leve é positivo, o pesado é negativo”) e Beethoven (“só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa”). No romance, a pintora Sabina tende para a leveza, enquanto o cirurgião Tomas tende para o peso. Sabina foge quando os tanques russos invadem Praga; posteriormente abandona o amante, Franz, exatamente quando ele resolve abrir mão do casamento para viver exclusivamente com ela. Tomas é um libertino casado, tortura a companheira, Tereza, com várias traições; foge de Praga com Tereza após a invasão russa, mas retorna e acaba transformado em limpador de vidros. Às vezes a leveza é insuportável para Sabina. Às vezes o peso é reconfortante para Tomas. Se é assim, o que escolher? Peso ou leveza?

 

II

Peso tem a ver com valor, gravidade, engajamento, atração e amor. Sim, arrisco dizer que peso tem a ver com amor. Existe amor leve? Se estão colocados o valor, a gravidade, o engajamento, a atração e o amor; o peso está no campo da moral e da ética. A força que atrai os corpos para baixo se chamar gravidade nos diz alguma coisa. Se o peso orbita no campo da moral e da ética, tem a ver com a pergunta-chave de ambas: “o que devo fazer?” Posso fazer o bem porque é bom para mim, como um comerciante que não trapaceia por saber que ganhará clientes sendo justo. Posso fazer o bem ainda que não seja bom para mim, mas porque é justo. Posso fazer o bem por amor, por amar o justo inclusive contra mim, se necessário. Aqui entramos no campo da ética: fazer o que é bom e justo por amor [5]. Estamos no quarteto de Beethoven citado no romance A insustentável leveza do ser: “Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein! (Tem de ser assim? Tem de ser! Tem de ser!)”. O fardo do peso tem a ver com a escolha. “A decisão gravemente medida” – nos termos de Milan Kundera. Quem quiser eliminar o sofrimento pode tentar excluir a escolha do campo das possibilidades. Não estaria distante do budismo e outras sabedorias. Quem não deseja não sofre. Mas lembremos: “só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.”

 

Leveza tem a ver com vazio, indiferença, desengajamento, ausência de atração e de amor. Não é contrário de atração e amor. É o contrário de peso. Não é repulsa e ódio. É ausência de tudo isso: nem atração, nem repulsa, nem amor, nem ódio.  Quem não ama e não odeia é livre (leve) para escolher ou até para ignorar os termos em questão. Tanto faz. É flutuar livre do valor e da gravidade. É possível? Talvez em espasmos de tempo e de vida. Por isso a leveza é insustentável, mas também insuportável. É libertar-se das escolhas por indiferença. Se é assim, a leveza não orbita no campo da moral e da ética. Ou, para ser mais razoável, a leveza é, em alguma medida, livre da moral e da ética. A pergunta-chave de ambas – “o que devo fazer?” – não se impõe, porque tanto faz. Nesta perspectiva, o quarteto de Beethoven passaria a ser: “Tem de ser assim? Tanto faz! Tanto faz!” Leveza absoluta: colocar sinal de igual entre todas as coisas. Certamente ninguém foi tão longe, mas alguns se aproximaram. É um estado de espírito praticamente sem retorno, porque não sobra nada: nem placas, nem caminhos, nem saídas, nem possibilidades. Se a leveza é o contrário do peso, se o peso tem a ver com gravidade, leveza tem a ver com frivolidade. Invertendo a sentença kunderiana: só é frívolo aquilo que não é necessário, não tem valor aquilo que não pesa.

 

III

No cotidiano peso e leveza não têm o sentido que esbocei. Fala-se em deixar a vida mais leve, em geral quer dizer se livrar de obrigações desimportantes e desnecessárias. Fosse só isso, seria simples de escolher e praticar, como quando liberamos memória inútil dos aparelhos celulares. Estaríamos no campo tranquilo da organização das agendas pessoais, e não no pedregoso campo da moral e da ética.

 

Na fórmula que pode ser extraída do romance de Milan Kundera, a leveza é insustentável porque, no limite, se torna insuportável [6]. É a fronteira que pintora Sabina atravessou algumas vezes, experimentando a insuportável leveza do ser. Gilles Lipovetsky ajuda pensar por que a leveza é insustentável e pode se tornar insuportável: “Quando ultrapassa um determinado limite, a leveza frívola torna-se entediante e repetitiva: leveza em excesso mata a leveza. E como não destacar os fracassos da civilização do leve em relação à felicidade? A leveza é bela e desejável, mas não poderia ser estabelecida como princípio supremo.”

