Confaburlando

Claude Oscar Monet:
A ponte de Waterloo (1903)
Um escritor pouco anterior ao nosso tempo registrou que só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Quem se mata afirma que a vida não vale a pena, e o contrário é verdadeiro. Do ponto de vista do indivíduo isolado é isso.
As coisas se complicam quando uns julgam os outros. O suicídio não costuma ser endossado: um “era isso mesmo que ele devia fazer” dito ao lado do caixão do morto. Em alguma medida, matar-se é condenar toda a vida, impondo um julgamento duro: viver não vale a pena. Nenhuma religião suporta esta crítica. Quem abre mão da vida recusa o criador, que não pode aceitar tamanha rebeldia. Não há remissão para o suicida. A ditadura da criação se impõe sobre a criatura. Desnecessário dizer que, se o criador legitimasse a autodestruição, o gesto definitivo perderia seu caráter subversivo, se inscreveria na ordem.
Imagino um filho enforcado na residência familiar, o cadáver suspenso é uma condenação coletiva. Todos ficarão marcados pelo ferro e pelo fogo do questionamento: “o que houve? Por que ele fez isso?” O morto leva consigo parte família. Criador e família não encaram o auto-extermínio de um filho da mesma maneira; a segunda se condena, o primeiro condena o filho.
Se a vida de um homem pudesse ser representada por um gráfico, ele se mataria quando a linha da felicidade fosse ultrapassada pelo sofrimento. Mas sabemos que a vida é escrita com linhas tortas, felicidade e sofrimento se alternando no tempo. O peso da decisão decorre da irrevogabilidade do gesto definitivo.
Num mundo essencialmente provisório, os gestos definitivos são carregados de beleza exatamente pelo contraste que estabelecem. Quem galopa voluntariamente no lombo da morte toma as rédeas do destino. Fixa um valor na negação que estabelece.
Se desarmado de metafísicas e reivindicações, o suicídio é um tapa na cara dos vivos. Ato afirmativo na destruição. Salto do topo do arco-íris, tão belo quanto provocativo.
JC

Confabulindo...

Ilustração de Zenilton
de Jesus Gayoso Miranda

  

Fim e começo. Rio e mar. Limite e horizonte. Passado, presente, futuro. Nem passado, nem presente, nem futuro. Amálgama. Encontro de forma e conteúdo. Não pode ser efêmero o que não é mensurável. O coito é o mais transcendente dos atos. Funde o sujeito no objeto e este naquele. Uterinamente. Prescinde das palavras. Estabelece comunicação pela pele, pela boca, pelo hálito, pelo sexo, pelos pêlos. Urubu se diluindo na noite escura. Fusão da parte no todo. Dissolução do todo na parte.


O poema nasce da interrupção do coito do homem com a vida. Do sentido ejaculado fora da realidade. Rio canalizado. Elo rompido. O poeta é um garimpeiro. Escava o absurdo em busca da unidade, e fracassa. Quer a comunicação total, mas está contido pelas palavras.     

Mínimas


- Nada é para sempre, nem a tristeza.


- A punheta é o amortecedor da civilização.


- A filosofia é a exata medida da imprecisão das coisas.


- Cervejas são amantes, ressacas são esposas.


- Abaixo o amor em conserva: com selo de procedência, contrato de aceitação e data de validade.


- A arte é um reflexo do real que passa pelo tubo digestivo do artista.


- Quando eu morrer me enterrem na ponta-esquerda.


- O suicídio é um tapa na cara dos vivos.


- Pornografia é sexo sem poesia.

“Faça como um velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”

