COMUNICADO Nº 001/2020


Considerando os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade e liberdade de expressão; comunicamos que este blogue voltará a ser atualizado apenas em 18 de janeiro de 2021.


Dando tudo por bom, firme e valioso; paramos por aqui.

EMMA BOVARY: A CONDENAÇÃO PERPÉTUA


“Lembrou-se então das heroínas dos livros que lera, e toda aquela legião lírica de mulheres adúlteras começou a cantar-lhe na memória, com vozes de irmãs que a seduziam. Tornava-se ela mesma agora parte autêntica dessas imaginações e realizava o longo devaneio da sua juventude, enquadrando-se naquele tipo de mulher apaixonada que tanto invejara. Além disso, Emma sentia uma satisfação de vingança. Já sofrera bastante! Mas agora triunfava, e o amor, por tanto tempo reprimido, jorrava livremente em alegre efervescência. Saboreava-o sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego. O dia seguinte passou-se numa nova doçura. Fizeram juramentos um ao outro. Rodolphe interrompia-a com os seus beijos; ela pedia-lhe, fixando-lhe as pálpebras semicerradas, que a chamasse mais uma vez pelo nome e lhe repetisse que a amava.” (Gustave Flaubert – Madame Bovary)


Emma Bovary provoca paixões violentas, contra e a favor. Uma minoria a favor: como o escritor Mario Vargas Llosa. Uma maioria contra: como o Ministério Público francês e o promotor Ernest Pinard.


Por que Emma Bovary incomoda tanto? Quando li o romance pela primeira vez, senti uma forte identificação com a madame, não era paixão pela mulher: pelos pés, pelo cabelo, pelo corpo... Era consentimento (sentimento compartilhado) com um ser que se rebela e combate contra tudo e contra todos; apesar de tudo e de todos, combate; inconscientemente ou não, combate; com ou sem razão, combate. Luta inglória, egoísta, quixotesca, absurda, sem futuro e sem remissão: luta insana e insustentável, luta de uma mulher contra toda a sociedade. "Acostumada à calma, atraía-se, inversamente, pelos aspectos acidentados. Gostava do mar apenas pelas tempestades e da vegetação apenas quando esta se encontrava dispersa em ruínas." Emma é uma negação inexpugnável. Daí a minha identificação. Emma exige posicionamentos, diz não!


“O único jeito de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua” – escreveu Flaubert em carta citada por Vargas Llossa no livro A orgia perpétua, que esquadrinha Madame Bovary, poro por poro. Além da prosa inteligente e temperada, Llosa se diz apaixonado por Emma, sua identificação é parecida com a que sinto, é puro consentimento (sentimento compartilhado). Exemplificando com palavras do escritor peruano: 1) Porque sua fantasia e seu corpo, seus sonhos e apetites, se sentem oprimidos pela sociedade é que Emma sofre, é adúltera, mente, rouba e, finalmente, se suicida. Sua derrota não prova que ela estava errada [...], mas simplesmente que a luta era desigual: Emma estava sozinha. 2) As ambições que levam Emma a pecar e morrer são aquelas que a religião e a moral ocidentais combateram mais barbaramente ao longo de sua história. Emma quer gozar, não se conforma em reprimir em si essa profunda exigência sensual que Charles não consegue satisfazer porque nem sabe que existe. 3) A rebeldia de Emma nasce dessa convicção, raiz de todos os seus atos: não me resigno a meu destino, a duvidosa compensação do além não me importa, quero que minha vida se realize plena e totalmente aqui e agora.” 4) “A história de Emma é uma rebelião cega, tenaz e desesperada contra a violência social que sufoca o direito ao prazer e à realização de seus desejos.”


A questão se esboçou, para mim, quando manifestei meu apresso e ouvi comentários depreciativos contra Emma Bovary, inclusive de pessoas progressistas. Exemplo: “fazer tudo que se quer é imaturidade e não coragem” – escreveu uma amiga, e eu fiquei pensando no inverso, abrir mão de tudo que se quer é um ato corajoso? Se Emma Bovary foi vítima do capital e do patriarcado, por que nenhuma manifestação de apoio? Um somos todas Emma Bovary! Ou: Emma Bovary, presente! Apoio crítico à Emma Bovary! Respeitamos a luta, mas não concordamos com o método de luta! Por que o silêncio rompido por comentários depreciativos quando as pessoas são forçadas a se manifestar? Por que tanta revolta contra a mulher e nenhuma revolta contra o comerciante que a arruinou? Por que tanta revolta contra a adúltera e nenhuma revolta contra os amantes dela? Minha hipótese: a negação de Emma é radical demais, não deixa brechas, é inaceitável e irreconciliável. Ela recusa a família e a maternidade, o casamento e o patriarcado. No limite, recusa a sociedade estabelecida. Como se fosse pouco, ama fora do casamento (se é que é possível amar dentro do casamento), Emma é adúltera “sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”.  Daí a condenação perpétua. Emma Bovary é um tapa na cara dos moralistas, dos carolas e dos hipócritas.


