LAMENTO PAULISTANO

Dos quatrocentos e sessenta e cinco anos de São Paulo, vivi quarenta e me lembro dos últimos trinta e poucos.
          
O Morro da Forca já tinha sido transformado em Praça da Liberdade. Já havia milhares de homens e mulheres morando nas calçadas e praças, debaixo de pontes e viadutos. Carrego uma imagem da infância: homens dormindo em camas de papelão, no pé das portas fechadas das igrejas. Esta fotografia absurda continua exposta na Catedral da Sé, na Igreja Nossa Senhora de Fátima e tantas outras.

Os rios já estavam mortos e os córregos canalizados. Alguns milhões de seres humanos e nenhum peixe. As bandeirinhas coloridas de Volpi: garrafas de plástico boiando no Tietê e no Pinheiros. Assassinaram o Tamanduateí, o rio do tamanduá verdadeiro, lembro-me de ter ouvido um senhor contar que pescava no Tamanduateí com o guarda-chuva. Pintura surreal, tempo da delicadeza em extinção.

O mosaico de garrafas de plástico boiando nos rios mortos de São Paulo pinta um quadro pós-moderno, de inigualável feiura, como a fileira de luzes dos autos imóveis. Os veículos se movimentam no ritmo das águas paradas e mortas dos rios da cidade.

Nada acontece no meu coração de asfalto quando cruzo a Ipiranga com a São João. A cara de São Paulo é o pixo, a cidade tem a cara pixada. Pixo: produto de exportação. Pixo: estética da barbárie, idioma intraduzível de São Paulo. Pixo: grito dos córregos enterrados e da juventude assassinada pela polícia. Meu coração bate em todo pixo, para o bem e para o mal. Meu coração rabiscado. Meu coração asfaltado. Meu coração paulistano.
           
Havia e há muitas pipas, ou papagaios, ou quadrados. Onde encontram brechas na fiação, moleques empinam seus brinquedos de voar e sumir.
           
A garoa virou tempestade de verão e seca de inverno: enchente e secura.

Espiando por entre os prédios, ainda se vê a Serra da Cantareira, parede viva ao norte da cidade. Demorei para reparar na Cantareira. Talvez porque o verde escapa da visão adaptada às escalas de cinza. São Paulo tem cor de asfalto.
           
Havia hortas nos quintais. O manjericão do molho de tomate do almoço do domingo vinha do quintal da nona. Os primos e tios vinham das suas casas. Todos se juntavam para a refeição com molho e macarrão feitos à mão. Até que os almoços de domingo se transferiram para as steak houses e os molhos foram enlatados, com claro prejuízo gastronômico e humanísticos. O piso cobriu os jardins. Os muros subiram e foram pixados.
           
Nos bairros como o meu se ouvia pelas ruas o espetaculoso falar dos italianos. Até que aqueles imigrantes tardios (da segunda metade do século XX) começaram a morrer – meia centena de anos depois da chegada – e a língua calou-se com eles. Em bairros como o Paraíso e Ana Rosa se viam e se veem grupos de japoneses. Em todos os cantos da cidade se encontrava e ainda se encontra uma multidão de nordestinos, dos quais sequer se reconhece a naturalidade, são todos agrupados no coletivo “baiano”, ainda que sejam paraibanos, piauienses, sergipanos e por aí vai. Latino-americanos de cabelos escuros, especialmente bolivianos, estão cada vez mais presentes, seus cabelos desbotam nas tecelagens do Brás e do Bom Retiro.
           
Na hora do almoço e do jantar, o perfume dos temperos escapava das panelas para as janelas e destas para as ruas. Caminhar pelas calçadas nessas horas era uma jornada aromática, às vezes ainda é, apesar do avanço das fast foods. O inglês de empresários e executivos tenta substituir o italiano e o português dos imigrantes.

Trocaram-se as praças de brincar pelas de alimentação, dos shoppings. Os campos de futebol de várzea viraram prédios, ou condomínios fechados, ou igrejas evangélicas. Os videogames substituíram as peladas. Adeus futebol jogado na rua, com chinelos demarcando as metas.

Aqui o capitalismo chegou com força, transformando tudo em mercadoria, inclusive as desgraças, sempre tão lucrativas para a mídia sensacionalista.

São Paulo segue sendo construída e demolida pelo capital: soterrada pelo entulho e asfixiada pela fumaça. A cidade é cinza e chamuscada.

O amor por São Paulo é estranho e se manifesta pelo avesso, está justamente no ataque à cidade, como nos pixos. São Paulo agride seus habitantes, que agridem a cidade, como nesta crônica. Quem sabe um dia a cidade e seus habitantes – a cidade e seus rios – possam se reencontrar.

São Paulo é um lixão cheio de tijolos, carros, latas, garrafas, ratos, baratas, urubus, indigentes, ossos e sonhos. São Paulo é grande e não cabe no coração, em todos os sentidos. São Paulo: 465 anos de solidão!   

São Paulo: selva de pedras às vezes coloridas, com a Serra da Cantareira ao fundo

   
São Paulo/Vila Anglo: viela sobre o Córrego da Água Preta

São Paulo/Vila Pompéia: um escadão sobre o que, provavelmente, era uma das nascentes do Córrego da Água Preta.
São Paulo/Centro: pixo: estética da barbárie


CONTINGÊNCIA DO PAULISTANO
para Carlos Drummond de Andrade

Oitenta por cento de borracha no chão.
Noventa por cento de fumaça no ar.
Cem por cento de concreto no cidadão.

Cimento sobre os córregos,
carros sobre avenidas,
viadutos sobre todos os outros
e gente abaixo destes.

No meio do caminho tinha um corpo,
tinha um corpo no meio do caminho.
Mas o homem atrás do terno passa apressado,
nem ligando.

É preciso abrir caminho,
a locomotiva vai passar,
precisa passar,
o carro precisa passar,
o edifício precisa subir.
São Paulo não pode parar.

Helicópteros entre as construções.
Gente entre carros.
Carros entre carros
(uma pessoa em cada carro)

Meu Deus! Pra que tanto carro?







TODO DIA – TODO DIA – TODO DIA – TODO DIA

Tem gente com sonho,
tem gente com sono.

Tem criança no colo,
tem filho no bucho.

Tem roupa amassada,
tem gente suada.

É sexo na face
e coxa no braço.

É sovaco no ombro
e tranco no baço.

É joelho entre pernas
e ventre apertado.

Vai arroz na marmita,
vai velho espremido.

Vai mãe fatigada,
vem prole perdida.