O MORALISTA

Aconteceu no começo do século XXI, depois do desenvolvimento da telefonia móvel e da música da dupla Kleiton e Kledir.

Rodrigues era casado. Tinha esposa, filhos e amantes. A Carol entre estas. Ele costumava repetir para os amigos: “Minha mulher serve para esfregar minhas cuecas, minhas amantes servem para tirar minhas cuecas”.  Rodrigues se dizia bacharel em artes amorosas. Os sujeitos que acreditam nas bobagens que dizem costumam ser engraçados, o Rodrigues entre estes. Quando contava suas aventuras eróticas, ele respirava fundo, batia no peito e soltava sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”. Os amigos brincavam dizendo não saber se o Rodrigues era melhor como amante ou como contador de histórias. Fato é que, para ele, não havia nada mais belo do que contar vantagem. Certa vez, numa roda de amigos, alguém perguntou se o Rodrigues frequentava bordéis, ao que ele respondeu de pronto: “Nunca! Eu nunca pagaria pra transar com uma mulher, elas que deveriam pagar pra transar comigo!”. Quando os amigos conseguiram parar de rir, Rodrigues emendou sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”.

Carol estava namorando e, por isso, havia rompido com o Rodrigues. Mas não há barreira que não possa ser superada pela ousadia de um amante somada às possibilidades da telefonia móvel. Ela respondeu a mensagem dele, que pensou: “Eu sô bom nisso! Agora vai!”. Dias depois, se reencontraram.

Algumas palavras jogadas fora e decidiram ir para um lugar mais tranquilo para conversar melhor. Mais palavras jogadas fora e a Carol levantou e debruçou na janela. O Rodrigues – que raciocinava por meio de metáforas futebolísticas – pensou: “A bola do jogo. É agora!”. E abraçou a parceira por trás. Sem soltá-la e sem saber bem o que fazer ou dizer, improvisou, cantou baixinho um trecho do Kleiton e do Kledir: “Esse quarto é bem pequeno / pra te suportar / tanto amor / tanto veneno / pra pouco lugar”.

Ela se surpreendeu com a novidade:

- Que é isso? O que cê tá fazendo? Tá maluco?

Mas, lá no fundo, Carol aprovou a novidade, também ela gostava do Kleiton e do Kledir. Percebendo a conjuntura favorável, Rodrigues emendou:

- Tô maluco por você. Malucão. Eu sei o que tô fazendo! Confia em mim! Deixa comigo! Vai ser como nos velhos tempos. Baby, confia em mim! – Empolgado, Rodrigues quase soltou sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”. O que, com certeza, teria posto tudo a perder. Mas o pior não aconteceu.

Ele avançava e, ao mesmo tempo, começava a comemorar a vitória sobre os amigos, que não acreditavam na possibilidade dele reatar com a Carol. Rodrigues via a cara de espanto dos amigos quando soubessem dos versos do Kleiton e do Kledir. Não é difícil imaginar as frases que ele utilizaria para narrar aquela aventura: “Gol de placa. Jogada de craque. Eu sô bom nisso!”. 

Existem as leis do amor, a gramática das coisas do coração espera por ser redigida, mas existe. A debruçada na janela da Carol prova a existência das leis do flerte. E prova que o Rodrigues conhecia a legalidade do amor. Claro que o emprego da canção do Kleiton e do Kledir ajudou, mas não era só isso. Ele gostava de dizer que “no amor, assim como no futebol, o improviso ajuda, mas não resolve sozinho, é preciso dominar todos os fundamentos do jogo”. Se fosse um pouco mais teórico, Rodrigues poderia escrever a gramática das coisas do coração, mas ele era um homem de ação, preferia a prática e a narração das práticas.

Machista, canalha, reacionário, estúpido... Digam o que quiserem do Rodrigues, mas, uma coisa é certa, ele dominava os tempos de bola do amor. Essa metáfora é dele, mas tem a ver, era assim que ele explicava suas conquistas para os amigos. Com certeza, Rodrigues diria que aquele abraço aconteceu no momento exato, que um segundo antes ou depois seria fatal.

Os amantes se conheciam, tinham sido parceiros. Aquele debruçar na janela era a senha, a luz verde, o siga em frente, o venha agora ou nunca mais. Como um toque de truco, aquele gesto sinalizava e autorizava a próxima jogada do parceiro.

