ALBERT CAMUS E A ABSOLUTIZAÇÃO DO ABSURDO

    

Como se portar num mundo disparatado e privado de luzes? A vida e a obra do argelino Albert Camus é uma tentativa de responder esta questão, é uma busca da ética.


Da condição inóspita do mundo brota o absurdo. É preciso enfrentá-lo de frente. Camus propõe, primeiramente, que se encare o absurdo como ponto de partida e não de chegada. A questão por ser respondida neste texto é se esse ponto de partida (absurdo) é sólido ou se é também fugidio e contingente.

           

A contrapartida do absurdo é a revolta. Camus esboça a história da revolta ao longo dos tempos misturando o real e o mítico, o literário e o histórico. Um dos homens de destaque na história da revolta é Ivã Karamazov, personagem de Fiódor Dostoiévski. Ivã não submete deus ao julgamento da razão, mas ao da ética. É legítima uma criação que comporta o mal? Para homens como Ivã Karamazov e Albert Camus a respota é negativa. Uma criação que aceita o mal é inaceitável. Deus não passa pelo crivo ético. Este tema é recorrente em Camus, no romance A peste ele renasce no Dr. Rieux, que se recusa a aceitar uma criação que tortura as crianças.

           

Mas a exclusão de deus da equação tem implicações importantes, se não há um criador não há um projeto e uma justificativa para o mundo: os homens serão seres solitários e contingentes. A condição humana torna-se absurda. Como se comportar nestas condições?


Ao liquidar um homem, a morte inviabiliza suas pretensões de continuidade e suprime qualquer possibilidade de sentido. Como a morte é o limite, igualam-se os feitos mais nobres e seus opostos. Não há qualquer julgamento. Deus é retirado da equação e trocado pelo vazio. O desejo de ordenação das coisas choca-se com a realidade disforme. A geometria antieuclidiana do mundo rechaça a sede de síntese da sensibilidade humana. A única possibilidade de ordenação (Deus) está excluída. 

           

Segundo Camus: “Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade”. Confinado entre muros instransponíveis, o homem caminha em círculos, sem recurso possível. Privado das vias que levam para o transcendental, afastada toda e qualquer metafísica, o homem se encontra preso entre espessas paredes, sem saída. Daí o dilema, a pergunta filosófica fundamental pode implicar na resposta derradeira e na devolução do bilhete de entrada na vida, como sugeriu Ivã Karamazov. Dado o absurdo do real concreto experimentado, a auto-aniquilação e o suicídio ganham relevância. É preciso dizer sim ou não à vida. Para Camus o suicídio é a mais fundamental das questões filosóficas. Mas ele diz não ao auto-aniquilamento e afirma a vida absurda. A partir deste passo é preciso forjar uma ética coerente com o absurdo. É preciso caminhar com cuidado por sobre o telhado de vidro do mundo.

           

Suprimida a religião e o transcendental. Sendo a vida unicamente um em si, qualquer sentido ou ausência dele só poderá estar contido nela mesma. Entretanto, não é haver sentido para a vida que levará à negação do auto-aniquilamento, como no caso do próprio Camus. Alguém pode crer no sentido da vida e suicidar-se, ou não crer e continuar vivendo. Ivã Karamázov percebe e expressa essa sutileza: “Eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas sem saber por quê.”

           

Esta sutileza também percebida por Camus, por vezes lhe escapa, como quando afirma que “matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la.” Ora, sendo o absurdo uma experiência sensitiva (é um sentimento e não um fato concreto), ele não pode ser absolutizado, trata-se de um enjôo ou desencanto, surge e se desmancha. Pode inclusive ser superado pelo sol mediterrâneo, pelos “brotos tenros na primavera” ou outras experiências. Sendo o contrário verdadeiro também, o sentimento do absurdo pode surgir em qualquer lugar, inclusive sob o sol mediterrâneo.

 

A sensibilidade aburda está na “nostalgia da unidade” e no “apetite de absoluto”. O homem camusiano é um desesperado incapaz de religar as luzes do mundo. Há um “divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que ilude”. Mas se, com Ivã, a justificativa para negar o suicídio se encontra “nos brotos tenros na primavera, no céu azul, no amar certas pessoas sem saber por quê” e “a despeito da lógica”; significa que a razão deve aceitar seus limites e que é preciso fazer uso da poesia, da literatura, do teatro, para lidar com o absurdo. É por isso que Albert Camus é mais escritor do que filósofo. Suas definições são mais imagéticas do que categoriais. Sendo o absurdo uma experiência mais sensitiva do que racional, a literatura e a poesia são campos privilegiados para demarcá-lo.