Prelúdio: um samba curto.
Pretendia encerrar minha participação com meu penúltimo texto, mas sua resposta coloca diversas interrogações. E mais, percebo que a forma diálogo arrasta meu pensamento capenga para além do ponto em que ele chegaria com suas muletas. Por outro lado, essas polêmicas são cansativas. Os textos vão se multiplicando e as respostas exigem leituras cada vez mais longas. Ao esforço de compreender o outro, soma-se a necessidade de se fazer entender. Enfim, assumo o compromisso de ler e publicar os textos que receber, mas não sei se responderei.
Ninguém faz samba só porque prefere é um título aberto que permite várias leituras. Considerei esse risco, mas decidi manter o verso.  A mensagem era que minha posição política está respaldada num esboço de teoria. O verso vem vindo e vem vindo uma melodia que derivam de uma práxis. Tentei refutar argumentos com argumentos, mas se meu samba saiu descompassado é sinal de que a comunicação não se estabeleceu.  Não me oponho a Kundera e a ti porque vocês colocam pedras no caminho da esquerda, não lhes rotulo e me esquivo do combate, jogando para fora das bordas do pensamento o que não quero enfrentar. No espelho essa cara não é minha. A questão é que discordo dos argumentos.
Sobre o embate direto, sem problemas para mim. Ao empregar a primeira pessoa manifesto meu consentimento com seu procedimento. Quanto ao compromisso ético e ao engajamento, enxergo-os como escolha e não como exigência. Por isso não creio que compromisso ético e engajamento ocupem o trono de Cristo como redentor do pecado original. Pela mesma razão fecho incondicionalmente com a Rosa Vermelha: a liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente. É liberdade de crítica. Mas observe, não se trata de fazer um combate às suas ideias simplesmente porque elas negam as minhas, ou algo do tipo, meu pensamento, ainda que manco, não seria tão primário. Se contesto é porque não aceito argumento, falta-lhe um pandeiro, um tamborim.
Samba de uma nota só, ou samba do subsolo, ou samba da volta (do kitsch)
O remate ou epílogo das duas lágrimas derramadas pelo kitsch poderia ser o último verso do Samba da volta: eu te amo e Deus é mais. Retomando a citação do Kundera: A primeira lágrima diz: Como é bonito crianças correndo num gramado! A segunda lágrima diz: Como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado! Somente essa segunda lágrima faz o kitsch ser o kitsch. A fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch.
Se aspiramos à liberdade e ao pensamento sem fronteiras, por que parar na segunda lágrima? E as demais? A terceira lágrima (derramada pelo homem do subsolo) diz: Como é feia e absurda a humanidade, os rebanhos... A lágrima seguinte afirma: Como é bonito se emocionar com a feiura total e o absurdo da vida. É o samba da volta do kitsch, as lágrimas três e quatro são siamesas das duas primeiras. Dois mais dois da quatro, da kitsch. Inverter o fenômeno não significa ultrapassá-lo. Tanto é assim que o homem do subsolo não se redime sozinho, precisa respaldar suas certezas em terceiros, só não percebe que esta fraternidade também se baseia no kitsch e na ditadura do coração.  A emoção compartilhada, como atributo sentimental, prescinde do espírito crítico. O que importa é o reconhecimento mútuo.
Se nosso método é o dialético, sabemos que devemos avançar da antítese para a síntese. Quem estacionar na antítese será atropelado.
Outras lágrimas
Se nosso método é o dialético. Se realmente aspiramos à liberdade e ao pensamento sem fronteiras, por que parar no samba da volta do kitsch? Por que parar no samba do homem do subsolo?
Entre outras possibilidades, a negação da merda pela esquerda se expressa numa concepção hollywoodianamente tacanha. A quinta lágrima diz: como é bonito, as condições objetivas para revolução estão dadas. A sexta lágrima lamenta: se não fosse a crise de direção... Expressa no Programa de Transição, em 1938, a ideia de crise de direção é ponte de safena nos corações de não poucos esquerdistas, especialmente das seitas trotskistas.
A sexta lágrima afoga a dialética, separa mecanicamente as condições objetivas das subjetivas. Arranca o volante do painel do automóvel. Como se os dirigentes da classe não fossem expressão da própria, como se as direções do movimento e a própria classe não sofressem a ação da realidade material. O kitsch de esquerda enxerga o mundo em termos de bem e mal, a traição de uns poucos freia a revolução. Em hollywood o mocinho salva o mundo no final, para as seitas de esquerda um punhado de traidores impede a redenção. Se a luta de classes é motor da história, a traição do indivíduo é o freio.