A história é famosa, Madame Bovary arrastou Flaubert para o banco dos réus por “ofensa à moral pública é à religião”. Intimado a dizer em quem se baseou para criar a personagem, Gustave Flaubert teria respondido “Emma Bovary sou eu”. Na acusação o Ministério Público e o promotor Ernest Pinard. Na defesa o advogado e ex-ministro Jules Sénard. Curiosamente os nomes de ambos terminam “ard”, e não é apenas os nomes que rimam. A batalha foi travada para se saber se o romance de Flaubert é ou não imoral. Para a promotoria era um romance imoral porque Emma não se arrepende, o destino atroz não a redime: ela morre “não porque é adúltera, mas porque o quis”. Fico pensando o que fariam com Emma Bovary se ela fosse capturada viva... Linchamento? Pena de morte por adultério? Esquartejamento público? Para a defesa era um romance moral porque a “assustadora expiação final” serviria para desautorizar o adultério. É certo que, se a defesa ousasse se contrapor frontalmente ao moralismo da acusação, Flaubert seria condenado. Tivesse o autor registrado sua verdadeira convicção no processo, e não em carta a um primo, o desfecho seria diferente: Eu te confessarei, de resto, que tudo isso me é perfeitamente indiferente. A moral da Arte consiste em sua própria beleza, e eu estimo acima de tudo o estilo, e em seguida o Verdadeiro”.


Questão interessante levantada por Vargas Llosa é o promotor Pinard ser autor secreto de versos pornográficos. Velho moralismo? Pregar uma moral conjugada apenas para os outros, na segunda pessoa do plural, o que vale para vós não vale para nós? Ou inveja da escrita revolucionária de Flaubert? Escrita que o próprio promotor reconhece: “uma pintura admirável sob o ponto de vista do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista moral.”


Como notou Vargas Llosa, a escrita de Flaubert é revolucionária porque secciona e reorganiza a realidade, reposiciona e revaloriza objetos (leques, buques, frascos de perfume) e partes do corpo humano (mãos, unhas, pulsos), ou seja, humaniza objetos (recriados por palavras e frases gregárias), coisifica pessoas (retalhadas por palavras e frases cortantes). Enquanto em Madame Bovary as coisas se espiritualizam e se animam, acentua-se a materialidade dos homens.” O resultado é um quadro complexo formado por pessoas e coisas em igualdade de importância e valor. Um trecho destacado por Vargas Llossa ressalta a técnica de Flaubert: 


“Na fila de mulheres sentadas, os leques pintados se agitavam, os buquês semiencobriam os sorrisos, e os frascos de perfume com tampa de ouro volteavam nas mãos entreabertas, cujas luvas brancas marcavam o formato das unhas e apertavam a carne nos pulsos. Os enfeites de renda, os broches de diamante, as pulseiras de medalhão tremeluziam nos corpetes, cintilavam nos peitos, tilintavam nos braços nus. As cabeleiras, bem coladas na testa e torcidas na nuca, tinham, em coroas, em cachos ou em ramos, miosótis, jasmins, flores de romã, espigas, centáureas. Pacíficas em seus lugares, as mães carrancudas usavam turbantes vermelhos.”


