EM
POLÊMICA COM NOEL, UM PALPITE FELIZ DE CAETANO
Essa é da época do vinil,
literalmente. Houve um tempo, creio que mais ou menos no meio dos anos 1990, em
que os cds começaram a substituir os discos de vinil (bolachões), que, por sua
vez, passaram a ocupar os sebos.
Com alguns poucos
trocados era possível comprar bons bolachões. Digo era porque as relações de
produção e distribuição fonográficas entraram em contradição com as forças
produtivas, veio a revolução da Internet, nunca mais comprei discos.
Muito bem. Mas o que isso
tem a ver com Noel e Caetano? Resposta: o bolachão Totalmente Demais, de 1986.
Ao vivo, Caetano canta Vaca Profana, O Quereres entre outras. Depois, Pra que
Mentir? (de Noel Rosa e Vadico) e na seqüência Dom de Iludir. Tocadas em
seguida, salta aos ouvidos que uma responde a pergunta da outra.
Pra que Mentir? tinha
endereço certo: Ceci, a grande paixão de Noel. Caetano, por outro lado, dá voz
a Ceci, encara a pergunta e responde por que mentir. Noel indaga: “Pra que mentir se tu
ainda não tens a malícia de toda a mulher”. Caetano
responde: “Não me venha falar
na malícia de toda mulher. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.” Noel pergunta: “Pra que mentir se tu
ainda não tens esse dom de saber iludir?” Caetano
lhe joga na cara: “Você
diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá
viver sem mentir?”
A pergunta é espinhosa
para qualquer um: “Como pode querer que
a mulher vá viver sem mentir?” Verdade é um substantivo feminino, mas nas sociedades machistas, seu conteúdo é
sempre masculino. A verdade masculinizada repele e exclui as mulheres.
Noel condena Ceci: “Pra quê? Pra que
mentir, se não há necessidade de me trair?” Ora, se ao homem cabe inclusive
determinar à mulher quando há necessidade de trair, como elas viverão sem
mentir? Inclusive porque o não inocente verbo trair é sempre conjugado de forma
unilateral, será que para Ceci alguma traição estava em questão? De Ana
Karenina a Ceci, nenhuma mulher passará sem mentir, ou melhor, sem o dom de iludir,
pelo menos em sociedades em que o homem é senhor do dom de se impor.
Como ensina Carlos
Drummond: “Entre as diversas
formas de mendicância, a mais humilhante é a do amor implorado.” Exatamente como faz Noel: “Pra que mentir tanto
assim se tu sabes que eu sei que tu não gostas de mim? Se tu sabes que eu te
quero apesar de ser traído.” A
questão é: que homem suportaria uma resposta sincera? Imaginemos que, “olhos nos olhos”,
Ceci respondesse a Noel: “Tantas águas
rolaram, quantos homens me amaram bem mais e melhor que você”. Seria demais. Totalmente demais.
Então há uma dose de
machismo e amor possessivo em Noel? Sim. Pra que mentir? Não há necessidade de
se iludir. Noel, apesar de sua genialidade, é filho legítimo da sociedade
machista, em que o amor vem em conserva, com prazo de validade e contrato de
aceitação.
Mas amar é libertar a
pessoa amada. É se realizar na realização do ser amado, incondicionalmente.
Caminhamos por um beco sem saída. Não há meio termo possível, é preciso levar a
realização do ser amado às últimas conseqüências, inclusive quando este se “deite e deleite seja
com quem for.” Neste sentido
o amor está bem próximo da amizade. O amor, quando sincero, não impõe
condições, não exige nada em troca. O amor, se verdadeiro, é autotélico. Amor
que não tem fim em si mesmo não passa de individualismo meia boca e doentio,
mais ou menos como mostra Drummond: “Um se beija no
outro, refletido. Dois amantes que são? Dois inimigos.”
No mesmo bolachão,
Totalmente Demais, na canção Nosso Estranho Amor, Caetano dispara: “Não quero sugar todo
seu leite nem quero você enfeite do meu ser. Apenas te peço que respeite o meu
louco querer. Não importa com quem você se deite, que você se deleite seja com
quem for. Apenas te peço que aceite o meu estranho amor.” O amor, se verdadeiro, carrega a
propriedade radical de se impor inclusive ao seu portador, não quer ninguém
como enfeite de seu ser, nem lhe importa com quem o ser amado se deite e
deleite.
Da polêmica de Noel com
Wilson Batista ficaram pérolas como Feitiço da Vila e Palpite Infeliz.
Cinqüenta anos depois, Noel estava morto e não pôde responder à interlocução de
Caetano, é interessante imaginar como seria a tréplica do Poeta da Vila, se é que seria, afinal, pra que mentir?