Pensei que sua crítica trilharia a vereda da sexta lágrima. Não foi o caso, mas resolvi comentar.
Sobre pesos e medidas, ou sobrepeso da unilateralidade
Qualquer um pode utilizar expressões como cortina de ferro e socialismo real, sem problemas. A liberdade é sempre liberdade para o que pensa diferente. Pelo mesmo critério, se penso diferente, estou autorizado a discordar, mas, ocorre que, minha opinião é definida como patrulha ideológica. Assim, é complicado estabelecer qualquer interlocução. Sua crítica brota das instâncias do pensamento livre de mordaças e combate meu cérebro instrumentalizado, minha crítica é rotulada como patrulha ideológica e depois banida.
Huxley dizia que a manipulação está mais na verdade omitida do que na mentira contada. A expressão cortina de ferro esconde as imundícies da democracia burguesa e do capitalismo, como se contradições só existissem do outro lado. Lembremos que trata-se de uma definição fixada por Churchill durante a Guerra Fria. Socialismo real é uma expressão que estabelece os regimes degenerados do leste europeu como limite insuperável. Sabemos que o socialismo de Marx e tantos outros não têm nada a ver com isso.  Socialismo real esvazia o horizonte político, como se os regimes do leste europeu fossem a única alternativa ao capitalismo, trata-se de uma expressão utilizada inicialmente pela burocracia contra as críticas de esquerda, depois seu emprego generalizou-se nos meios reacionários.
Definições e expressões são perigosas. Se não mudam diretamente a vida, reforçam determinadas ideologias, atuando dessa forma sobre o real. Quem emprega uma expressão ou definição afirma seu conteúdo ideológico, não tem como ser diferente. Qualquer um pode empregar a definição que quiser, mas não pode dizer que não está reforçando as ideologias embutidas na sua linguagem. Negar que expressões e definições são portadoras de ideologia é ser ideológico (no sentido de falseamento da realidade), é cômoda a postura que se exime da responsabilidade por sua própria linguagem. Não há maneira de não tomar partido, nossa linguagem já nos posiciona, especialmente se conhecemos seu conteúdo ideológico.
Peso e leveza podem ser analisados também por essa perspectiva. Dispenso a leveza que reforça a ideologia dominante através de suas expressões e definições, prefiro o peso de analisar o conteúdo ideológico da linguagem. Se concordamos que a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente, considero-me autorizado a criticar.
O método dialético ensina que azul e verde são cores diferentes, mas que há matizes intermediários em que é difícil determinar onde acaba o azul e começa o verde. Utilizemos o mesmo exemplo colocando revolucionário e reacionário no lugar das cores. É difícil definir em que ponto aquele se transforma neste. A despreocupação com o uso ideológico da linguagem é um indício.
A terceira trincheira: Camus x Sartre
Na guerra do proletariado contra burguesia não há três trincheiras, existem diversas frentes de batalha, mas não há três trincheiras, ou se está de um lado, ou do outro, ou nos matizes intermediários, oscilando. Exemplificando. A história da amizade e da ruptura de Sartre e Camus esteve muito ligada à batalha de ambos por criar uma terceira via, ou terceira trincheira, ou outra frente de batalha. Eles não se reconheciam nem no capitalismo, nem nos partidos comunistas. Sartre foi um burguês talentoso que se engajou na luta política (contra sua classe social) na época da resistência aos nazistas, tinha quase 40 anos. Camus foi um filho de uma lavadeira argelina que entrou no partido comunista aos vinte e poucos anos, sendo expulso posteriormente por discordar da linha política do PC.
Camus e Sartre se conheceram nos anos 1940. Havia grande proximidade intelectual entre ambos. A Náusea tem algo de O Estrangeiro, e o inverso é verdadeiro. O espírito do tempo perpassa as duas obras, ainda que escritas de forma independente.
Os dois homens resistiram como puderam à ocupação nazista. Camus lutou mais diretamente, sua experiência política anterior possibilitou que ele escrevesse editoriais para o jornal Combat. A palavra de ordem camusiana contra a ocupação era: da resistência à revolução. Nos anos de resistência Camus influenciou Sartre, a filosofia deste afastou-se do indivíduo aproximando-se das classes sociais.