Curioso notar que, a acusação contra Madame Bovary, além da ausência total de arrependimento da adúltera, menciona a mistura de “imagens voluptuosas a elementos sagrados”, ou seja, é a escrita de Flaubert que incomoda o Ministério Público. A forma determina o conteúdo e o inverso é verdadeiro, dialeticamente. Ao pintar imagens voluptuosas e elementos sagrados com o mesmo brilhantismo e no mesmo quadro, o romancista igualou umas e outros, daí a raiva dos moralistas, como o promotor que vê no romance a “poesia do adultério”, mas secretamente escreve versos pornográficos. Desconfio que, mesmo que seguisse o conselho de Drummond e tentasse ser "docemente pornográfico", o promotor jamais seria capaz de transformar igrejas em gigantescas alcovas, como na escrita de Flaubert:


"León, a passos lentos, caminhava rente à parede. Nunca a vida lhe parecera tão boa. Ela chegaria dentro de pouco tempo, adorável, agitada, espiando atrás de si os olhares que a seguiam e com seu vestido de folhos, seu lornhão dourado, suas botinas finas, com toda a elegância que ele ainda não saboreava e com a inefável sedução da virtude que sucumbe. A igreja, como uma gigantesca alcova, disporia-se em torno dela; as abóbodas inclinariam-se para recolher na sombra a confissão de seu amor; os vitrais resplandeceriam para iluminar seu rosto e os incensórios queimariam para que ela aparecesse como um anjo, no vapor dos perfumes."


Por fim a pergunta inicial. Por que Emma Bovary incomoda tanto? A resposta passa pela negação radical dela e pela escrita de Flaubert, como no trecho acima. Num quadro mecânico em que os objetos são personificados e os homens são coisificados, em igualdade de condições e de status, Emma Bovary se destaca, ela é demasiadamente humana num mundo absolutamente desumanizado: realiza desejos; frustra-se; tenta novamente; ama fora do casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”); se rebela contra a condição de esposa e de mãe (“como essa criança é feia” – murmurou no leito, ao lado da filha que dormia); e, sobretudo: as coisas se submetem a ela, como a igreja, as abóbodas, os vitrais e os incensórios, no trecho citado acima. Quem vai “dominar essa mulher”? – pergunta o promotor Pinard em sua peça de acusação. A reposta é nada nem ninguém: nem o tempo, nem os tribunais, nem os moralistas, nem a condenação perpétua.   
TRUMP, O OCIDENTE, O CHANCELER, O EX-PREFEITO, O ROMANCE E A CRISE

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A nomeação do futuro ministro das relações exteriores do governo Bolsonaro causou certo alvoroço. O sujeito, Ernesto Araújo, não cabe nos protocolos diplomáticos: afirma sua crença religiosa apesar de compor o alto escalão do Estado, que, por enquanto, é laico. O religioso atravessa a fronteira onde começa o diplomata, sem peso na consciência.

Como era desconhecido, alguém teve a ideia de procurar o que o chanceler escreveu, foi quando encontraram o ensaio Trump e o Ocidente.¹ Publicaram-se algumas dezenas de notícias sobre o ministro e suas ideias, mas sem ler atentamente o ensaio e muito menos o blog do sujeito, ou seja, com a superficialidade característica da mídia empresarial.

Em palestra nos EUA, analisando o cenário pós-eleitoral, o ex-prefeito de SP e candidato derrotado à presidência, Fernando Haddad², afirmou que Araújo classifica a Revolução Francesa como marxista. Foi o que me fez procurar o ensaio Trump e o Ocidente. Como alguém poderia ser tão tolo? Primeira surpresa. Tolo é Haddad, que se meteu a falar de um escrito que não leu, ou que conheceu pela mídia empresarial, porque está lá, textualmente:

“Dessa última década do século XVIII e começo do século XIX surgem todas as linhagens espirituais e políticas que disputam o mundo até hoje. Pode-se argumentar que qualquer corrente política, hoje, descende intelectualmente de Babeuf e Robespierre ou de Goethe e Chateaubriand.”

O marxismo é herdeiro da Revolução Francesa. É possível pensar que sem esta não haveria aquele. O pensamento de Marx pode ser lido como uma radicalização da Revolução Francesa. É a Comuna de Paris, em 1871, esfregando na cara da burguesia que não haveria liberdade, igualdade e fraternidade sem a socialização dos meios de produção.   

Ao dizer que Araújo disse que a Revolução Francesa era marxista, ou ex-prefeito não leu o ensaio do chanceler, ou não entendeu, ou distorceu deliberadamente as ideias. Parece-me que a primeira opção é mais plausível.

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Trump e o Ocidente inicia com uma imagem do futebol americano, o que sugere a afiliação ideológica e a pretensão literária do autor. Conforme a leitura avança, surgem comparações e ironias, reforçando a suposição de que há um veio escritor no chanceler, o que não lhe dá razão, longe disso.