 

Para Milan Kundera [7], a arte do romance é uma “sabedoria da incerteza”, joga luz sobre “a relatividade essencial das coisas humanas” e, exatamente por essa razão, não raro se choca com o “desejo, inato e indomável, de julgar antes de compreender, que funda religiões e ideologias.” Além disso, para o escritor tcheco, o romance é também jogo e brincadeira, e Milan Kundera, assim como Machado de Assis, gosta de pregar peças nos leitores. Certa vez me envolvi em uma longa polêmica com um amigo filósofo [8], sete textos para cada um, em discussão a contradição pesado-leve presente no romance A insustentável leveza do ser. Eu tendendo para o engajamento (peso), ele para a indiferença (leveza). Com o avançar da polêmica, fui percebendo que Kundera não toma partido nem pela leveza nem pelo peso. A ambiguidade e o mistério da contradição pesado-leve estão na pergunta que induz a escolher um dos pólos. Se, com Lipovetsky, “a leveza não pode ser estabelecida como princípio supremo”; o mesmo vale para o peso. São as peças que os grandes romancistas pregam nos leitores, ou, como registrei na polêmica com meu amigo filósofo, são as “cascas de banana” deixadas deliberadamente no meio do caminho, para escorregarmos.

 

A pintora Sabina é leve nos relacionamentos, abandona o amante exatamente quando ele pretende assumi-la como esposa. Mas ela certamente não é leve na arte, nos quadros trava combate contra o kitsch produzido pelo regime. Palavras dela: “meu inimigo não é o comunismo, meu inimigo é o kitsch.” O cirurgião Tomas sente o peso da repressão ao não se retratar sobre um texto que havia publicado num jornal, quando sugeriu que os gestores do regime, assim como Édipo, deviam furar os olhos. Mas, forçado a abandonar a medicina, que amava, e transformado em limpador de vidros, ele segue a vida de libertino, experimenta a doçura da leveza se relacionando com as donas das casas que limpava. Palavras dele: “só uma relação isenta de sentimentalismo, em que nenhum dos parceiros se arrogue direitos sobre a vida e a liberdade do outro, pode trazer felicidade para ambos.” Sabina ser a amante que “melhor compreendia” Tomas sugere que leve e pesado não podem ser separados.      

 

Também na arte pesado e leve não podem ser separados. Ainda que predominem provisoriamente ideais estéticos relacionados ao que é leve ou pesado, uns não podem ser totalmente separados dos outros. Por mais leve que seja a obra (delicada, refinada, suave, doce, elegante), o trabalho do artista é pesado, envolve valor, gravidade, engajamento, atração, amor. Sem isso não se produz nada que sobreviva ao tempo [9].

 

Então, voltemos à pergunta inicial: peso ou leveza? Nem um nem outra! Um e outra! Baltasar Gracián [10] escreveu, em 1647, uma formula que ajuda a resolver a questão: “não levar em conta o que não conta.”

 

Se é assim, a melhor forma de responder a pergunta inicial é: peso (engajamento) com o que conta, leveza (indiferença) com o que não conta. Indiferença em relação às promessas metafísicas das religiões e mercadológicas do capital. Engajamento no amor, na amizade, na arte e na política.


 Notas

 

[1] Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Barueri: Amaralys, 2016.

 

Todos as citações de Lipovetsky estão na obra Da leveza.