Empiria ou não, é inegável que o Rodrigues identificou corretamente a simbologia do debruçar na janela, antes daquele gesto, qualquer passo seria um salto no abismo. A Carol mantinha uma superioridade total até aquele debruçar, até aquele “venha”. Na corrida do amor, queimar a largada é fatal. Depois daquele “siga em frente” ela se integrava às batalhas do amor, se perdia a ponto de confundir o toque do celular com as batidas do coração do Rodrigues. Os amantes vibravam e emitiam sons na cama, o telefone da Carol também, até que... Pof!

- Meu telefone caiu. Calma home, calma! Quem tá me ligando? Meu namorado! Caramba!

- Desliga isso, Carol.

- Alô. Oi coração. Como cê tá? Tudo bem? Já jantou? Tem que se alimentá bem, hein.... Hein... Beijo! Beijo! A gente se fala então! A gente se fala depois! Te ligo! Beijo!

- Rô, vem Rô! Vem, seu safado! Cachorro!

Rodrigues estranhou, mas não se intimidou com a situação. Avançou. Mordeu o pé da parceira. Essa técnica, no jargão dele, era uma jogada ensaiada, que ele repetia porque funcionava. “Em time que tá ganhando não se mexe” – dizia.

- Carol, você não anda, levita. Que pezinho! Posso fazer cosquinha?

Drim. Drim. Drim.

- Carol, que que é isso? Meu estômago tá roncando?

- Não, não. É o meu celular tocando debaixo de você. Afasta aí pra eu ver quem é. Outra vez. Espera. Rô, espera.

- Oi meu amor. Jantou? O quê? Hum... Que delícia. Ops. Vou entrar no Metrô. Não tô te ouvindo. Oi? Não tô te ouvindo. Oi? Oi? Vai cair. Beijo. Vai cair. Beijo. Até. Também te amo.

- Vem, Rô. Vem.

Carol passou os dedos entre os cabelos do Rodrigues, segurou firme e puxou com força. Ele quase gritou de dor. Esses detalhes das aventuras não costumavam ser contados para os amigos.

Drim. Drim. Drim.

- Outra vez! Deixa eu tomar um ar. Rô, afasta um pouco. Espera. Espera.

Ela controlou a respiração e atendeu:

- Oi coração! Também te amo. A ligação tá ruim. Te amo. Beijo. Até.

- Vem Rô. Rô, cadê você?

Estava na janela. Olhou para o horizonte, acendeu um cigarro e começou a matutar. Há quem diga que começar a pensar é começar a broxar. Como pensar não era o forte do Rodrigues, ele não considerou esse risco.

Drim. Drim. Drim.

Mais conversa dos namorados. Da janela Rodrigues ouvia e pensava. Como ela podia fazer aquilo? Ficar jogando conversa fora sem passar a bola para ele. Que fominha! Por que não desligou o telefone? Que canalhice. Os maus pensamentos do Rodrigues sobrevoavam como aves de rapina. Teria ela atendido alguma ligação dele na cama com outro homem? Pior ainda, teria alguma ligação dele tocado debaixo de algum amante dela? Teve náusea só de pensar na pele suada e na pulsação de outro homem. Que mania! Levar o telefone para a cama, onde já se viu isso? E que cara chato esse namorado dela, tinha que levar chifre mesmo, não dá um tempo, marcação sob pressão no campo adversário o jogo todo, parece time alemão, assim não tem jogo, a bola não rola. Retranqueiro. Covarde. Nem joga nem deixa os outros jogarem. O ciúme crescia junto com a raiva. Rodrigues teve uma ideia terrível, seria ele reserva do namorado da Carol? Logo ele: que sempre dizia “sô bom nisso”, que conhecia os tempos de bola do amor, que armava jogadas tão bem quanto finalizava. Reserva de um perneta? Teve vontade de falar essas verdades. Carol trocava frases batidas com o namorado: “também te amo”, “tô com saudade”... No jargão do Rodrigues, aquilo era fazer cera. Carol conversava com um e sorria para o outro. Rodrigues se irritava. No jargão dele, aquilo era catimba. Ele tentava se controlar, sabia que o pior erro de um amante experiente é cair na catimba do adversário. Mas não teve jeito. A raiva só aumentava. Reserva de um perna de pau... Onde já se viu isso?