Camões, Jung, Pessoa, Horácio, Heródoto, Virgílio, Platão, Spengler, Heidegger, Nietzsche e outros são lançados no ensaio do chanceler.

Para Araújo, o ocidente surge quando os gregos derrotam os persas na batalha de Salamina. O autor localiza ali o nascimento da noção de pátria. Ele cita Ésquilo, que diz que em Salamina os gregos cantavam: “Avante, ó filhos de helenos, libertai a pátria, libertai vossos filhos, vossas mulheres, os templos de vossos deuses, os túmulos dos ancestrais, agora mais que nunca”. Segundo Araújo, Salamina marca o nascimento do Ocidente: como vitória militar e como “transposição literária” pela pena de Ésquilo. Em Salamina, segundo o chanceler, estavam em questão a família, a herança cultural e os deuses gregos, e não conveniências geoestratégicas, como rotas comerciais. Araújo desloca a análise dos territórios geográficos e econômicos para o “território do espírito”, reivindica que a geopolítica seja completada pela teopolítica. Trocando em miúdos: é o velho e surrado idealismo, a primazia do espírito sobre a matéria. Araújo3: “Tudo existe graças ao logos, enquanto princípio mantenedor e também criador.” O limite é que as ideias e fatos surgem e desaparecem por milagre e sem conexão com a realidade material: como se a ideia de pátria não tivesse relação com a história social e econômica, como se aquela precedesse e determinasse esta (Araújo: “a pátria e a liberdade já surgem como conceitos inseparáveis naquele dia no final do verão de 480 a.C.”); como se Trump quisesse reviver o Ocidente, e não expandir mercados consumidores e fornecedores; como se as rodas da história fossem giradas pela vontade de um homem (Trump), e não pelas mãos e pelo suor do rosto de bilhões de trabalhadoras e trabalhadores; como se a guerra contra o Islã fosse uma luta “pela preservação do espaço espiritual do Ocidente”, e “não um projeto imperialista.” O real aparece invertido, como se o chanceler enxergasse o mundo pelo retrovisor.

O pensamento idealista do ministro começa e termina em Deus: “Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar-nos, dar-nos sentido – se Ele o quiser, se nós O quisermos”.¹

A novidade é que o velho e surrado idealismo em versão tupiniquim – tradição, família e propriedade privada – saiu do armário: bate no peito e grita truco. Podem ser feitas muitas críticas ao ensaio do chanceler, menos que ele esconde o que pensa. Para o bem e para o mal, Trump e o Ocidente ultrapassa o reformismo surdo-mudo, que comunica nada a ninguém. Exemplo: enquanto Haddad diz que a crise é financeira e a questão é domar o capital financeiro² (como se fosse possível?); para Araújo o Ocidente é um time que está perdendo uma partida a poucos segundos do fim, e joga por uma bola, que está com Trump. A crise é muito mais profunda para Araújo do que para Haddad; este quer se projetar como maquinista do capital, aquele sente que o modo de produção capitalista é um cargueiro afundando. Sendo assim, a proposta conservadora e reacionária do último é mais concreta do que o reformismo surdo-mudo do primeiro, o que ajuda a explicar o fortalecimento da extrema-direita, que lança a tradição e a família como botes salva-vidas.

Se o modo capitalista de produção é um cargueiro afundando, se não se coloca sua superação (o reformismo passa longe do socialismo), se o contraponto à extrema-direita é o reformismo à lá Haddad: se impõe o salve-se quem puder, e o programa da extrema-direita torna-se a opção menos pior. Se há no mundo milhões de homens e mulheres que não servem sequer para serem explorados pelo capital, que prescinde das suas respectivas forças de trabalho; se não se coloca o socialismo como alternativa; só resta controlar e reprimir a massa de excluídos. É aqui que o programa da extrema-direita supera o reformismo surdo-mudo, porque assume e defende abertamente aquilo que o outro diz que não faria, mas fez e faz. Mantido o capitalismo, a repressão é inevitável, a diferença é que a extrema-direita defende abertamente a militarização e a violência, enquanto o reformismo surdo-mudo condena ambas apenas no discurso, que se autoproclama democrático (mas quem estava nas ruas em junho de 2013 sabe bem o que Haddad fez naquele outono).