 

[2] Milan Kundera define a Primavera de Praga como um “segundo soberbo” no belo ensaio Sobre as duas grandes primaveras e os Škvorecký, ver: Kundera, Milan. Um encontro. Companhia das Letras: São Paulo, 2013. Reproduzo o parágrafo completo:

 

“Ah, os queridos anos 1960. Eu gostava de dizer, então, cinicamente: o regime político ideal é uma ditadura em decomposição; o aparelho opressivo funciona de maneira cada vez mais defeituosa, mas está sempre ali para estimular o espírito crítico e zombeteiro. No verão de 1967, irritados com o congresso corajoso da União dos Escritores e achando que o atrevimento tinha ido longe demais, os chefes do Estado tentaram endurecer sua política. Mas o espírito crítico havia contaminado até o comitê central que, em janeiro de 1968, decidiu que o presidente seria um desconhecido: Alexander Dubcek. A Primavera de Praga começou: hilário, o país recusou o estilo de vida imposto pela Rússia; as fronteiras do Estado foram abertas e todas as organizações sociais (sindicatos, federações, associações), originalmente destinadas a transmitir ao povo a vontade do partido, tornaram-se independentes e se transformaram em instrumentos inesperados de uma democracia inesperada. Nasceu um sistema (sem nenhum projeto preestabelecido, quase por acaso) que foi verdadeiramente sem precedentes: uma economia 100% nacionalizada, uma agricultura nas mãos das cooperativas, nada de pessoas muito ricas, nada de pessoas muito pobres, o ensino e a medicina gratuitos, mas também: o fim do poder da polícia secreta, o fim das perseguições políticas, a liberdade de escrever sem censura e, a partir daí, o desabrochar da literatura, da arte, do pensamento, das revistas. Eu ignoro quais eram as perspectivas de futuro desse sistema; na situação geopolítica de então, certamente nulas; mas numa outra situação geopolítica? Quem pode saber... Em todo caso, esse segundo durante o qual esse sistema existiu, esse segundo foi soberbo.”

 

[3] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Companhia de Bolso: São Paulo, 2011.

 

[4] Por coincidência ou não, assim como no romance de Milan Kundera, Gilles Lipovetsky cita Nietzsche no primeiro parágrafo do livro que escreveu sobre a leveza: “É bom o que é leve; tudo o que é divino se move com pés delicados.”

 

[5] A reflexão sobre as diferenças entre moral e ética, além da sacada de pensar esta última como o bem que se faz por amor ao justo está em: Comte-Sponville, André. O capitalismo é moral? Martins Fontes: São Paulo, 2005.

 

[6] Milan Kundera escreveu A insustentável leveza do ser originalmente em francês, L’insoutenable légèreté de l’être. Por alguma razão difícil de entender, o adjetivo insustentável foi traduzido como insuportável no espanhol, no inglês e até no tcheco, respectivamente: La insoportable levedad del ser, The unbearable lightness of being e Nesnesitelná lehkost bytí. Salvo um possível engano meu, difícil entender a opção por insuportável no espanhol, no inglês e no tcheco, ainda mais sabendo que Kundera acompanha o trabalho dos tradutores. Se a leveza é insustentável, trata-se de um ideal que pode ser buscado, mas difícil de ser mantido sem ultrapassar limites perigosos. Se a leveza é insuportável, a ambiguidade e o mistério da contradição pesado-leve estariam resolvidos no título do romance.  

 

[7] Sobre a arte do romance como uma “sabedoria da incerteza”, ver: Kundera, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

 

Há, em Kundera, algo demasiadamente atraente: ele consegue incomodar a direita e a esquerda (estalinistas, leninista e trotskista com certeza). É um princípio do romancista tcheco: escrever contra todos! Num dos ensaios de Milan Kundera, não lembro exatamente qual, mas aproveito para recomendar todos, ele conta uma história. Já exilado, um jornalista lhe pergunta com insistência, você é de direita ou de esquerda?, ao que o escritor responde sempre da mesma forma: sou romancista! É quando a “sabedoria da incerteza”, própria da arte do romance, se choca com “desejo, inato e indomável, de julgar”e simplificar, acrescento – “antes de compreender.”

 

[8] Para acessar os textos da polêmica clique aqui.

 

[9] Um exemplo e um juízo de valor sobre o peso da criação artística, cito o trecho completo, está em: Sabato, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982:

 

“A condição mais preciosa do criador. O fanatismo. Tem de ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se à sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante se pode fazer.”

 

[10] Gracián, Baltasar. A arte da prudência. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018.