Após a expulsão dos nazistas, Camus e Sartre se esforçaram para criar uma frente de batalha de esquerda independente do PC francês, mas fracassaram. Sartre passou a cobrar cada vez mais engajamento e aproximação em relação à classe operária. Camus se entrincheirou no indivíduo, separou revolta de revolução e chegou a associar comunismo e assassinato. Sartre se alistou na outra trincheira, pelejou contra os anticomunistas, que era como ele passou a enxergar Camus. No início dos anos 1950, as publicações de O homem revoltado (Camus) e O diabo e bom Deus (Sartre) determinaram a ruptura.
Da mesma forma que há matizes intermediários entre o verde o azul, também há entre Sartre e Camus. Como no samba do Paulinho, a razão está sempre com os dois lados. E aqui não interessa saber quem estava mais correto. A questão é outra. Citei a polêmica de Sartre e Camus para mostrar que ambos acabaram se aproximando das trincheiras que a princípio rechaçavam: anticomunistas (Camus) e comunistas (Sartre).
No limite, Camus e Sartre foram para lados opostos. O divisor de águas foi a questão da violência revolucionária. Camus se recusou a aceitar a legitimação intelectual da violência, ainda que esta fosse inevitável na prática. Ao legitimar a violência, a revolução prescinde da revolta, daí a associação camusiana entre comunismo e assassinato. Camus sabia que revolta e revolução recorreriam à violência, mas afirmava que justificar esta intelectualmente significaria corromper qualquer possibilidade de transformação. Sartre legitimou a violência proletária porque a entendia como resposta contra a violência da sociedade de classes. Camus se aproximou dos anticomunistas, Sartre dos comunistas. Se alistaram em trincheiras opostas e romperam a amizade.
Não vivemos um momento tão agudo da luta de classes como a guerra fria. Atualmente é ainda mais difícil identificar onde acaba o azul e começa o verde, mas as partes em guerra são as mesmas: burguesia e proletariado. No campo dos pensamentos e ideias, queiramos ou não, acabamos nos alistando de um lado ou de outro. Vale lembrar que, se por enquanto nossos posicionamentos se limitam aos campos de batalha intelectual, nada garante que a história não nos empurrará para trincheiras reais. Ao escolher definições e expressões estamos definindo nosso campo e nossa trincheira. Nossa forma de enxergar a política e a história também sinalizam nosso campo e nossa trincheira.
Homens do porte de Sartre e Camus não conseguiram erguer barricadas independentes, foram atraídos pelas forças em luta. Este risco continua atual, para um lado e para o outro.
A firma de Tomas
A passagem em que Tomas é coagido a se retratar publicamente é das mais belas. A história registra dilemas semelhantes. Galileu abriu mão de uma verdade científica importante quando esta lhe ameaçou a vida. Entre uma forma de retratação e a cicuta, Sócrates escolheu a última. Colocado no meio do caminho entre se desdizer e ser transformado em trabalhador braçal, Tomas manteve o que havia escrito, avaliou que sua palavra valia mais que a carreira médica.
Discutir situações limites em termos de tomar parte ou não na existência social dá margem a confusões, inclusive porque o conceito não está definido. Prefiro responder em outros termos. Não imagino um homem indiferente entre assinar ou não, isto sim é uma recusa metafísica à vida real. Se assinar ou não uma retração não carrega em si nenhum valor, caminhamos pelas trilhas torturantes da insuportável leveza do ser: capitular ou não, torturar ou não, trair ou não, sovietes ou fascismo... tanto faz! A situação cobrou tomada de posição, o vazio da indiferença é mais cruel do que peso de escolha, ainda que Tomas decidisse assinar. Se a indiferença é total, ser ou não ser, não é a questão, tanto faz: eis a insuportável leveza. Se existisse, a indiferença total seria a anulação do ser. Tomo partido, logo existo. Existo, logo tomo partido. Ou como quer Camus: Me revolto, logo existo. No reino da leveza total tudo tem exatamente o mesmo valor: viver ou morrer, matar-se ou não... tanto faz! Na balança da leveza vida e morte têm o mesmo peso. Se fosse possível escolher a leveza total, a primeira consequência seria a anulação de todas as escolhas posteriores. Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? No reino da leveza total Hamlet seria indiferente. No reino da leveza total a palavra de um homem e sua carreira profissional têm exatamente o mesmo valor, ou melhor, ambas não têm nenhum valor.