3
Com suas lentes tripartites (tradição, família e propriedade privada), Araújo vê em Trump um legítimo herdeiro da batalha de Salamina, alguém disposto a ir à guerra em nome da família e da tradição (patriarcal e monogâmica para as mulheres, com acesso liberado às zonas de tolerância para os homens). O idealismo surrado não permite que o chanceler veja que, na aparência, batalhas podem ser travadas em nome da família e da tradição, mas na essência, a questão fundamental é a defesa e a ampliação da propriedade. Mais precisamente: fornecedores de matérias-primas, novos mercados, rotas comerciais serão alvos de Trump; a religião e os costumes dos povos atacados importam apenas para os fabricantes de justificativas ideológicas.

Para o chanceler, não é o modo capitalista de produção que afronta fronteiras e altera valores e tradições, provocando fluxos migratórios, questionando a família patriarcal etc. Porque analisa a construção social por cima, o ministro só vê o telhado (ideias) e não as fundações (estrutura econômica). Para ele, a crise capitalista não tem relação com a queda das taxas de lucro, tendência prevista por Karl Marx e até pelo insuspeito David Ricardo; o problema, para o chanceler, é o “niilismo” dos “philosophes ateus anticristãos”, que estariam por trás da Revolução Francesa, que é enxergada como um movimento contrário ao Ocidente fundado em Salamina.

A crise do capital força os defensores da propriedade privada dos meios de produção, como o chanceler, a renegar a herança burguesa. O surrado idealismo tupiniquim condenar a Revolução Francesa atesta que, para manter o capitalismo, o pensamento burguês foi forçado a abrir mão de qualquer perspectiva democrática e/ou progressista. Ou seja, se o capital foi progressista nos seus primórdios, atualmente ele é um cadáver insepulto que ameaça a saúde coletiva do planeta. Araújo usa a tradição e a família como botes salva-vidas no naufrágio do modo de produção capitalista.

A visão invertida da realidade é hilária: “O globalismo surgiu quando alguém percebeu que o consumismo era o melhor caminho para o comunismo.”4 O consumismo deixa de ser um imperativo do capital e se transforma em estratégia comunista... Mas a possibilidade de superação do capitalismo aparece no retrovisor do chanceler. Este é o ponto interessante. Enquanto para o reformismo surdo-mudo a história acabou e trata-se de administrar o possível; para o velho e surrado idealismo tupiniquim a questão é se reposicionar para combater o novo.   

Seja como for, pensar que o Ocidente é uma equipe que, no final da partida, depende de uma bola que está com Trump... Que ideia atroz! Trump? Uma bola? Se a imagem do chanceler estiver correta, o Ocidente já era!

4
As polêmicas... Insustentável doçura do bate e rebate. Uma das qualidades mais nobres de um escritor é fazer rir: Cervantes, Kundera, Drummond, Machado, Nelson Rodrigues, Veríssimo (o filho), Hasek e outros. Quanto ao chanceler, questão intrincada é definir se suas piadas são engraçadas, ou se ele próprio provoca o riso por se transformar em piada. Como quando diz que é possível comprovar empiricamente a existência de discos voadores, bastando, para tanto, que algum apareça à luz do dia e se mostre a todos; o mesmo podendo ser dito de um corvo branco, porque os corvos serem pretos não garante absolutamente que não possa aparecer um branco; mas a existência de um marxista intelectualmente honesto, diferentemente dos discos voadores e dos corvos brancos e de acordo com o chanceler, é uma impossibilidade, porque o marxismo teria nascido da mentira e obrigaria a mentir.5 Independente de saber se a graça vem da piada ou do autor que se transforma em piada, uma coisa é certa, ainda que não parta para o combate franco, o chanceler identifica seus inimigos (marxistas), e ataca-os com as armas que dispõe.

Em polêmicas a melhor defesa é o ataque e perguntar é sempre melhor que responder. No ensaio Trump e o Ocidente, o chanceler provoca:

“O Ocidente nasceu interrogando o sentido das palavras, mas ultimamente desistiu. Se Sócrates chegasse hoje e, usando seu famoso método, começasse a perguntar: ‘o que é racismo?’, ‘o que é justiça social?’, ‘o que são direitos humanos?’, ‘o que é um direito?’, ‘o que é humano?’, e se pusesse a desmascarar a inanidade intelectual e a superficialidade destes e de outros conceitos, seria novamente condenado a beber cicuta.”

Mas e se Sócrates voltasse e fosse bater um papo com o ministro: “o que é globalismo?”; “o que é marxismo cultural?” e, sobretudo, “ se o ocidente é, de certa forma, uma criação literária, como o Sr. diz, e se o Ocidente nasce também como transposição literária, com Ésquilo,  por que o Sr. exclui o romance, como se este não fosse parte fundamental da história do Ocidente?”