 

Reproduzo o parágrafo resumido na fórmula “não levar em conta o que não conta”:

 

“Enquanto alguns não se importam com nada, outros se importam com tudo. Falam de seus afazeres como se fossem ministros, tomam tudo ao pé da letra e a tudo atribuem características misteriosas. Poucas dessas coisas aborrecidas merecem o nosso cuidado e tomar a peito o que se deve desprezar é insensatez. Muitas coisas que se acreditava serem valiosas nunca chegam a mostrar valor e outras que pareciam nada valer frutificaram como efeito do trabalho aplicado. No início é fácil levar tudo a termo, mas depois não. Muitas vezes o remédio provoca a doença; assim, deixar passar não é a pior das regras.”

 

Publicado originalmente no Passa Palavra

DE MACHADO DE ASSIS A SÉRGIO BIANCHI: A CAUSA SECRETA E O DRAMA DO RATO

Na frente o rótulo declarado, no verso a verdade inconfessável. Ou: a causa secreta. Gouveia levou uma facada e foi socorrido por Fortunato e Garcia, este era estudante de medicina e se apaixonou por Maria Luísa, esta era casada com Fortunato. Garcia passou a frequentar a casa de Fortunato porque amava Maria Luísa. Fortunato era enfermeiro, no rótulo; mas no verso, sentia prazer com a dor alheia, por isso socorreu Gouveia e por isso torturava animais. Fortunato não conheceu o cinema, mas ia ao teatro e redobrava a atenção para apreciar facadas e outras cenas violentas. Hoje, ele teria ereções assistindo telejornais. Garcia era estudante de medicina, no rótulo; mas no verso, era curioso, possuía a faculdade de decompor caracteres e de decifrar os homens, tinha amor pela análise, gostava de penetrar nas camadas morais dos outros, por isso começou a observar Fortunato, que lhe intrigava.

Machado de Assis também possuía a faculdade de decifrar os homens, gostava de penetrar nas camadas morais dos outros, mostrava o verso do rótulo, sentia prazer ao revelar a miséria moral alheia. Por isso escreveu Dom Casmurro, A Causa Secreta... Por isso criou Brás Cubas, Quincas Borba, Simão Bacamarte, Fortunato, Garcia. Foi um escritor genial. Sérgio Bianchi gosta de esfregar o verso do rótulo na cara das pessoas, na cara do Brasil. Por isso costuma meter o dedo e a mão nas feridas do nosso tempo (Fortunato gozaria com essa imagem). Porque gosta de esfregar o verso do rótulo na cara dos outros, Bianchi estabeleceu um diálogo entre seu cinema e a literatura de Machado de Assis. Seu filme Quanto Vale ou é por Quilo dialoga com o conto Pai contra Mãe, A Causa Secreta dialoga com o conto homônimo de Machado de Assis.

Atenção, luz amarela: dizer que um filme dialoga com a literatura não é dizer que ele baseia-se ou é uma adaptação de uma obra literária. Bianchi, que parece ser um sujeito com alguma ousadia, não se limitou a adaptar literatura para o cinema, deu um passo à frente, fez uma experiência de linguagem, dialogou com Machado. Exemplo: enquanto Machado mostra um homem (Fortunato) que tem prazer com a dor alheia, Bianchi retrata homens indiferentes à dor alheia. Nestes tempos pantanosos, qualquer espertinho pode ganhar uma bolada, via edital público, para “simplificar” um texto machadiano. Por outro lado, dialogar com a obra do “bruxo do Cosme Velho”, como fez Bianchi, exige mais do que a fome por vinténs, tão comum aos agregados de Machado e aos simplificadores do nosso tempo. Ironia da história: a simplificadora que “reescreveu” O Alienista, do Machado, com certeza seria internada pelo alienista Simão Bacamarte, do Machado, resta saber se por avareza, indigência intelectual ou as duas coisas.

Outra ironia da história: também Bianchi depende da bufunfa dos editais públicos para tocar seu trabalho. No filme A Causa Secreta um diretor de teatro tenta adaptar o conto A Causa Secreta, mas, para isso, depende da bufunfa dos editais públicos e passa por não poucos apertos para consegui-la. Aqui o filme se afasta do conto machadiano para se aproximar da realidade atual. A ironia mais afiada é sempre aquela que corta o bucho do seu criador, Bianchi vira personagem de si próprio, cineasta na vida real, diretor de teatro no filme. No final da película, depois de todas as críticas aos mecanismos de financiamento, aparecem os créditos do filme: um banco público (depois seria privatizado) e outras instituições.

