CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A POÉTICA DO ATRITO E DA ANARQUIA

 

É interessante escrever colunas periódicas porque as datas de publicação são conhecidas antecipadamente, o que permite planejar os temas. Hoje é 31 de outubro de 2022. Eu poderia falar sobre as eleições brasileiras, como todo mundo, mas havia me organizado para escrever sobre Carlos Drummond de Andrade – que nasceu em Itabira/MG há exatos 120 anos – e resolvi manter o planejamento.

 

Colocar palavras na boca do povo é para poucos. Conheci Drummond pela expressão “E agora, José?” que as pessoas repetiam quando a coisa apertava. Tempos depois descobri que a pergunta era na verdade um verso do poeta de Itabira. Dizem, por lá, que Drummond teria escrito o poema José para o irmão de mesmo nome, que, apaixonado, invadiu um palacete a cavalo para levar a amada. Mas foi capturado e surrado pela família dela (Invadir a cavalo um imóvel com corredores e escadas... Que ideia besta...). O tal palacete foi transformado, posteriormente, no hotel central de Itabira, hospedar-se por lá é como voltar um século no tempo. Nas horas mais silenciosas, após o almoço ou no meio da madrugada, quase se ouvem os fantasmas do passado caminhando pelo piso de madeira. Drummond realmente teve um irmão chamado José, mas não sei se a história contada sobre ele é real. Manoel de Barros afirmou que só dez por cento do que escrevia era mentira, enquanto noventa por cento era inventado. Talvez o mesmo valha para a história que se conta sobre o irmão de Drummond. Talvez a invasão ao palacete seja uma invenção coletiva do povo itabirano.

 

Em Itabira, chama a atenção o fato de Drummond não ser unanimidade, apesar do Museu de Território Caminhos Drummondianos, da Casa Museu Carlos Drummond de Andrade e da réplica da Fazenda do Pontal (desmontada e recriada pela Companhia Vale do Rio Doce em outro local, após a transformação do terreno original em depósito de rejeitos). Em Cordisburgo, por exemplo, a adesão é total ao escritor da cidade, Guimarães Rosa. Em Itabira o mesmo não é verdadeiro. Para justificar a desconfiança, os itabiranos argumentam que o poeta se referiu à cidade como sendo apenas uma fotografia na parede. Eu ficava em posição desconfortável, na defensiva, afirmando que ninguém penduraria na parede algo que não fosse importante. Respondiam, então, que tanto o poeta não gostava da cidade que não voltou para lá. Ao que eu contra-argumentava que a Itabira devastada pela mineração não era a mesma de Drummond, que talvez evitasse visitas exatamente para se preservar da “derrota incomparável”, antevista por Tutu Caramujo no poema Itabira. Se Drummond tivesse acompanhado in loco a destruição provocada pela mineração, talvez não escrevesse os poemas memorialísticos da série Boitempo. A devastação foi tão forte e tão rápida que poderia liquidar até memórias.

 

Minha impressão é que a desconfiança itabirana em relação a Drummond tem mais a ver com o que chamo de poética do atrito e da anarquia do que com questões biográficas. É como se o poeta escrevesse condicionado pela luta que travava com as palavras, sem controle prévio sobre o resultado final da batalha. Captando possibilidades à medida que atritava uma palavra na outra. Expressando não exatamente o que ele próprio queria dizer, mas o que as palavras reunidas falavam, como se elas ganhassem vida quando agrupadas e posicionadas nos versos. Ocorre que às vezes o resultado final se choca com as crenças, convicções e esperanças dos leitores (quem sabe até do próprio poeta): Itabira reduzida a uma fotografia na parede [1]; Tutu Caramujo anunciando a “derrota incomparável” numa época de fartura ilusória, ao mesmo tempo que os ingleses compravam as minas [2]; Jesus sonhando com outra humanidade enquanto os romeiros faziam pedidos [3]; Deus em crise existencial, se perguntando por que fez o mundo [4]; as modernas instalações de gás, úteis para o suicídio [5].

 

Certa vez, num debate após a exibição de um se seus filmes, o cineasta Júlio Bressane foi perguntado sobre o significado de uma determinada cena. Respondeu que não teria filmado se soubesse exatamente o que significava, que filmou porque não sabia ao certo o significado das imagens. Tenho a impressão de que Drummond poderia responder de forma parecida quando perguntado sobre seus poemas, mas o poeta pouco comentava a própria poesia, deixava, como deve ser, que as palavras e as construções poéticas falassem.   

