SOBRE COVEIROS E CARRASCOS DO CAPITAL

“Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social.” (Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política – Marx)

“A burguesia produz seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” (Manifesto do Partido Comunista – Marx e Engels)

Penso que os dois trechos acima citados são muito significativos no pensamento de Marx. A sentença de morte da burguesia se assinaria no processo de luta de classes, o proletariado seria o coveiro. Mas quem seria o carrasco da burguesia? O verdugo? Ou colocando a questão em outros termos, feita a autópsia do cadáver carcomido do modo de produção capitalista, qual seria a causa mortis?           
Neste ponto amarram-se as duas citações. A causa mortis do capitalismo seria a mesma que já havia matado outros modos de produção: a contradição entre forças produtivas (FP) e relações de produção (RP). As RPs se tornariam obstáculos para o livre desenvolvimento das FPs da humanidade. Marx faz uma verdadeira autópsia do modo de produção capitalista, busca suas leis imanentes, e constata a revolução é inevitável.           
Mas como podemos tornar esta análise menos abstrata e mais factual? Como poderia se manifestar na realidade a contradição entre FPs e RPs? Penso que podemos encontrar um caminho para a solução desta questão na seção III do livro III de o Capital, mais precisamente na Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro.           
A taxa de lucro é a variável mais importante do modo de produção capitalista. Marx calcula a taxa de lucros dividindo a mais valia pela soma do capital constante com o variável. Taxa de lucros = mais valia/capital constante + capital variável.           
Para compreender a dinâmica das taxas de lucro é fundamental conhecer o movimento de outras duas relações estabelecidas por Marx. A taxa de exploração do trabalho: mais valia dividida pelo capital variável. E a composição orgânica do capital: capital constante dividido pelo variável. Para Marx, esta última relação seria crescente no capitalismo, ou seja, o trabalho morto (capital constante) tenderia a crescer mais do que o vivo (capital variável). As leis do capitalismo forçariam os burgueses a participar de um processo constante de inovação tecnológica e, consequentemente, de barateamento de mercadorias. Entretanto, este mesmo processo forçaria para baixo as taxas de lucro, já que o capital constante apenas transfere valor.
As taxas de lucro capitalistas dependem da mais valia e esta, por sua vez, é extraída apenas e tão somente do trabalho vivo (capital variável). À medida que o trabalho vivo fosse substituído pelo morto, cairiam as taxas de lucro. Esta é a sentença de morte do capitalismo proferida por Marx, este modo de produção se inviabilizaria à medida que as taxas de lucro caíssem. Seja porque não haveria mais investimentos e a produção estancaria. Seja porque os capitalistas aprofundariam desesperadamente a exploração e, por tabela, também a luta de classes. Mesmo que fosse possível ampliar a taxa de exploração, este movimento não seria capaz de contrapor o aumento da composição orgânica. Por fim, cairiam as taxas de lucro.
A mecanização da produção capitalista é um dado elementar da realidade concreta experimentado por todos. A constatação empírica da mecanização da produção tende a fortalecer o argumento de Marx. Neste ponto quero inserir uma nova interrogação: se a composição orgânica do capital é crescente, como o capitalismo conseguiu sobreviver tanto tempo após a sentença de morte proferida por Marx? Além disso, considerando-se que houve uma tendência de melhora das condições de vida material do proletariado, o que poderia explicar tal tendência?           
Talvez a categoria chave para a compreensão destas interrogações seja a composição orgânica do capital, a relação entre trabalho morto e vivo. Dados compilados pelo economista Luiz Bresser Pereira – em seu livro Lucro, Acumulação e Crise – mostram que, nos EUA, a tendência crescente da composição orgânica do capital vigorou até aproximadamente o início dos anos  1930, a partir de então este movimento se inverteu. No caso da Grã-Bretanha a tendência decrescente da composição orgânica do capital foi acentuada, caindo de um índice de 105,9 no período 1870-1874 para 85,1 no período de 1935-1938.
Sendo assim, é possível que calculada em termos de valores, a relação entre trabalho morto e vivo não seja crescente, ou então que seja crescente, mas não a ponto de não poder ser compensada pelo aumento da taxa de exploração. Marx coloca o barateamento do capital constante como contratendência à queda das taxas de lucro, teria tal contratendência assumido a posição de tendência dominante? De acordo com os dados de Bresser Pereira sim. Isso ajudaria a explicar a longevidade do capitalismo.
A composição orgânica do capital se reduziria ao mesmo tempo em que se observa a mecanização crescente da produção. Este fenômeno aparentemente paradoxal é possível porque a composição orgânica do capital é calculada em valor (quantidade de trabalho acumulado). É como se o avanço tecnológico substituísse não apenas trabalhadores (capital variável), mas também máquinas (capital constante). Meios de produção mais baratos (em valores) substituiriam os antigos. É o que Bresser Pereira chama de desenvolvimento tecnológico poupador de capital.
Os dados disponíveis sobre composição orgânica do capital, taxas de lucro e exploração são muito precários, entre outras causas porque a contabilidade burguesa, por razões óbvias, não trabalha com conceitos como capital constante, mais valia etc. Entretanto, ainda que a composição orgânica do capital seja decrescente no longo prazo e, consequentemente, as taxas de lucro não tenham uma tendência de queda, há nos momentos de depressão e recessão, como a crise de 2008, um claro movimento para baixo nas taxas de lucro. Mas talvez essa queda não possa ser totalmente explicada pela lei da queda tendencial das taxas de lucro. 
Por outro lado, se a composição orgânica não cresce e, consequentemente, as taxas de lucro não apresentam uma tendência clara de queda, acontecimentos como a atual crise mostram que a “lei da queda cíclica das taxas de lucro” continua totalmente vigente. O capitalismo não foi capaz de superar suas crises cíclicas, apesar do desenvolvimento da teoria econômica.
Vale lembrar que foi o próprio Marx quem primeiro explicou as contradições que causam as crises cíclicas: diminuição do exército industrial de reserva e aumento de salários, investimentos equivocados (anarquia da produção).
Não pretendo aprofundar a discussão sobre as contradições acima citadas. Por hora queria apenas registrar brevemente possíveis caminhos para debates e para discussões mais aprofundadas sobre a crise atual e sua conceituação. Penso que, sendo a taxa de lucros a variável chave no capitalismo, é preciso ter pleno conhecimento desta taxa. Entretanto, a verdade é que pouco se sabe sobre o comportamento empírico das taxas de lucro. 