- Então tá, amor. Minha bateria tá acabando. Desliga você primeiro. Te amo, viu. Te amo. – Disse Carol para o namorado ao mesmo tempo em que piscava para o Rodrigues.

O namorado não desligou, mas ela sim. Depois encarou Rodrigues com olhar provocador e disse:

- Rorô, vem. Te quero! Quero você! É hoje!

Rodrigues se animou, subiu do inferno para o céu. Olhou para a parceira e pensou: “Eu sô bom nisso!”. Mas, no caminho da janela para a cama, ouviu o toque do celular.

Drim. Drim. Drim.

- De novo! – Reclamou a Carol.

O pior tombo é o que o sujeito leva quando está se reerguendo. Rodrigues despencou do céu para o inferno. Como ela podia fazer aquilo com ele? Que canalhice. Sem vergonha. Logo a Carolzinha... Logo a sua pequena preferida... A que ele mais gostava. Cada “eu te amo” dito para o outro era uma cusparada na cara do Rodrigues. A ideia de ser o reserva imediato do namorado da Carol voltou a atormentar. Como ele contaria aquela aventura?

Parênteses para uma metáfora à la Rodrigues: o último chamado da Carol, aquele “Te quero! Quero você!” foi a bola do jogo, ele empurraria a pelota para a rede se não tivesse sido anotado impedimento, ou seja, se o telefone dela não tivesse tocado outra vez.

Tomado de fúria, Rodrigues contraiu os músculos do rosto e avançou com raiva nos olhos. Tomou o telefone da mão da amante e ouviu a voz que vinha do outro lado da linha:

- Amor. More. Môr, cadê você? Tá tudo bem?.

Considerando-se injustiçado, autopromovido ao topo do edifício da superioridade moral, Rodrigues fuzilava sua parceira com o olhar. Encheu o peito para falar, queria colocar os is nos pingos. Mas não conseguiu dizer nada. Bufou como burro cansado e respirou fundo. Tinha que falar, precisava retomar a rédea das coisas, mas foi novamente driblado pelas palavras, que lhe escapavam. Os pensamentos mordiam os miolos do Rodrigues: “Como a Carolzinha faz isso comigo? Logo a minha pequena preferida?”.

Desesperado, jogou o telefone na cama, bateu a porta e partiu: com os olhos marejados, soluçando. 
Legado da Copa:

- 9 trabalhadores mortos na construção dos estádios.

- Bilhões de reais desviados em obras superfaturadas.

- Milhares de famílias despejadas.

- A imagem bisonha de um Brasil branco nas arquibancadas, a imagem bisonha do Brasil coxinha, do Brasil da Casa Grande, do Brasil racista.

- Endurecimento brutal da repressão contra os movimentos sociais, revogação do direito de manifestação, avanço do fascismo.

- A maior e mais ridícula derrota do futebol brasileiro em todos os tempos: resultado direto da retrancalização promovida pelos técnicos brasileiros; resultado direto da mediocridade que tem prevalecido no país e no futebol do país; resultado direto da especulação imobiliária, que coloca edifícios no lugar dos campos de várzea, impedindo o nascimento de novos craques.

Conclusão:


- Ou reconstruímos tudo pela raiz, de baixo para cima, como nunca antes na história desse país; ou vamos morrer afogados no esgoto, na merda.


Causo do vestido da mãe da noiva

Comecemos pelo começo, pelo título. Causo? Começar com uma palavra popularesca? Causo do vestido da mãe da noiva? Muito longo, meio forçado. Sei, sei. Caso do Vestido seria melhor, se Drummond não tivesse escrito um poema com esse título: “Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?” Lembra-se, leitor? E não trato de um vestido num prego, mas de um vestido no corpo da mãe de uma noiva. Vestida de Azul também seria melhor, se Mário de Andrade não tivesse escrito o conto Vestida de Preto: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.” Lembra-se, leitor? De minha parte, não sei se o que vou contar é causo ou fofoca. Vestido de Madrinha também seria melhor, se Nelson Rodrigues não tivesse escrito a peça Vestido de Noiva, aquela em que duas irmãs disputam o mesmo noivo. Lembra-se, leitor? Mas o causo que conto é mais grave, duas noivas para um mesmo marido é menos perigoso do que duas madrinhas para o mesmo vestido. Na pós-modernidade o amor é líquido, mas o desejo de ser diferente é sólido, não se dissolve no ar. Por que não escolhi um título diferente, sem a palavra vestido, e sem fazer referência à cor e à dona? Porque estes são tempos quantitativos, tempos de citações, tempos de softwares medidores de citações. Num único parágrafo: três cajadadas. 3,5 para os mais atentos, que certamente notaram o machadiano “lembra-se, leitor?” Nada mau.