 

Antes de prosseguir, vale registrar que Drummond conseguiu um feito interessante. Expôs seu programa poético não em manifestos, mas em versos: O lutador, Consideração do poema, Procura da poesia. Neste último o bardo registrou: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.” O complemento é: “Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos.” Deslocamento interessante. A poesia não está no que se pensa e sente, mas sim em como expressamos pensamentos e sentimentos. O melhor exemplo é No meio do caminho. Com palavras e versos repetidos, o poeta imortalizou a pedra no meio do caminho, transmitiu a chateação que sentia e muito mais [6].

 

A poesia pode nascer de acontecimentos, fatos e imagens. Mas a força dos poemas está nas palavras e construções, que, se não forem apropriadas, deixam os versos burocráticos, cartoriais e flácidos. O poeta – com palavras e outros recursos – fecunda acontecimentos, fatos e imagens, como uma pedra no meio do caminho ou uma flor nascendo no asfalto. A poesia também pode nascer de palavras colhidas no reino das palavras. Tempo, fogo, ferro ou qualquer outra (as mais espessas, as minerais são preferíveis, diria João Cabral de Melo Neto). Grávido de palavras, o poeta dá à luz, ou à escuridão, que o importante é colocar poesia no meio do caminho. Exemplo. Drummond apanha a palavra flor, que é portadora de forte carga simbólica. Esfrega (atrita) flor em palavras que são suas antíteses: concreto, asfalto, polícia e tráfego. Trabalha como um artesão, um jardineiro, modela palavras como se fossem vasos, ou plantas no vaso. O manuseio vai revelando sentidos ocultos que existem como possibilidade e inquietação: antieuclidianamente – para falar a la Drummond. O resultado final é imprevisível. Poesia é quando as palavras oferecem a outra face, que “cada uma tem mil faces secretas sobre a face neutra” [7]. Com Drummond, uma flor nasce na rua e ilude a polícia. É feia, antiparnasiana, mas é uma flor e rompe o asfalto. O belo não está na flor, “sua cor não se percebe, suas pétalas não se abrem” [8]. Como queria Mário de Andrade [9], a beleza está na deformação do real: na flor furando o asfalto. Efeito produzido pelo atrito das palavras posicionadas e reposicionadas, como o fogo que nasce de gravetos atritados. O poeta esfrega (atrita) a flor no asfalto, até rompê-lo. O poema é anárquico e sem governo: uma explosão de possibilidades e inquietações. A poesia drummondiana é imprevisível, sem esperanças e sem opção. “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã” [10].

 

Postas no papel e atritadas as palavras percorrem veredas improváveis, sem governo. O sentido do poema não está colocado com antecedência e às vezes ultrapassa o poeta. Se não fosse assim seria inútil. Se poesia é quando as palavras oferecem a outra face, é também quando o resultado final surpreende o próprio autor. Daí a imprevisibilidade. O sentido do poema não está colocado definitivamente, porque o tempo e a vida são a matéria do poeta, e as palavras “rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” [11]. Tinha uma pedra no meio do caminho era uma coisa em 1928, quando o verso foi publicado e ainda não existia a Companhia Vale do Rio Doce. Tinha uma pedra no meio do caminho pode ser lido de outra forma tempos depois, com a destruição provocada pela Companhia Vale do Rio Doce: nem o Pico do Cauê – a pedra que brilhava e que deu nome a Itabira – sobreviveu à mineração. 

 

A poética drummondiana é anarquia e atrito, percorre veredas improváveis e imprevistas, sem governo. Causou, como não poderia deixar de ser, desconfiança e contrariedade. Itabira transformada em fotografia na parede (na reclamação dos itabiranos). A pedra no meio do caminho que enfureceu a crítica (o poeta chegou a recolher, guardar e publicar comentários depreciativos que recebeu no livro Uma pedra no meio do caminho – biografia de um poema).  Por outro lado e ao mesmo tempo, a poesia drummondiana é um capítulo sublime da literatura produzida no Brasil.

 

Notas

[1] Confidência do itabirano.

[2] Itabira.

[3] Romaria.

[4] Tristeza no céu.

[5] Edifício esplendor.