Albert Camus e a absolutização do absurdo


   Como se portar num mundo disparatado e privado de luzes? A vida e a obra do argelino Albert Camus é uma tentativa de responder esta questão, é uma busca da ética.

           Da condição inóspita do mundo brota o absurdo. É preciso enfrentá-lo de frente, Camus propõe, primeiramente, que se encare o absurdo como ponto de partida e não de chegada. A questão por ser respondida neste texto é se esse ponto de partida (absurdo) é sólido ou se é também fugídio e contingente.
           
           A contrapartida do absurdo é a revolta. Camus esboça a história da revolta ao longo dos tempos misturando o real e o mítico, o literário e o histórico. Um dos homens de destaque na história da revolta é Ivã Karamazov, personagem de Fiódor Dostoiévski. Ivã não submete deus ao julgamento da razão, mas ao da ética. É legítima uma criação que comporta o mal? Para homens como Ivã Karamazov e Albert Camus a respota é negativa. Uma criação que aceita o mal é inaceitável. Deus não passa pelo crivo ético. Este tema é recorrente em Camus, no romance A peste ele renasce no Dr. Rieux, que se recusa a aceitar uma criação que tortura as crianças.
           
            Mas a exclusão de deus da equação tem implicações importantes, se não há um criador não há um projeto e uma justificativa para o mundo. Os homens são seres solitários e contingentes. A condição humana torna-se absurda. Como se comportar nestas condições?

   Ao liquidar um homem, a morte inviabiliza suas pretensões de continuidade e suprime qualquer possibilidade de sentido. Como a morte é o limite, igualam-se os feitos mais nobres e seus opostos. Não há qualquer julgamento. Deus é retirado da equação e trocado pelo vazio. O desejo de ordenação das coisas choca-se com a realidade disforme. A geometria antieuclidiana do mundo rechaça a sede de síntese da sensibilidade humana. A única possibilidade de ordenação (Deus) está excluída. 
           