O que o poema tem a ver com a peça e com o conto? Pouco, muito pouco. Mas no mundo das citações, citemos. Mandamento fundamental da cadeia alimentar acadêmica: cite-me que serás citado. Então, citemos. Porque nadar contra a corrente dá câimbras. Câimbra? Que palavra! Dizem que um acadêmico do nosso tempo morreu de câimbra na língua de tanto citar. Registremos nossa humilde adequação aos ventos da pós-modernidade, na época do fim das grandes narrativas, o amor deve dar lugar a temas leves. O vestido não será de renda, e deve descer do prego. O amor deve ser relativizado. E mais que tudo, contemos a história por outra perspectiva, que não seja nem a da noiva, nem a do noivo, nem a do padre. E nem a de algum presente que ame a noiva, o noivo ou o padre.

Milan Kundera teve uma boa sacada. Disse que, com Dostoievski, o crime procura o castigo, Raskolnikov não suporta peso de seu crime, e acaba se entregando ao castigo (não sei se é exatamente isso, mas a fórmula é boa: o crime procura castigo); com Kafka as coisas se invertem, o castigo procura um crime, Josefh K. é inocente, mas vasculha seu passado procurando algum delito que explique seu castigo, um castigo sem explicação é insuportável. O crime de Raskolnikov foi premeditado. Joseph K. não poderia premeditar um crime que não cometeu.

Voltemos ao causo do vestido. Um pesadelo se repetia no sono da mãe da noiva, e não era com uma dona que passava e levava-lhe o marido, como no poema do Drummond. A mãe da noiva sabia que seu marido não fugiria de casa. Pensão, divisão de bens...: necessário efeito de dissuasão. Eram mais nobres os tempos de Drummond. Nas pós-modernidade, marido aventureiro é um problema raro. O amor é líquido e a rebeldia também. Rebeldia líquida? Mais à frente falaremos deste fenômeno pós-moderno.

Não era o futuro genro que atormentava o sono da mãe da noiva, ela achava que a filha merecia coisa melhor, mas não se importava tanto com isso. O pai da noiva também não era o melhor marido, mas trabalhava e não deixava faltar nada em casa, nem a festa de casamento da filha.

Examinemos o pesadelo da mãe da noiva. Ela entra na igreja uma hora antes da cerimônia, conforme o protocolo, os convidados ainda não chegaram, só os padrinhos estão reunidos acertando os últimos detalhes. A mãe da noiva percebe que uma das madrinhas do noivo está com um vestido idêntico ao seu. Gritos de terror. O pai da noiva – que estava sonhando com a estagiária – acorda apavorado, teme ter produzido provas contra si mesmo, um nome dito em voz alta, um gemido de prazer ou algo do tipo. O crime procura o castigo, mas não o encontra, dessa vez. O pior não acontece. O pai da noiva percebe que sua mulher está sonhando, e consolo-a com a alegria do condenado que escapa da pena. Acaricia-lhe o pescoço, a nuca... Insustentável leveza dos mimos desaparecidos depois do casamento. O pai da noiva tenta retomar o sonho com a estagiária, mas não consegue.

A vinheta da rádio de uma famosa universidade diz: “ser diferente é nossa semelhança com você.” Na pós-modernidade o desejo de ser diferente é sólido. É preciso se diferenciar. Sou diferente, logo existo. A mãe da noiva quer se diferenciar com seu vestido, o contador deste causo com suas citações (Kundera, Mário de Andrade, Drummond, Nelson Rodrigues).

Como ter certeza de que ninguém compraria o mesmo vestido – matutava a mãe da noiva. Se adquirisse a peça com muita antecedência, corria o risco de ficar fora de moda. Se comprasse todas as peças existentes, estimularia a demanda, o mercado aquecido produziria mais vestidos iguais, em pouco tempo todas as lojas estariam abastecidas, as vendedoras diriam que aquela peça estava saindo bastante... E já era. Comprar todas as peças pouco antes da cerimônia também não resolvia. Se já tivessem comprado... Já era.