De longe é tudo mais fácil. Mas nem toda carne se trai na tortura. Sócrates e Tomas não se traíram, pelo contrário, assumiram consequências. Por outro lado, seria especulação barata e leviana dizer que um tipo de homem é mais propenso a capitular, se passei essa impressão, desconsidere. Quis dizer que o mundo feio e kitsch forçou Tomas a tomar uma decisão pesada, como se a leveza dele fosse colocada em xeque, daí a insustentabilidade da leveza. Enfim, essa era a minha leitura. Depois passei a analisar a questão em outros termos. Tomas é fascinante e apaixona. Kundera até pode permitir um gracejo na lápide de Tomas: desejava o reino de Deus sobre a terra. Mas não permitiria uma capitulação de um personagem tão apaixonante. É uma possibilidade.
Pequenos parênteses. Não consigo imaginar Tomas se retratando. Por que será? Seria isso um kitsch? Não deixa de ser uma forma de negar a merda, ou mais precisamente, de negar a possibilidade de capitulação de um ser fascinante.  
Democracia operária x democracia burguesa
Conceituando, ou tentando conceituar. Democracia burguesa é o que vemos no dia a dia, um regime de imundice, uma plutocracia, ou putocracia. O dinheiro financiando (comprando) tudo, do judiciário ao parlamento, dos corpos aos espíritos. Democracia burguesa é uma mera formalidade que o capital não hesita em varrer do mapa sempre que seus interesses são contrariados: Allende, Goulart, Chavez etc.
A democracia operária existiu na história por breves períodos. Os sovietes russos logo foram esvaziados e subjugados pelo Estado. Os mesmo ocorreu com os conselhos de operários húngaros, italianos, alemães e outros. Os povos auto-organizados da Espanha e da Comuna de Paris também foram submetidos.
Um dos ensinamentos do século XX é que as revoluções ou serão totais, ou não serão. Os sovietes (conselhos) e a auto-organização popular foram experiências radicais de negação do capital.  István Mészáros foi um dos que perceberam que derrotar o capitalismo não significa necessariamente ultrapassar o capital, este último entendido como ditadura dos meios de produção e do tecnicismo produtivista. Não basta expropriar os meios de produção, trata-se de avaliar o que fazer com eles. Este último passo as revoluções não puderam dar. Cercada, a URSS foi obrigada a entrar numa corrida produtivista suicida, o desenvolvimento das suas forças produtivas significou a manutenção da exploração de trabalhadores e camponeses, que continuaram alienados das decisões produtivas.
Uma sutileza costuma escapar quando analisamos a famosa máxima de Marx: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios. Os sovietes apontam exatamente nessa direção, lembremos que estes eram conselhos de operários, camponeses e até soldados, envolviam vários partidos e organizações, dos bolcheviques aos socialistas revolucionários. A primeira aparição dos sovietes russos foi em 1905, a segunda em 1917. A revolução russa de 1917 começou em fevereiro, derrubou o czar, e teve caráter burguês. Quando esta primeira fase mostrou seus limites, diminuiu a influência dos mencheviques e demais forças nos conselhos, os bolcheviques ampliaram seu poder, Lenin formulou a máxima todo poder aos sovietes. Em outubro o proletariado russo tomou o poder. Um dos limites da revolução foi a estatização e o esvaziamento do poder soviético que aconteceria depois. A formulação de Trotsky é precisa: primeiro, o partido substituiu o proletariado; depois, o comitê central substituiu o partido; finalmente, um ditador substituiu o comitê central.
 Voltando a Marx. A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios ou dos partidos dos próprios? Análises superficiais da revolução russa e seus desdobramentos tenderam a reforçar esta última possibilidade, e isso é um problema sério. Para mim, a revolução russa é muito mais uma revolução soviética do que bolchevique. Talvez ela existisse sem estes, mas não existiria sem seus conselhos de operários, soldados e camponeses. Ocorre que, depois da consolidação dos bolcheviques, o marxismo tendeu a ser marcado com o ferro e o fogo do leninismo. Não é difícil encontrar máximas autoritárias de Lenin. Mas não se trata de condenar um homem para justificar a derrota da revolução, afogando o materialismo histórico na lágrima kitsch. A questão é analisar que condições materiais derrotaram o processo russo.