            Segundo Camus: “Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade”. Confinado entre muros instransponíveis, o homem caminha em círculos, sem recurso possível. Privado das vias que levam para o transcendental, afastada toda e qualquer metafísica, o homem se encontra preso entre espessas paredes, sem saída. Daí o dilema, a pergunta filosófica fundamental pode implicar na resposta derradeira e na devolução do bilhete de entrada na vida, como sugeriu Ivã Karamazov. Dado o absurdo do real concreto experimentado, a auto-aniquilação e o suicídio ganham relevância. É preciso dizer sim ou não à vida. Para Camus o suicídio é a mais fundamental das questões filosóficas. Mas ele diz não ao auto-aniquilamento e afirma a vida absurda. A partir deste passo é preciso forjar uma ética coerente com o absurdo. É preciso caminhar com cuidado por sobre o telhado de vidro do mundo.
           
            Suprimida a religião e o transcendental. Sendo a vida unicamente um em si, qualquer sentido ou ausência dele só poderá estar contido nela mesma. Entretanto, não é haver sentido para a vida que levará à negação do auto-aniquilamento, como no caso do próprio Camus. Alguém pode crer no sentido da vida e suicidar-se, ou não crer e continuar vivendo. Ivã Karamázov percebe e expressa essa sutileza: “Eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas sem saber por quê.”
           
            Esta sutileza também percebida por Camus, por vezes lhe escapa, como quando ele afirma que “matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la.” Ora, sendo o absurdo uma experiência sensitiva (é um sentimento e não um fato concreto), ele não pode ser absolutizado, trata-se de um enjôo ou desencanto, surge e se desmancha. Pode inclusive ser superado pelo sol mediterrâneo, pelos “brotos tenros na primavera” ou outras experiências. Sendo o contrário verdadeiro também, o sentimento do absurdo pode surgir em qualquer lugar, inclusive sob o sol mediterrâneo.

            A sensibilidade aburda está na “nostalgia da unidade” e no “apetite de absoluto”. O homem camusiano é um desesperado incapaz de religar as luzes do mundo. Há um “divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que ilude”. Mas se, com Ivã, a justificativa para negar o suicídio se encontra “nos brotos tenros na primavera, no céu azul, no amar certas pessoas sem saber por quê” e “a despeito da lógica”. Significa que a razão deve aceitar seus limites e que é preciso fazer uso da poesia, da literatura, do teatro, entre outros para lidar com o absurdo. É por essa razão que Albert Camus é mais escritor do que filósofo. Por isso suas definições são mais imagéticas do que categoriais. Sendo o absurdo uma experiência mais sensitiva do que racional, a literatura e a poesia são campos privilegiados para demarcá-lo.
           
            Camus pinta o absurdo como um “desabar de cenários”, ou um “divórcio entre o homem e sua vida”. Na poesia semelhante sensibilidade surge através de outras imagens:

“Com a chave na mão
 quer abrir a porta,
 não existe porta;
 quer morrer no mar,
 mas o mar secou;
 quer ir para Minas,
 Minas não há mais.
 José, e agora?
 (Trecho do poema José – Carlos Drummond de Andrade)

“O recurso de se embriagar.
 O recurso da dança e do grito,
 o recurso da bola colorida,
 o recurso de Kant e da poesia,
 todos eles... e nenhum resolve.”
  (Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)

            Em Carlos Drummond o absurdo brota da relação de homens que gritam para um mundo surdo, que lhes tortura. A chave na mão não é uma solução porque não existem portas. Todos os recursos são inúteis.
           