E se a mãe da noiva mandasse fazer um vestido? Uma ideia aparentemente genial. Aparentemente porque ela já tinha pensado e descartado essa possibilidade. Não dava para arriscar todas as fichas no imaterial, num vestido líquido. A mãe da noiva não conseguia visualizar o produto final a partir do projeto. Ela viu vestidos na novela, mas tinha dificuldade para dar concretude a suas ideias. A mãe da noiva não conseguia fixar objetivamente sua existência subjetiva: o vestido para o casamento. Exemplificar com um recorte de foto de revista não resolveria, é tênue o limite entre o “tipo esse” e o plágio. Sem falar no risco de alguém ter a mesma ideia e mandar fazer um vestido a partir da foto da mesma revista.

Certo dia Josefh K. acordou e foi detido sem saber por quê. O processo prossegue e ele não descobre do que é acusado, não encontra nenhum crime que justifique seu castigo, se encontrasse, seu fardo seria menos pesado, um castigo sem crime é de lascar. Como escreveu Kundera, o castigo procura um crime. Joseph K. tenta se lembrar de alguma falta que pudesse ter cometido.  A tragédia da mãe da noiva é pior que a de Joseph K., o castigo não desabou sobre ela numa manhã qualquer, pior do que um crime e um castigo, é o vazio total: nem crime nem castigo nem nada. Há tempos a mãe da noiva vinha sonhando com um castigo ou um crime para sair do vazio. Então: com Raskolnikov um crime premeditado procura um castigo; com Joseph K. um castigo procura um crime; com a mãe da noiva procura-se qualquer coisa: um crime, um castigo ou um vestido de casamento, tanto faz. Fecha-se o ciclo. Passamos para a época do tanto faz.

Examinemos o sucedido. Como no pesadelo, a mãe noiva entra na igreja uma hora antes da cerimônia, conforme o protocolo. Os convidados ainda não chegaram, mas os padrinhos estão reunidos combinando os últimos detalhes. A mãe da noiva entra na igreja como um gatuno no local do furto, olha de esguelha e vê o seu vestido no corpo de uma das madrinhas do noivo. É o mesmo vestido azul. Ou teria sido coisa da cabeça da mãe da noiva? Não há tempo para ambiguidades. Desespero sem gritos, “que barulho nada resolve”. Como uma onça na lavanderia, a mãe da noiva se refugia no banheiro, diz ao marido – que não percebe nada – que sentiu uma dor de barriga súbita. A mãe da noiva está acuada e cercada por olhares franco-atiradores, ser vista significará ser fuzilada.

Nossa, leitor! Que ideia genial: por que a mãe da noiva não levou mais de um vestido? Claro que ela levou outro vestido. Como não tinha sido vista, bastava trocar de roupa. Mas antes tinha que ter certeza de que não havia outra pessoa com um vestido igual ao seu uniforme reserva. Espiou pela fresta da porta do banheiro e... O pior aconteceu. A mãe da noiva percebeu que o marrom do seu vestido reserva era parecido com o da batina do padre. “Mulher do padre, não” – indignou-se. Como ela não tinha pensado nisso antes? Seria confundida com o padre! Não adiantava chamar o marido e perguntar se o marrom era o mesmo da batina, seu marido não conhecia nem dois tons de marrom. Pensou em perguntar para sua outra filha se a cor era a mesma, mas sua outra filha estava com olhos tapados, como veremos mais à frente. No mundo pós-moderno os pesadelos são sonhos realistas. A mãe da noiva pensou em suicídio, estava cercada e sem nenhuma chance, quis se enforcar com o vestido. Tomou um calmante e tentou raciocinar. Raciocinou: se sobrevivesse, abriria uma empresa gerenciadora de vestidos ou uma consultoria na área.

O pai da noiva foi chamar sua esposa, bateu na porta do banheiro e perguntou se estava tudo bem. Disse que só faltava ela. A mãe da noiva mandou seu marido buscar remédio na farmácia mais próxima, e ganhou algum tempo. A mãe da noiva procurava um ponto para amarrar o vestido e se enforcar, pensou no registro da água, decidiu se matar nua e pendurada no vestido marrom, que talvez não fosse exatamente da mesma cor que a batina do padre, mas teria que despachar o vestido azul pela privada, para ocultar provas. Procurou o vestido marrom e viu seu telefone celular. Claro. Como não tinha pensado nisso. A mãe da noiva tinha uma última chance. Ponto para as novas tecnologias da comunicação. Façamos uma pequena pausa por aqui.