Outro ensinamento do século XX é que o capitalismo é insuperável em termos de produtividade, não é por essa via que ele será ultrapassado, a não ser que se invente um modo de produção ainda mais explorador. O capitalismo continua desenvolvendo as forças produtivas: biotecnologia, microeletrônica, internet etc. A desgraça é que as forças produtivas se desenvolvem continuamente destruindo o planeta e os homens, ampliando a exploração e a alienação. A única possibilidade de redenção é a velha regrinha dialética da transformação da quantidade em qualidade, que só pode se expressar no controle dos produtores sobre a produção. Contrapondo Camus, este é o problema filosófico realmente sério: O quê? Quanto? Para quem produzir? Sob o capitalismo os homens são transformados em personificações (burgueses) e engrenagens (proletários) do capital. A valorização do valor se impõe sobre todos. A única forma de romper esse mecanismo é submetendo a produção aos produtores. Voltando a Marx: de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidades.
Não se trata de aprofundar o debate sobre os sovietes, conselhos etc., mas de mostrar que massas, partidos e organizações políticas tem potencialidade positiva também, não são meros produtores de kitsch. Pode haver kitsch nos sovietes e nas revoluções? Claro, mas encerrar a análise nesse ponto é inaceitável, é uma postura ideológica que tenta tapar o essencial com o secundário. A manipulação ideológica costuma estar na verdade omitida e não na mentira contada. O risco do Kitsch é real, mas estacionar a análise neste ponto é ideologia, falta de visão, falseamento de realidade. É neste sentido que crítico seu pensamento, menos pelo que ele afirma e mais pelo que ele omite.  Novamente: não nego que o kitsch seja um problema, nego que ele seja o elemento determinante. Então, não chamo de reacionário todo aquele que profere qualquer pensamento que caia como uma luva para a direita, chamo de reacionário o pensamento parcial que não ultrapassa o fenômeno, e que torna-se apologético exatamente por isso.
Minhas críticas são políticas e não morais. Desconheço qualquer tentativa de provar que o socialismo é inviável via kitsch, ainda que este seja realmente uma pedra a ser retirada do caminho. Os limites do socialismo e dos processos históricos concretos devem ser buscados na realidade material. É possível imaginar produção sem alienação e sob controle dos próprios trabalhadores? Ou o processo de divisão do trabalho é essencialmente alienante? É neste sentido que afirmo que a generalização do argumento kunderiano despolitiza, a questão não é o que ele diz, é o que ele deixa de dizer. Concordo que uma crítica política profunda pode conter, em última instância, a possibilidade de “excluir o campo político das possibilidades”. Mas não se chega a tanto via kitsch, muito pelo contrário. De qualquer forma, a crítica deve ser autotélica.
O próprio Kundera sugere uma das vias de superação do kitsch: Numa sociedade em que coexistem diversas correntes e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, ainda é possível escapar mais ou menos à inquisição do kitsch. Mas nos lugares em que um só movimento político detém todo o poder, todos se encontram sem escapatória no reino do kitsch totalitário. Kundera parece pensar em termos de parlamentos burgueses, mas o critério é válido para a democracia operária: o kitsch se enfraquece à medida que as diversas forças e tendências tenham possibilidade de se manifestar. É neste sentido que afirmei que somente a politização é capaz de rebater o kitsch.
O kitsch e as teses sobre Feuerbach
Pequena digressão confabulatória. Realmente a forma diálogo, embate direto, permite a ampliação de perspectivas, isso quando ultrapassamos o vício de rotular para depois destruir a garrafa, sem compreender os argumentos do interlocutor.  Compartilhando uma intuição: o kitsch é parente de fenômenos com a religião e a auto-ajuda. São filhos dos mesmos pais. Soluções imaginárias para contradições reais. Concordo que a exposição exaustiva do kitsch não tem a ver com um romance, apenas contesto a exportação e a generalização do argumento para além da literatura. Tese nº 8 de Marx contra Feuerbach: Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis. Considerando que o kitsch é um misticismo mistificador, qual é a sua base material? Que práxis lhe sustenta? É neste sentido que não enxergo explicação para o kitsch. Falta a base material de sustentação do fenômeno. E o pior, como a base material e histórica do fenômeno não é apontada, tende-se a generalizá-lo, eternizando-o e supervalorizando-o.