            Enquanto os versos de Drummond constatam e verbalizam a absurdidade da vida no sentido camusiano; os de João Cabral manifestam o desejo de clareza, tentam negar o vago, o inconstante e o volúvel:

“O poema inquieta
 o papel e a sala.
 Ante a face sonhada
 o vazio se cala”
 (Trecho de Poema de desintoxicação – João Cabral de Melo Neto)

“O lápis, o esquadro, o papel;
 o desenho, o projeto, o número:
 o engenheiro pensa o mundo justo,
 mundo que nenhum véu encobre.”
 (Trecho do poema O engenheiro – João Cabral de Melo Neto)

“Procura a ordem
 que vês na pedra:
 nada se gasta
 mas permanece.”
 (Trecho do poema Pequena ode mineral – João Cabral de Melo Neto)

            Drummond expressa a dor de um José abortado e repelido pelo mundo, Cabral mostra sua sede de síntese e permanência. São os dois lados da mesma face. O homem absurdo de Albert Camus deseja o mundo ordenado e “que nenhum véu encobre”, como na poesia de João Cabral; mas é um “eu todo retorcido”, como o José de Carlos Drummond. 
           
            A questão que surge é: um mundo coerente e ordenado seria capaz de destorcer os seres? Um casamento estável e monogâmico de um homem com sua vida seria reconciliador? São questões complexas. Mas a resposta é negativa. Um mundo coerente e ordenado tenderia a produzir uma humanidade paralítica, posto que sua coerência e ordenação seriam externas e idependentes dos homens. Na exata medida em que nega o humano espírito construtor, o casamento harmônico de um homem com sua vida é inviável, pela simples razão de que produziria um mundo enfadonho e entediante. Seja na arte ou no trabalho não alienado, é somente com a criação que os seres humanos podem se realizar. Qualquer coerência e ordenação impostas ao homem são alienantes e neste sentido opressivas.

            O homem é essencialmente um ser que cria, inclusive quando forja sua própria destruição. O auto-aniquilamento é também produto do trabalho, tanto em seu conteúdo teórico quanto no operacional. A possibilidade de criação só é viável na vida, neste sentido, a vida é como um tango, sedutora na exata medida que fugidia, trágica na exata medida que necessária.

            No processo de criação forjam-se e alteram-se os sentidos, tudo a partir da experiência sensorial. Sendo assim, a sensibilidade absurda não é exatamente uma “doença do espírito”, como quer Camus; trata-se, mais precisamente de um resfriado ou alergia. E aqui não se enxergue ironia e sarcamos, mas sim uma tentativa de melhorar a definição. Resfriados e alergias vêm e vão com maior frequência, a sensação absurdo também. Essa dimensão parece escapar de Camus quando ele exagera nas cores do absurdo.
           
            Não há suicídios filosóficos ou baseados na idéia de que a vida não tem sentido porque o próprio sentimento do absurdo é inconstante, vai e vem. Se não fosse assim, o José do poema se mataria. Mas como explica Drummond:

“outros dias virão
  e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.” 
 (Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)

            José sabe disso. Depois outros divórcios e desabamentos extinguirão o fogo da vida, que reacenderá, apagará e assim sucessivamente. Matar-se não é afirmar a impossibilidade de compreender a vida, como quer Camus. Matar-se é afirmar a impossibilidade de viver a vida num momento específico, é abrir mão de buscar e de aguardar a vinda de “novas coxas e ventres”, entre outras coisas.

            Procurar uma ética imanente e coerente com a singularidade e contigência da vida é louvável, nesse sentido a obra camusiana é grande e estes apontamentos não lhe desdizem em nada, não lhe alteram nenhuma conclusão. Por outro lado, absolutizar uma sensibilidade (absurdo) também fortuita é um exagero. Para haver divórcios entre homens e suas vidas é preciso que haja uniões. Para haver desabamentos de cenários é preciso que estes estivessem de pé. Esse momento de positividade, inverso da sensação de absurdo, é que às vezes escapa de Camus.


JC

RelATO: Passe Livre – SP – 20.01.2011


            
É muito bom ver a juventude protestando nas ruas. Por outro lado, é ruim constatar que os já não tão jovens não estiveram presentes. Vi pouca gente da época da AGP – Ação Global dos Povos. Por falar nisso, quase não havia mascarados, resgatar as mascaras é uma boa forma de colorir o Ato e de dificultar a identificação de manifestantes.
        


Os partidos institucionais estavam lá. Como sempre com muitas bandeiras próprias e poucas diretamente relacionadas à luta específica da manifestação. Penso que um dia eles perceberão que só se queimam com essa prática, nada que não se resolva nos próximos 600 anos. O perigo é capitalismo acabar antes.
           