5
Por que o chanceler, apesar do suposto veio escritor, separa o romance da história do Ocidente? Por que ele apaga o romance da história? Por que o defensor da família separa o pai (Ocidente) do filho ilustre (romance)? Por que o ministro cita o presidente estadunidense, que associa o Ocidente à arte (“as obras de arte inspiradoras que honram a Deus”), e nada diz sobre o romance?

Arrisquemos-nos por estas veredas perigosas. Araújo exclui o romance porque teme este filho pródigo do Ocidente, se pudesse ele abortaria o romance, este filho zombeteiro do Ocidente que nasceu entre a França de Rabelais, a Espanha de Cervantes e a Irlanda de Sterne. Romance: a “mais européia das artes”.6

Milan Kundera7: “O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.” Porque interroga, porque mostra a insuperável ambigüidade da vida e porque rasga as cortinas das zonas de tolerância: o chanceler não tolera o romance. Emma Bovary e Ana Karênina: hipocrisia da família e da tradição patriarcal. O bom soldado Svejk: covardia das guerras. Brás Cuba: hipocrisia da burguesia brasileira.

O romance é banido do pensamento do chanceler pela mesma razão que tudo que ameaça o kitsch é banido da vida. E o que é o surrado idealismo tupiniquim – tradição, família e propriedade – senão um grande kitsch?

Kundera7 outra vez: “Se digo totalitário é porque, nesse caso, tudo aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), e também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o sacrossanto amai-vos e multiplicai-vos.”

Araújo teme o romance e a herança de Cervantes porque ambos depõem contra o Ocidente carola. Daí a ilustre ausência do romance no pensamento do chanceler. Poderia dizer que é mais fácil encontrar um corvo branco do que o surrado idealismo tupiniquim ser honesto intelectualmente, mas basta destacar que a amputação do romance da história do Ocidente testemunha a decadência do pensamento burguês. O romance é um tapa na cara do idealismo carola!

6
Num arroubo de sandice, o chanceler registra que “alma humana é nacionalista”.¹ Ora, ora, ora. Se o conceito de pátria nasceu na Grécia no final do verão de 480 a.C, durante a batalha de Salamina, como quer o ministro, é de se pensar que a “alma humana”, que segundo ele é “nacionalista”, deve ter surgido mais ou menos na mesma época.

O raciocínio acima vai dar na legitimação da conquista e da submissão de povos. Mas por aqui nos limitemos a refletir sobre o nacionalismo do chanceler? Que nacionalismo é esse? Curioso notar que o Brasil quase não aparece nos textos do ministro. Nem Pixinguinha, nem Machado de Assis, nem Aleijadinho, nem Drummond, nem o samba, nem o choro, nem o futebol. Sintomático Araújo começar seu ensaio com uma imagem do futebol americano, jogado com as mãos; e não com o futebol jogado com os pés, esporte no qual o Brasil é referência. O chanceler troca os pés pelas mãos.   

Mas o chanceler não morre de amores por Hollywood, nem outros enlatados. É o idealismo carola que faz o ministro aderir aos USA das seis às seis, sem reservas e sem ressalvas. Araújo: “a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA”¹. Ele novamente: “Não se deve ler Trump pela chave das relações internacionais ou da ciência política, mas sim da luta titânica entre a fé e a sua ausência”.¹

Ao mesmo tempo em que acusa o marxismo de negar o gênero e a nacionalidade, Araújo inaugura o nacionalismo transpátrida, que não se reconhece no país natal e bate continência para o sub do sub dos EUA.

7
Excetuando-se uma referência breve às Teses sobre Feuerbach, não há indícios de que Araújo tenha lido Marx, mas, mesmo assim, este é o principal inimigo daquele. Imagine, de John Lennon, é o pior pesadelo do ministro: um mundo sem paraíso, sem inferno, sem religiões e sem fronteiras.6 O chanceler não percebe que é o capital – e não o marxismo – que cria condições para a existência do mundo cantado por Lennon (sinal de que Araújo não leu Marx).

