entre a fruta podre
e a espinha de peixe

entre o rato
e o arroz azedo

entre a merda
e o papel higiênico

entre o urubu
e a carniça:

uma criança come lixo
e caga chorume

que goteja,
goteja, goteja...

CEILÂNDIA

A garota de programa se aproxima 
quando o sol começa a se despedir
e há nuvens alaranjadas no céu.
Põe música na máquina
e toma uma dose,
que a noite ainda precisa baixar.
Janta peixe frito
(algumas moscam a incomodam).
Crianças brincam na calçada,
um gato atravessa a rua.
Os engraxates conversam
e bebem cerveja.
Os últimos raios de sol ainda iluminam.
Mas a garota de programa está tensa,
o apetite sexual é crescente no país,
é preciso saciá-lo.



Ceilândia foi fundada em 1971, a partir da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que removeu pobres que moravam em áreas nobres de Brasília.

AUTO-DE-FÉ


Domo renascentista,
catedral neogótica,
no centro da cidade.

As torres e os vitrais,
os ângulos e o sino,
comunicam a graça.

O conforto dos bancos
e a força das imagens
redimem pecadores.

A dureza do mármore
convida à penitência
e ao arrependimento.

Música brota do órgão,
pelos doze mil tubos
(todos italianos).

Melodia dos foles
ecoa na rosácea,
penetra os penitentes.

O dourado retábulo
espelha o criador,
sua grandeza e poder.

Mas na praça defronte
dorme o povo de Deus:
em camas de jornal.


PASSAGEM

as palavras estão enterradas
mas se movem
se agrupam
penetram a rocha
e fluem

um rio de palavras corre
sereno

pelo leito de pedra
desce a palavra vida
fugaz
veloz

a palavra juventude
passa

a palavre tempo
corta

a palavra fogo arde
no rio
e passa

apanho a palavra água
ergo-a

mas ela deságua
escorre
e flui