O kitsch é uma pedra no caminho da revolução, como a auto-ajuda e as religiões. Mas creio que nem um nem as outras sejam limitações absolutas, muito pelo contrário.  Desconheço qualquer tentativa de inviabilizar a revolução via kitsch, trilhar esse caminho é tapar o essencial com o secundário. O materialismo histórico parte da realidade material para as ideias, generalizar e supervalorizar o fenômeno kitsch significa inverter este caminho, caminhando das ideias para a realidade material.
Tese nº 7 de Marx: Feuerbach não vê que o próprio "sentimento religioso" é um produto social e que o indivíduo abstrato que analisa pertence na realidade a uma determinada forma de sociedade. Troquemos Feuerbach por Kundera (ou quem generaliza o argumento literário deste) e sentimento religioso por kitsch, ao generalizar o fenômeno perde-se de vista que ele pertence a uma determinada forma de sociedade. O fundamental é historicizar o debate. Quais partidos? Que esquerda? Em qual contexto político, econômico etc.? O desafio não é pequeno: historicizar o debate sem abrir mão do recurso dialético de compreender matizes e movimentos conceituais. Daí minha afirmação de que o acordo categórico com o ser é o arranjo estético-filosófico das épocas reacionárias. Claro que não é só isso, e claro que também é isso, para mim a verdade está mais nesta última sentença do que na primeira. Exemplificando para tentar clarear. As épocas de transformação são essencialmente de desacordo com o estabelecido, o que reflete nas artes e na estética. O acordo categórico com o ser é a estética da manutenção e do estabelecido, por isso a afirmação de que o kitsch se fortalece nesses contextos. Ou seja, o kitsch é muito mais comum nas épocas reacionárias do que nas revolucionárias, o que não significa que ele não esteja presente nestas últimas.
Está claro que não será a crítica esclarecida que eliminará o kitsch, ainda que possa obter avanços parciais e não deva se furtar do combate. Marx afirma que a religião só será ultrapassada quando forem superadas as contradições reais que lhe sustentam, o mesmo vale para o kitsch. Ou seja, kitsch, religião e outras pragas são fenômenos históricos e não barreiras intransponíveis.
De Camus a Kundera, de Franz a Iakov
A reflexão de Camus foi do suicídio (Mito de Sísifo) ao assassinato (O homem revoltado), de Mersault (O estranheiro) ao Dr. Rieux (A peste). Começou recusando o suicídio para depois recusar o assassinato, o que lhe causou não poucos problemas. Se Deus não existe, se tudo é permitido, se a vida não tem qualquer sentido; nada impede o assassinato. Camus se debate nesse impasse, tenta partir do absurdo para o concreto. Avalia que, se abriu mão do suicídio, teria que condenar totalmente o assassinato, pelo menos intelectualmente. Começa assim a estabelecer valores absurdos, ou a partir do absurdo. O homem revoltado é dilacerado pela necessidade recorrer à violência que condena. 
A insustentável leveza do ser tem parentesco com o absurdo, mas enquanto este é um porto do qual se deve partir, a primeira é um estado que se atinge. Camus também iguala o mais nobre dos dramas ao mais trivial dos acontecimentos, mas não para nesse ponto, tenta se orientar a partir da constatação. A insustentável leveza do ser é, ela própria, uma constatação, um estado de espírito intermitente, se fosse perene esvaziaria (desmaterializaria) o ser. Se a leveza é total, ser ou não ser, não é a questão, o ser sem peso já não é mais nada, a escolha não é possível. O homem revoltado está um passo à frente, não é absolutamente indiferente, forjou valores, recusou o suicídio e o assassinato, começou a mover-se no absurdo.  Por outro lado, a leveza insustentável se apresenta como limite. Kundera quer nos fazer crer que Iakov se matou por leveza, como se o filho de Estalin tivesse percebido que o nobre e o vil são uma só e única coisa. Fosse isso, teria sido um suicídio filosófico, a única morte metafísica em meio à tolice universal da guerra. O efeito literário e o jogo de palavras são interessantes: o filho do Estalin morreu por uma questão de merda.