O marxismo levar a culpa pelas possibilidades colocadas pelo capital é sinal inequívoco de que o chanceler troca os pés pelas mãos. Mas vale a pena ler os textos do ministro. O pensamento de Araújo é a nudez sem véus do idealismo carola. Por falta de referencial teórico e porque analisa apenas ideias – e não a estrutura econômica da sociedade –, Araújo¹ apenas intui e enxerga a crise de forma parcial, “como decadência e declínio da cultura”: o Ocidente está perdendo a partida e joga por uma bola que está com Trump. O correto seria trocar Ocidente por capital, mas é exigir demais do chanceler.

Ao registrar que o ocidente está fundado sobre “batalhas e milagres, paixões e guerras, a cruz e a espada”, e não sobre tolerância e a democracia¹, o chanceler dá a entender que tudo vale a pena se for para garantir a tradição, a família e a propriedade privada: é a nudez sem véus do idealismo carola. O discurso é mais realista do que a “narrativa” do reformismo surdo-mudo, que insiste na defesa da “democracia”, como se esta fosse possível na era da crise do capital. Para usar a imagem de um amigo comunista: é mais fácil ensinar um leão a comer alface.

Por fim, os arroubos de sandice e o desespero do chanceler são o reflexo da atualidade do pensamento de Marx, único referencial capaz de reorganizar um mundo em decomposição, simples assim!

REFERÊNCIAS

1 Araújo, E. H. F. TRUMP E O OCIDENTE. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf. Acesso em: 30 de nov. 2018.

2 HADDAD APONTA O CENÁRIO PÓS-ELEITORAL EM NOVA YORK. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZrznFDCSGQc. Acesso em 04 de dez. 2018.

3 Araújo, E. H. F. VIVA A POLARIZAÇÃO. 

4 Araújo, E. H. F. A NAÇÃO ESTÁ VOLTANDO. 

5 Araújo, E. H. F. OBJETOS VOADORES NÃO IDEOLÓGICOS. 

6 Kundera, M. OS TESTAMENTOS TRAÍDOS. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

7 Kundera, M. A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER. 63 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


KAIS -1

Estes parágrafos são o fechamento da série (Kais)  que publiquei. A série contém: 1 pequeno ensaio sobre a poética do haikai (prelúdio), 5 fotos, 5 haikais de minha autoria e 5 versões/traduções do haikai da rã, escrito por Bashô em 1686, e retrabalhados por poetas e tradutores de lá para cá. Todas as versões/traduções foram selecionadas na Revista Brasileira de Haicai - Caqui. Estes parágrafos nascidos como epílogo têm um quê de prelúdio, e se a explicação contraria o espírito do haikai, o movimento o caracteriza: partir, chegar, partir para chegar, chegar para partir, sempre.    

Haikai: movimento fotografado, poema curto que fotografa o movimento, em geral demarcando as estações do ano: folhas caindo, andorinhas dançando, o salto de uma rã e até um caramujo escalando o Monte Fuji. É o tal kigo (ki = estação, go = palavra), que demarca as estações com palavras. Nos haikais desta série: férias de verão, folhas secas, manhã de primavera. 

Como publiquei 5 haikais de minha autoria, resolvi selecionar 5 traduções/versões para o haikai da rã, de Bashô, porque dois dos meus poemas fazem referência ao mestre japonês, então, para homenagear e para contextualizar, selecionei 5 traduções/versões. Foi quando o espírito do haikai se impôs, como se o pequeno poema nascido no Japão fosse uma unidade inquebrantável, como se nem as palavras e nem sequer a ordem das palavras pudessem ser alteradas. Forçado a escolher, fiquei com os haikais mais enxutos e mais minimalistas, deixando de fora poetas como Caetano Veloso, Décio Pignatari, Estrela Ruiz Leminski, Guilherme de Almeida, Haroldo de Campos, Olga Savary, João Guimarães Rosa e até Manoel de Barros. 

Relendo a Antologia da Rã fiquei pensando se, na versão/tradução de Leminski, a rã salta dentro da lagoa ou se salta o som da água. Também fiquei pensando se o meu “sua rã salta dentro da gente” saiu a partir de “uma rã mergulha dentro de si”, de Jorge Braga, porque quando escrevi já tinha lido a antologia. Em outros carnavais aprendi que alguns versos nossos podem ser de terceiros: como um gato do vizinho caminhando no nosso quintal, como rãs saltando dentro da gente. Enfim, o certo é que as duas rãs em questão vêm de Bashô. Então, tranquilo. Quem quiser receber a série completa, em PDF, basta solicitar por e-mail enviando mensagem para jancenek68@gmail.com  

Espero que gostem. 