[6] Ainda aquela pedra.

[7] A procura da poesia.

[8] A flor e a náusea.

[9] Prefácio interessantíssimo.

[10] O lutador.

[11] A procura da poesia. 

Publicado originalmente no Passa Palavra.

 

AQUELAS HORAS EM BAGÉ

 

De Bagé eu conhecia o analista, o truculento e hilário personagem que cura crises existenciais com joelhaços e pescoções [1]. Mas o próprio autor, Luis Fernando Veríssimo esclarece, logo no início, que “certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão adquiriram. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé”. Certeiro. Passei alguns dias na cidade e conheci a delicadeza das pessoas e, também, da poesia de Giana Guterres [2].

 

Gosto de flertar com livros. Ir a sebos e livrarias como quem vai a uma festa. Trocar olhares. Espiar. Me aproximar aos poucos. Deixar acontecer (geralmente acontece). Aconteceu numa livraria no centro de Bagé, numa prateleira com autores locais e obras sobre a cidade. Costumo correr os olhos pelos livros. Uma boa capa, uma edição interessante, um título chamativo atraem para a contracapa, depois para as orelhas... O livro de Giana Guterres não tem orelhas, mas vem com um singelo marcador de página que exibe um desenho e um poema cartão de visita:

 

eu, passarinho

tu, revoada

nós ninho.

 

O título do livro da poeta Giana Guterres é justamente Eu, passarinho [3]. Os desenhos, como os do marcador de página, são da ilustradora Carina Flores [4]. Trata-se de obra viabilizada por meio de financiamento coletivo. É pura delicadeza o conjunto formado pelos versos, pelas ilustrações e pelos espaços em branco.

 

Era uma segunda-feira gelada. Sensação térmica de -2º graus pela manhã, 10º graus à tarde. Eu já estava na cidade há uma semana. Já conhecia algumas pessoas. As conversas me deixavam com a sensação de que o Brasil vale pelos brasileiros, apesar da extrema direita, que ainda não conseguiu destruir totalmente a cordialidade popular. Eu já havia provado arroz carreteiro, feijão preto e pudim de leite em mais de uma mesa. Já havia caminhado sem destino, que é a melhor maneira de conhecer uma cidade (Certo dia, passando por baixo de uma linha férrea desativada, parei para observar, um senhor se aproximou, puxou conversa e contou a história da antiga linha Bagé – Rio Grande. Conversamos sobre trens e cidades, uma prosa sem pressa, sem medo e sem desconfiança, a tal cordialidade que a extrema direita não conseguiu destruir totalmente, por enquanto).  Eu já havia passado na livraria e adquirido Eu, passarinho. Como estava livre naquela segunda-feira gelada, caminhei para o centro da cidade com o livro debaixo do braço.

 

Iniciei a leitura na mesa de uma lanchonete, na calçada, apesar do frio. Estava na Rua Pelotas, que é uma travessa cheia de sombras e percorrida, sobretudo, por ventos e pombos. Um bom lugar para ler poesia. Logo no primeiro poema, Giana delimita as coisas com dois versos:

 

ligar-se à terra é alçar voos para

dentro, enquanto se alcança as nuvens.

 

O segundo poema é forte:

 

pai, por aqui

eu tento retomar a rotina

sem saber como é

agora

uma rotina sem você

sem tua voz

me perguntando

se tudo está bem

se o tempo está bom

e sem eu te perguntando

qualquer coisa

só para te ouvir

um pouco mais.

pai, por aqui

o céu está azul

tem sol

e os passarinhos cantam.

 

Li. Reli. Respirei. Olhei em volta. Percorri a rua estreita com olhos, de ponta a ponta. Espiei as sombras estacionadas e os pombos em movimento. Escutei os sons da cidade. Toquei o vento. Pisei firme. Pensei na vida. Percebi que não estava diante de mais um livro de versos insossos, como tantos que há por aí. Tive certeza de que leria os poemas sem parar, e assim foi.