Do meio da manifestação era difícil precisar a quantidade de pessoas presentes, mas 4.000 me parece uma boa estimativa. A população nas janelas, sacadas e calçadas apoiou. Os que passavam dentro dos ônibus também aprovaram.



A polícia se fez presente com várias viaturas e provocações, logo na saída eles partiram para cima da manifestação com suas motos, numa clara tentativa de intimidação. Mas ficou nisso. Caminhamos do começo ao fim da Avenida Paulista ocupando duas faixas e sem maiores problemas, inclusive quando paramos a Avenida Brigadeiro Luis Antonio no cruzamento com a Paulista.
            

Politicamente falando, o eixo do Ato foi a redução das tarifas: “óóóóóó, vamo baixa o busão, vamo baixa o busão”.  Não tinha como ser diferente. E aqui é o ponto. A questão é como politizar cada vez mais. De forma que se caminhe da redução da passagem para o passe livre e o transporte de qualidade.

        
O desafio maior é contestar a lógica privatista e neoliberal que está por trás dos aumentos de passagem em todo o Brasil. O caminho para isso é aproximar as diversas lutas. Vítimas do neoliberalismo e do privatismo é o que mais há. Dos alagados da Zona Leste de SP aos sem transporte de todo o Brasil, dos sem teto aos sem emprego. Quinta-feira próxima tem mais. Unamo-nos!

JC
SE NADA MAIS DER CERTO (DE JOSÉ EDUARDO BELMONTE)

 “Acontece que os cenários desabam. Os gestos de levantar, bonde, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta e quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada sucede-se facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o porquê desponta, e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto.” (Albert Camus – O Mito de Sísifo) 

Primeiro plano: um jornalista endividado, uma traficante de drogas e um taxista com tendências suicidas. Segundo plano: uma drogada em tratamento, uma empregada sem salário e sem ter para onde ir, um garoto singelo e todo um time de aplicadores. Pano de fundo: São Paulo. Assim se articula a trama de Se Nada Mais Der Certo, de José Eduardo Belmonte.

Os “cenários desabam”. As pessoas se arrastam nos escombros: puteiros, botecos, pensões. Surge o mundo intencionalmente varrido para baixo do tapete persa da novela global. É a ressaca permanente da sociedade do consumo.

A desesperança choca. As olheiras causam enjoo. Não é um filme para se assistir comendo pipoca.

O capitalismo não só sobrevive como se expande na barbárie. Nunca antes na história desse país a história foi tão miserável. Mas a poesia também sobrevive à barbárie. A película capta a poética do apocalipse: o garoto desenha com lápis de cor em contas não pagas; o taxista ensaia seu suicídio no telhado de um prédio; as pessoas tomam banho de mar e cantam, num espasmo de anticoisificação.

Em Caçadores de Emoção, de Kathryn Bigelow, surfistas assaltantes com máscaras de ex-presidentes estadunidenes roubavam bancos, em Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte, as personagens com máscaras de ex-presidentes brasileiros roubam a bufunfa não declarada da campanha presidencial de 2006. Num ondas e praias da Califórnia, noutro concreto e prédios de São Paulo (apesar da cena no mar). Mas em ambos a opção pelo crime como forma de libertação individual.

Lembro-me da sensação causada por Caçadores de Emoção. Brotou-me o tal “porquê” Ônibus, metrô cheio, quatro horas de trabalho, dois quilos de papel na mesa, marmita, quatro horas de trabalho, três quilos de papel na mesa, metrô cheio, ônibus, jantar, sono. Pra quê? Por que não sair à caça de emoção? 

Exatamente essa opção que choca. E é curioso porque se o lema máximo é topar tudo por dinheiro, consumir mais e mais, se nada mais der certo... Por que não se apropriar de dinheiro sujo de campanha eleitoral?

O filme vale por ajudar a despertar os “por ques” e o “porquê”, incluindo o “cansaço tingido de espanto.” Exatamente por essa razão ele agradará uns e outros não.   


Se nada mais der certo. Brasil 2009. 120 min. Drama. Diretor: José Eduardo Belmonte. Atores: João Miguel, Cauã Reymond, Caroline Abras, Luíza Mariani.