Caro leitor, se você estiver pensando que o telefone celular da mãe da noiva não vai funcionar... Quanta maldade. Confesso que essa possibilidade também me seduziu, mas meu compromisso com a verdade me impede de atender nossa vontade de crueldade. Nelson Rodrigues com certeza enforcaria a mãe da noiva no vestido marrom, entregando-a nua e pendurada no registro, talvez com água escorrendo por baixo da porta. Eu não farei isso. Estamos no tempo do fim das grandes narrativas. O telefone celular estava carregado e com sinal, havia uma torre de telefonia móvel no topo da igreja, em cima da cruz.

Uma última cartada, a mãe da noiva liga para sua irmã e pede um vestido. Podia ser qualquer um, mas que fosse rápido e que fosse entregue no banheiro da igreja. A irmã da mãe da noiva ficou sem entender, pensou que o padre poderia ter derrubado água benta no vestido da irmã, mas a cerimônia ainda não tinha começado... Ou teria a mãe da noiva tido uma diarreia fulminante – matutava a irmã. Sem entender nada, a irmã da mãe da noiva pegou um vestido verde no cabide e correu para o socorro.

Caro leitor, se você estiver pensando que pode haver alguma outra madrinha vestida de verde... Quanto sadismo.

O vestido verde chegou no banheiro. A mãe da noiva estava verde, o vestido combinou perfeitamente. A mãe da noiva estava decidida a arriscar tudo, vestiu o vestido e foi em direção aos padrinhos, como um soldado que se atira no arame farpado para ganhar uma posição (o vestido era verde como a farda do soldado que se atira no arame farpado). A mãe da noiva consegue se safar, olha aliviada e vê que só há um vestido verde, o seu, não havia nenhum soldado na igreja. Ela agarra o braço do marido que não percebeu nem a troca de vestido e nem que quase ficou viúvo. A mãe está tranquila. Atrasou e perdeu algumas orientações sobre como entrar na igreja, mas já tinha participado do curso de formação de padrinhos e sabia como proceder.

No altar tudo correu bem. O clarim imperial anunciou a entrada da noiva. Todos se levantaram. A irmã da noiva, que também era madrinha, teve uma alergia causada pela maquiagem, ficou com os olhos tapados e coçando, mas heroicamente suportou o martírio, entrou na igreja conduzida por seu namorado e não viu nada, nem que sua mãe havia trocado de vestido. A mãe da noiva sabia que sua filha (a madrinha) devia ir ao médico, mas que fosse depois, não seriam dois olhos tapados que estragariam tudo. A irmã da noiva chorava e coçava os olhos no altar, as outras mulheres acharam bonito e começaram a chorar e coçar os olhos. A irmã da noiva não via nada.  

O filho que protesta, que era padrinho e “não tinha entrado na história”, não chorou. E mais que isso. Se recusou a cortar o cabelo, foi o único padrinho cabeludo, e ficou alegre com isso. O filho que protesta era o caçula e não tinha namorada, entrou acompanhado da melhor amiga da noiva, que chorou como as outras mulheres. O filho que protesta teve um arroubo de rebeldia em pleno altar, percebendo que as mulheres choravam e que os homens olhavam para os respectivos relógios, apalpou o bumbum da melhor amiga da noiva, que protestou com discrição, dizendo bem baixinho: “que que é isso?” O filho que protesta percebeu que os santos e anjos espiavam com raiva, e teve medo. Decidiu que não apalparia mais o bumbum da melhor amiga da noiva, pelo menos não no altar, tentaria alguma coisa no salão de festa, na hora da valsa, que aquele bumbum era qualquer coisa.

Vamos para o salão, para a festa. O filho que protesta dançou a valsa e não apalpou o bumbum da melhor amiga da noiva. Os laços da família sufocaram o filho que protesta, que ficou melancólico, só ele não tinha namorada. Até o primo que bebe estava acompanhado. O filho que protesta se apaixonou pela melhor amiga da noiva, pensava no bumbum dela, passou a festa toda pensando que, da próxima vez, entraria na igreja para trocar alianças com melhor amiga da sua irmã. Tinham crescido juntos, como não tinha reparado nela antes? – indagava-se o filho que protesta.