5 VERSÕES/TRADUÇÕES PARA 1 HAIKAI DE BASHÔ

Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
(Cecília Meirelles – Escolha o seu sonho, 1974)

O velho tanque -
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
(Paulo Franchetti e Elza Doi – Haikai, 1990)

velha lagoa
o sapo salta
o som da água
(Paulo Leminski - Matsuo Bashô: A Lágrima do Peixe, 1983)

O velho tanque
uma rã mergulha
dentro de si.
(Jorge de Souza Braga – O gosto solitário do orvalho, 1986)

Nem grilo, grito, ou galope;
No silêncio imenso
Só uma rã mergulha - plóóp!
(Millôr Fernandes - Hai-kais, 1986)



KAIS 1

Para Marx, os cientistas seriam desnecessários se houvesse correspondência imediata entre a aparência e a essência das coisas. O mesmo vale para arte, se o belo se oferecesse de imediato, os artistas seriam desnecessários. É, talvez, no haikai que esta verdade se coloca com mais força.

Nascido no Japão há mais de três séculos, o haikai é um poema curto que capta sutilezas do mundo: rã mergulhando no lago, caramujo escalando o Monte Fuji, gritos brancos dos patos no mar escuro. Para Octavio Paz, o haikai é o instante reconquistado.

É talvez por isso que o haikai conquistou não só instante, mas o Ocidente. Condenado a andar sempre na mesma direção e sem olhar para os lados, o homem ocidental priva-se das sutilezas do mundo. Isso para não falar dos homens contemporâneos, que vivem debruçados sobre telefones celulares, como gado pastando. O barulho dos motores sufocou o canto dos pássaros, os edifícios bloquearam o horizonte, a fumaça dos escapamentos substituiu os perfumes dos jardins, rios e córregos foram canalizados. Se é assim e contra a sua vontade, o haikai ganha ares de resistência, mas esta não é a essência daquele. 

Escrever haikais é fotografar o movimento: neblina cobrindo a serra, borboleta ziguezagueando, chuva tocando a terra seca. Sempre e sempre o movimento: primavera - verão - outono - inverno; menino - homem - velho; vento - nuvens - chuva - sol; vida - morte; e assim sucessivamente. A beleza que vem da leveza da transformação. Exemplo. Hattori Tohô (1657-1730)¹:

O ar tremeluz –
A areia sobre o rochedo
Vai caindo aos poucos.

Sinal dos tempos: há mais “poetas” do que leitores de poesia. É a grafomania: a mania de escrever livros. O pior não deve acontecer, mas se um dia a poesia vier a óbito, a causa da morte será a existência de milhões de “poetas” e nenhum leitor de poesia. E poetas está entre aspas porque não há poeta que não seja leitor de poesia. É preciso viver para a poesia – diria Drummond –, e isso significa inclusive e principalmente: ler poesia – acrescento eu.  

Nada mais avesso à essência do haikai do que a vontade de aparecer característica do tempo presente: grafomania, fotos fazendo biquinho, corpos rasurados por tatuagens. Tudo demasiadamente igual: mercadorias disputando espaço nas gôndolas. Contra a vontade de aparecer a arte de desaparecer? Mirek no Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera? O Dr. Pasavento no romance homônimo de Enrique Vila-Matas?

Não para o haikai, que não quer nem aparecer nem desaparecer, quer se integrar: pé na terra, brisa no rosto, música do vento, viver e morrer. Escrever haikais é se refrescar numa nascente: não é o cais de que se parte, é o cais revelado entre o nevoeiro, descoberto na longa viagem, para onde se retorna, sempre. Os escritores costumam ir do conto ao romance, do menor ao maior; os poetas costumam ir do poema ao haikai, do maior para o menor. Não para desaparecer, mas para se integrar.

Desconfio dos poetas que não foram seduzidos pelo haikai. Talvez porque queiram mais aparecer do que se integrar. Talvez porque não sejam leitores de poesia. A questão não é se adequar a regras pré-estabelecida: métrica, rima e por aí vai. A questão é a precária possibilidade de fotografar o movimento com palavras: a pulsação da terra e a brisa da manhã, o perfume dos jardins e o mistério da noite, o curso dos dias e das estações, o tempo e sua passagem, a música do vento e a dança das águas, ondas quebrando no cais, a vida e a morte.         

NOTAS

1 Este e outro haicais podem ser encontrados em: Portal NippoBrasil