Mas o que é uma questão de merda? Teria sido metafísica a morte de Iakov? Não creio. Maldição e privilégio não são a mesma coisa, inclusive porque se fossem Iakov seria indiferente entre uma e outra. Matar-se ou não seria igualmente uma só e mesma coisa, o filho de Estalin poderia suicidar-se ou não, se escolheu a primeira opção foi porque a considerou superior à segunda. Quem se mata afirma sua preferência pela morte. Se é assim, nem tudo é a mesma coisa, vida e morte têm pesos distintos. Recomeçamos a estabelecer valores. Não foi a falta de diferença entre maldição e privilégio que fez o filho do Estalin se matar, foi exatamente o contrário, lançado do privilégio para a maldição, Iakov lançou-se na cerca elétrica. Se não existisse diferença entre o nobre e o vil, também não existiria entre latrina de merda e cerca elétrica, Iakov se mataria ou não. Ser ou não ser volta a ser uma questão.
Franz pensou em colocar sua vida na balança para provar que a Grande Marcha pesava mais que a merda, seria uma morte muito mais metafísica que a de Iakov. Mas Kundera não levaria Franz tão longe: Em vez de se deixar matar, Franz baixou a cabeça e voltou com os outros, em fila indiana, para o ônibus. De qualquer forma, quem tem uma razão para morrer provavelmente teve outra para viver. Recomeçamos a caminhada pela estrada pedregosa dos valores absurdos.
Camus: Antes, a questão era descobrir se a vida precisava ter algum significado para ser vivida. Agora, ao contrário, ficou evidente que ela será vivida melhor se não tiver significado. Kundera (do livro A arte do romance): Mas se deus foi embora e o homem não é mais o senhor, quem é o senhor? O planeta caminha no vazio sem nenhum senhor. Eis a insustentável leveza do ser. Enquanto Kundera atola no vazio, Camus avança: prefere um mundo sem senhores.
Esboço de conclusão
A exportação da ideia kunderiana de kitsch para além da literatura apresenta dois pontos fracos. Primeiro: não mede a importância real do fenômeno na realidade, em si e comparativamente. O problema existe, mas não é significativo a ponto de inviabilizar a transformação social. Não é o kitsch que explica a continuidade da exploração do homem pelo homem, é a continuidade da exploração do homem pelo homem que explica o kitsch. É preciso entender o fenômeno através de contradições reais, não o contrário. Enxergar somente o kitsch nas organizações e partidos é unilateralidade, despolitiza na exata medida em se fixa na negatividade, é por isso um procedimento ideológico. O segundo ponto fraco da generalização do argumento de Kundera é a falta de historicidade. Prescinde-se do conteúdo histórico do fenômeno, eternizando-o, como se o problema não fosse determinado por contradições historicamente determinadas.
A exportação das ideias kunderianas despolitiza não porque ataca as possibilidades de transformação social, despolitiza por seu conteúdo de unilateralidade e mistificação, pelo que esconde.
Concluir que não há valores para além da vida (porque não há nada depois dela), não significa que os valores dos vivos devam ser relativizados. Como se, a partir do reino dos mortos, julgássemos os vivos. Se não igualamos tudo: tortura e resistência, fascismo e revolução proletária, capitulação e luta, sovietes e gulags, etc. É por isso que Tomas recusa a retratação. As palavras de um homem não são plumas flutuando ao gosto do vento.
Sabina sempre lutou contra o kitsch, mas não o eliminou de dentro de seu ser: Seu kitsch é a visão de um lar sossegado, doce, harmonioso, onde reinam uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria. Franz nunca lutou contra seu kitsch, até porque desconhecia-o, chegou a pensar em colocar sua vida na balança para provar que a Grande Marcha pesava mais que a merda, acabou vitimado por sua militância política. Pequenos parênteses. Conseguir cruzar (em todos os sentidos) Sabina com Franz mostra a força da literatura kunderiana. Voltando. As grandes obras são perigosas, principalmente pelas leituras que permitem. Se o lar sossegado de Sabina é um kitsch e a grande Marcha de Franz também, revolução e família burguesa transformam-se na mesma coisa, seus pesos se equilibram na balança da unilateralidade.
Do azul para o verde, do verde para o azul: começamos relativizando valores; depois nos eximimos da responsabilidade por nossa linguagem ideológica; por fim igualamos revolução e família burguesa, como se fossem apenas dois kitsches. Rompe-se o acordo categórico com o ser, firma-se acordo com a ordem burguesa. Resta saber se, no limite, furaremos nossos olhos, como Édipo.
A questão é não negar a merda e não negar as possibilidades de higiene.
JC