Voltando ao filme. O diretor de teatro gosta de observar e penetrar nas camadas morais do outros, como Garcia. Por isso e para esfregar o verso do rótulo na cara dos outros, o diretor de teatro faz os atores meterem os pés na realidade pantanosa do país, por exemplo: visitando clínicas e hospitais públicos sucateados. Nessa hora, se vê a mediocridade por baixo do rótulo ator. A mediocridade une o mauricinho de direita ao esquerdista de boteco, que atuam na mesma peça e, por inércia, constroem o país da Casa Grande e da Senzala. Talvez esta seja a fonte da impotência que choca nos filmes de Bianchi, não é o país nem o mundo que são cronicamente inviáveis, é o individuo isolado e amesquinhado que é cronicamente impotente para transformar as coisas. Não é que o país e o mundo sejam cronicamente viáveis, com certeza são mais inviáveis do que viáveis, mas se fossem necessariamente e com certeza inviáveis, Bianchi estaria ganhando dinheiro produzindo versões simplificadas dos livros de Machado de Assis, e não dialogando com o “bruxo do Cosme Velho”, estaria enlatando produtos mais rentáveis e de fácil de digestão, e não rodando filmes indigestos e com pouco apelo comercial. Com seu trabalho, Bianchi mostra, querendo ou não, que acredita no cinema e na arte, e acreditar é o primeiro passo no caminho para criar e transformar. Assim sendo, nem tudo está perdido, nem tudo é cronicamente inviável, mas essa é outra questão.

Dizem os conhecedores da sétima arte que A Causa Secreta deixa a desejar na qualidade técnica: planos mal iluminados e mal enfocados. Mas esse não é foco deste texto, pretendo explorar A Causa Secreta como experiência de linguagem, como diálogo do cinema com a literatura. Uma cena se repete no conto de Machado e no filme de Bianchi: com a mão direita Fortunato segura uma tesoura, com a esquerda um barbante na ponta do qual está amarrado um rato, ele corta uma pata do animal e em seguida o faz descer na direção da chama de uma espiriteira, o rato grita de dor e desespero, Fortunato repete a operação outras três vezes, arrancando as patas do animal e descendo-o na direção da chama com cuidado para não matá-lo, por fim ele corta o focinho do rato e desce o bicho em direção à chama, o animal morre e vira um pedaço de carne cheio de sangue e pelos chamuscados. No conto, Garcia, que gostava de observar as camadas morais escondidas e de decifrar os outros, vê a cena e conclui que Fortunato tem prazer com a dor alheia. O filme não explora essa reflexão de Garcia, talvez porque o cinema não é capaz de penetrar nas camadas morais dos personagens como a literatura, ou, melhor dizendo: o cinema tem mais dificuldade para reproduzir com palavras o pensamento de um personagem, teria que apelar para um narrador, o que nem sempre é funcional. Por outro lado, o cinema com seu poder de imagem e de som, ao mostrar um rato sendo torturado, cria uma cena que é mais forte na tela do que no papel. Parafraseando João Cabral: o rato do filme é mais espesso do que o rato do conto. Neste ponto a experiência de linguagem de Bianchi é interessante, mostra que o cinema é capaz de dialogar de igual para igual com a literatura. Não é pouco.

Surge outra questão. E o rato? É aceitável torturar e matar um animal, ainda que seja um rato, em nome da arte? Conscientemente ou não, Bianchi deixou uma ratoeira no caminho do expectador, que se incomoda mais com o rato do que com os pacientes abandonados nas clínicas e hospitais sucateados, mais com o rato do que com as crianças de rua que aparecem no filme. Um rato é mais espesso do que um homem?


Bianchi é conhecido por seu cinema provocador: A Causa Secreta, Cronicamente Inviável, Quanto Vale ou é por Quilo. Nestes três filmes ele denuncia a acomodação ao sofrimento alheio típica do indivíduo amesquinhado pelo modo capitalista de produção, no mundo do capital a mesquinharia se transformou em colete salva-vidas. É por isso que o cinema de Bianchi choca, ele é um espelho que revela baixezas debaixo das camadas morais dos expectadores. Só por isso já valeria a pena, o diálogo com Machado é ainda mais interessante. Mas… Essas duas coisas justificam a tortura do rato?