PULSAÇÃO

No peito a pontada.
No ser o estampido.
No coração a vala.
No passado o fosso.
No nervo a agulha.
No querer o bloqueio.
No futuro a torção.
No jardim o asfalto.
No sonho a queda.

Na mão o corte.
Na boca a secura.
Na infância o trauma.
Na manhã a aflição.
Na carne o espinho.

Depois do tédio a náusea.
Depois do sono o aperto.
Depois do tranco a ânsia.
Depois do depois o mesmo.


Edvard Munch: O Grito (1893)



DIALÉTICA SINTÉTICA DA POÉTICA DRUMMONDIANA

Em sua procura da poesia, Drummond registra: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. O complemento é: “Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos.”

Deslocamento intrigante. A poesia não está no que pensas e sentes, mas sim em como expressas o que pensas e sentes, depende das palavras utilizadas. Questionamento inevitável. Sentimentos banais expressos com palavras e construções inusitadas podem compor poemas que “esperam ser escritos”? Talvez. Pode ser o caso da pedra no meio do caminho.

Voltando. Poemas podem nascer de parto normal: de acontecimentos, fatos e imagens. Mas as carnes e os ossos do poema são as palavras. Se estas não forem apropriadas, o poema será burocrático ou cartorial.

O poeta, com suas palavras e demais recursos, fecunda os acontecimentos, fatos e imagens. Nem a poesia pode prescindir do real, nem este é em si poético. A beleza do real é mais direta, com menos mediações.

Expressar algo em versos é poesia, ainda que não seja boa poesia, se não fosse assim não existiriam poemas ruins. Então, bom poeta é aquele que faz mediações (e não média) com as palavras.

A poesia não está em sentimentos, ideias, fatos e acontecimentos. A poesia está na forma de expressar sentimentos, ideias, fatos e acontecimentos. Forma pode ser conteúdo: palavras e construções que guiem por becos desconhecidos, uma pedra marchando para o meio do caminho.

Há poemas paridos a partir de palavras colhidas no reino das palavras. Pode ser tempo, fogo, ferro ou qualquer outra (as mais espessas, as minerais são preferíveis, diria João Cabral). Grávido de palavras, o poeta dá o poema à luz, ou à escuridão, que o importante é dar. A palavra é sempre a pedra no meio do caminho. Com a palavra pedra no meio do caminho, o poeta escreveu o poema No Meio do Caminho.

Por exemplo. Drummond apanha a palavra flor, que é portadora de forte carga poética e simbólica. Relaciona flor com outras palavras: concreto, asfalto, polícia e tráfego, que são suas antíteses. Trabalha como um artesão ou um jardineiro, modela palavras como se fossem vasos, ou plantas no vaso. O manuseio vai revelando sentidos ocultos que existem apenas como possibilidade e inquietação. O resultado final não é planejado com a antecedência e a precisão do artesão ou do jardineiro. Poesia é quando as palavras oferecem a outra face, que “cada uma tem mil faces secretas sobre a face neutra”.

Com Drummond, a flor nasce na rua, e ilude a polícia. É feia, antiparnasiana, mas é uma flor, e rompe o asfalto. O belo não está na flor, “sua cor não se percebe, suas pétalas não se abrem.” Como queria Mário de Andrade, o belo está na deformação do real: na flor furando o asfalto. Efeito que nasce do atrito das palavras, como o fogo nasce do atrito de gravetos. O poeta bate a flor no asfalto, até rompê-lo. O poema é anárquico, sem governo: uma explosão de possibilidades e inquietações. O poeta fecunda o real com seu material genético: precariamente, sem esperança e sem opção.


Postas no papel e atritadas as palavras percorrem veredas improváveis, fogem do controle, escapam como bicho solto na natureza. O sentido do poema não está colocado com antecedência e às vezes ultrapassa o próprio autor, se não fosse assim, seria inútil, mais do mesmo. O sentido do poema não está colocado definitivamente, que o tempo e a vida presente são a matéria do poeta, e as palavras “rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.” A poética drummondiana é anarquia e atrito.
Era uma vez um menino,
que não comia frutas
e fugia da escola.

Anjos, assombrações,
espíritos, igrejas,
pecados, Deus.
Era um medo tão suave.

Era uma vez um menino,
que brincava na rua
e espiava as primas.

Avô, avó, pipa,
carrinho de rolimã,
bola, quitanda.
Era tudo tão doce.

Eram tantos desejos.
Eram tantos sonhos.
Era uma vez.

Vicent van Gogh: Casas em Auvers



AMANDA

Água brota da rocha,
desce pura e clara,
contorna as pedras,
procura o riacho
e escorre suave.
Banha o terreno,
refresca os bichos,
as flores.
Da rosa amarela
salta uma borboleta
(também amarela)
que vai ziguezagueando
sobre as margens,
sobre as águas.
Atrás da borboleta
vai uma garotinha
pisando a grama,
descalça.
Corre e sorri
com dentinhos brancos,
de leite.