O primo que bebe foi ao banheiro e dormiu sentado na privada. O filho que protesta ouviu o ronco e acordou o dorminhoco, que abraçou seu salvador, emocionado com tanto carinho e consideração. O filho que protesta ficou feliz com os cumprimentos e abraços que recebeu. Choraram. O primo que bebe convidou o filho que protesta para tomar uns goles, mas este não aceitou, estava apaixonado, e sua rebeldia era liquida, escorria. A mãe da noiva tinha proibido o filho que protesta de beber, ele que protestasse de outra forma, por isso decidiu não cortar o cabelo.

O primo que bebe é filho do tio que bebe, o que reforça a tese do alcoolismo genético. O tio que bebe ficou bêbado mas não dormiu sentado na privada, dançou todas as músicas. Chegou a tropeçar na barra branca do vestido da noiva, mas, em pleno movimento de queda, se reequilibrou e pediu mais uma dose, quem viu o tropeção achou que fosse um novo passo de dança.

O nome da melhor amiga da noiva estava escrito na barra do vestido da noiva, que é como manda a simpatia. O tio que bebe pisou no nome da melhor amiga da noiva, o tio que bebe pisou na tradição. O tio que bebe estava feliz porque conhecia toda a “playlist” do casamento: Robocop Gay (Mamonas assassinas), Y.M.C.A (Village People), Wisky A Go Go (Roupa Nova). O tio que bebe imitava o Roboco Gay e o Village People. O tio que bebe sorria, dançava e cantarolava: “minha pistola é de plástico”. Saltava balançando o quadril para frente e para trás com a mão sobre o sexo e cantarolava: “minha pistola é de plástico, em formato cilíndrico”... O tio que bebe perguntava “do you wanna dance?” E chamava para dançar mexendo o dedo indicador, e fazia beicinho para as meninas, e balançava sua pistola de plástico. A irmã da mãe da noiva lançava olhares de fúria contra seu marido, o tio que bebe, que nem via, só bebia e perguntava cantarolando: “do you wanna dance?”. Abraçava as meninas e “do you wanna dance?” E “minha pistola é de plástico” ...


Vou parando por aqui. Os noivos voltaram a se casar outras tantas vezes em Las Vegas, em ambiente reservado e com direito a cerimônia realizada por um sósia do Elvis Presley. O pai da noiva voltou a sonhar com a estagiária. A irmã da noiva voltou a enxergar dois dias depois, e causou-se dois anos depois. Tio e primo que bebem melhoraram da ressaca dois dias depois. A melhor amiga da noiva não percebeu que seu nome tinha sido pisado pelo tio que bebe. O filho que protesta cortou o cabelo e decidiu casar com a melhor amiga da sua irmã (e se arrependeu profundamente por ter apertado o bumbum dela, não se faz essas coisas com a mulher amada). O filho que protesta baixou o disco do Roupa Nova na internet: “Amanheci sozinho, na cama um vazio [...] Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir.” Ponto para a simpatia do nome na barra do vestido. A mãe da noiva não comentou o “do you wanna dance?” e a “pistola de plástico” do tio que bebe, e sua irmã nada comentou sobre o vestido verde, que foi elogiadíssimo: “quanta elegância, como caiu bem, feito sob medida, perfeito!” A mãe da noiva abriu sua consultoria especializada no gerenciamento de trajes de casamento, e viveu para sempre praguejando contra a indolência e a falta de cultura da mão de obra nacional. A mãe da noiva acabou empregando seu filho, o filho que protesta, que protestou. A consultoria especializada em gerenciamento de trajes de casamento faliu dois meses depois. O narrador deste causo deu suas cajadadas pós-modernosas: foi de Raskolnikov a Roupa Nova, de Joseph K. a Mamonas Assassinas. Ecletismo total. Ponto nestes tempos quantitativos. Já eu, eu mesmo, o autor, termino encafifado, no meio de tanta idiotice e de tanta gente idiota, o narrador inclusive, fico matutando que também eu devo ser um idiota, um pós-modernoso. É possível separar totalmente o narrador do autor? Espero que sim!