 

Conclui a leitura do livro na Praça Silveira Martins, onde estava estacionada uma BiblioVan. O responsável disse que iria, posteriormente, ao Uruguai compartilhar livros e histórias. Pensei em Eduardo Galeano. Pensei na pequeneza das cidades turísticas (havia passado por algumas), que têm muitas lojas, mas poucas histórias e livrarias sem graça. Pensei na grandeza de Bagé, que tem muitas histórias e livrarias simpáticas. Falei sobre Eu, passarinho, que havia terminado de ler num banco da praça. Elogiei bastante. Disse que tinha dúvida apenas em relação ao título, que vinculava Giana Guterres a Mario Quintana, sendo que a poesia dela tem asas e vida própria. Talvez se fosse Eu, passarinha ajudasse a demarcar limites, ou não, além de ser muito modernoso, é preciso evitar vinculações? Enfim. O interlocutor respondeu que precisaria ler o livro para opinar. Depois contou histórias do lugar, dos livros que escreveu e das viagens na BiblioVan (novamente pensei na cordialidade que a extrema direita não conseguiu destruir totalmente, por enquanto). Imagino aquele homem percorrendo o Pampa, como se fosse um passarinho compartilhando livros e histórias. Que caminhos terá percorrido? Onde estará? 

 

Giana Guterres inicia o penúltimo poema alertando para que não se acredite em poetas que não falam de suas cidades. Ela não cita nem Bagé (o poeta é um fingidor) nem outras cidades nominalmente (e não precisa), basta dizer, como ela diz, que:

 

as ruas da minha cidade têm a medida

certa para abrigar tudo isso que trago

no peito

 

Mario Quintana é o autor do famoso verso “Eles passarão... Eu passarinho!”. O poeta gaúcho registrou, também, que os livros de poesia devem deixar espaços em branco para as crianças preencherem com desenhos. Não sou criança há tempos e não sei desenhar, infelizmente, mas tive vontade de preencher os espaços em branco do livro de Giana Guterres com cenas e cores de Bagé, como “verde-pampa” e os passarinhos, citados por ela. Como não consegui desenhar e colorir, escrevi essas linhas.

 

São os passarinhos e o Pampa – a leveza, a imensidão, o vazio, a delicadeza – que encantam nos poemas de Giana Guterres, especialmente para quem vive emparedado por edifícios. A poeta sobrevoa a planície em zigue-zague, dançando, como uma andorinha, no ritmo do vento:

 

o pampa é uma paisagem

na janela

que me convida

a pôr os pés na grama

na terra crua

sob meus pés

como uma parte de mim.

 

Percorrendo as estradas da região, o Pampa, pela janela, repetidas vezes me convidou a parar o carro e fotografar, apenas para constatar, em seguida, que a imensidão e o verde não cabem nos registros fotográficos.   

 

Reli as histórias do analista de Bagé antes de visitar a cidade. Mas a Bagé que conheci – pelas pessoas e pela poesia de Giana Guterres – é leve e delicada, não tem a ver com o personagem de Luis Fernando Veríssimo. Num dos poemas a poeta pergunta: “Você já parou para pensar no que te faz sentir vivo?” O analista de Bagé provavelmente responderia com uma cara feia, no mínimo. Já eu diria que me sinto vivo graças a coisas como aquelas horas em Bagé – o arroz carreteiro, o feijão preto e o pudim de leite; desenhar e colorir os espaços em branco de um livro de poesia (se eu soubesse); bater-papo sem pressa , sem medo e sem desconfiança embaixo de uma linha férrea desativada; parar o carro na estrada vazia e fotografar apenas para perceber, repetidas vezes, que a paisagem não cabe na foto; contemplar as cores e a imensidão do Pampa; caminhar sem rumo por ruas desconhecidas (mas com a medida certa para abrigar o que trago no peito, como no verso); ler os poemas de Giana Guterres numa segunda-feira gelada, no centro de Bagé.

  

 

Notas

 

[1] Luis Fernando Veríssimo. O analista de Bagé. Porto Alegre: L & PM Editores, 1982.

 

[2] Giana Guterres publica poesias e textos na internet, ver @floresciversos.

 

[3] Giana Guterres. Eu, passarinho. Bagé: Edição da autora, 2021.

 

[4] Para conhecer um pouco do trabalho de Carina Flores, ver Arte com Afeto | Criativo Curioso 


Publicado originalmente no Passa Palavra

Eu vinha triste e vi uma gaiola
pendurada na parede:
o canarinho saltava
de poleiro em poleiro.

Eu vinha triste e vi uma viatura
levando um homem algemado:
os olhos dele cantavam mágoas.

Eu ia triste para o escritório:
como um canarinho algemado.