           

Camus pinta o absurdo como um “desabar de cenários”, ou um “divórcio entre o homem e sua vida”. Na poesia semelhante sensibilidade surge através de outras imagens:

 

“Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

(Trecho do poema José – Carlos Drummond de Andrade)



“O recurso de se embriagar.
 O recurso da dança e do grito,
 o recurso da bola colorida,
 o recurso de Kant e da poesia,
 todos eles... e nenhum resolve.”

(Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)


Em Carlos Drummond o absurdo brota da relação de homens que gritam para um mundo surdo, que lhes tortura. A chave na mão não é uma solução porque não existem portas. Todos os recursos são inúteis.

           

Enquanto os versos de Drummond constatam e verbalizam a absurdidade da vida no sentido camusiano; os de João Cabral manifestam o desejo de clareza, tentam negar o vago, o inconstante e o volúvel:

 

“O poema inquieta

o papel e a sala.

Ante a face sonhada

o vazio se cala”

(Trecho de Poema de desintoxicação – João Cabral de Melo Neto)

 

“O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.”

(Trecho do poema O engenheiro – João Cabral de Melo Neto)

 

“Procura a ordem

que vês na pedra:

nada se gasta

mas permanece.”

(Trecho do poema Pequena ode mineral – João Cabral de Melo Neto)

 

Drummond expressa a dor de um José abortado e repelido pelo mundo, Cabral mostra sua sede de síntese e permanência. São os dois lados da mesma face. O homem absurdo de Albert Camus deseja o mundo ordenado e “que nenhum véu encobre”, como na poesia de João Cabral; mas é um “eu todo retorcido”, como o José, de Carlos Drummond. 

           

A questão que surge é: um mundo coerente e ordenado seria capaz de destorcer os seres? Um casamento estável e monogâmico de um homem com sua vida seria reconciliador? São questões complexas. Mas a resposta é negativa. Um mundo coerente e ordenado tenderia a produzir uma humanidade paralítica, posto que sua coerência e ordenação seriam externas e idependentes dos homens. Na exata medida em que nega o humano espírito construtor, o casamento harmônico de um homem com sua vida é inviável, pela simples razão de que produziria um mundo enfadonho e entediante. Seja na arte ou no trabalho não alienado, é somente com a criação que os seres humanos podem se realizar. Qualquer coerência e ordenação impostas ao homem são alienantes e neste sentido opressivas.


O homem é essencialmente um ser que cria, inclusive quando forja sua própria destruição. O auto-aniquilamento é também produto do trabalho, tanto em seu conteúdo teórico quanto no operacional. A possibilidade de criação só é viável na vida, neste sentido, a vida é como um tango, sedutora na exata medida que fugidia, trágica na exata medida que necessária.


No processo de criação forjam-se e alteram-se os sentidos, tudo a partir da experiência sensorial. Sendo assim, a sensibilidade absurda não é exatamente uma “doença do espírito”, como quer Camus; trata-se, mais precisamente de um resfriado ou alergia. E aqui não se enxergue ironia e sarcamos, mas sim uma tentativa de melhorar a definição. Resfriados e alergias vêm e vão com maior frequência, a sensação absurdo também. Essa dimensão parece escapar de Camus quando ele exagera nas cores do absurdo.

           

Não há suicídios filosóficos ou baseados na idéia de que a vida não tem sentido porque o próprio sentimento do absurdo é inconstante, vai e vem. Se não fosse assim, o José do poema se mataria. Mas como explica Drummond:

 

“outros dias virão

e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.”

(Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)


José sabe disso. Depois outros divórcios e desabamentos extinguirão o fogo da vida, que reacenderá, apagará e assim sucessivamente. Matar-se não é afirmar a impossibilidade de compreender a vida, como quer Camus. Matar-se é afirmar a impossibilidade de viver a vida num momento específico, é abrir mão de buscar "novas coxas e ventres", entre outras coisas.


Procurar uma ética imanente e coerente com a singularidade e a contigência da vida é louvável, nesse sentido a obra camusiana é grande e estes apontamentos não lhe desdizem em nada, não lhe alteram nenhuma conclusão. Por outro lado, absolutizar uma sensibilidade (absurdo) também fortuita é um exagero. Para haver divórcios entre homens e suas vidas é preciso que haja uniões. Para haver desabamentos de cenários é preciso que estes estivessem de pé. Esse momento de positividade, inverso da sensação de absurdo, é que às vezes escapa de Camus.

 

SÃO PAULO É OUTRA COISA

 

Persigo São Paulo é uma canção enigmática. Itamar Assumpção repete algumas vezes um verso intrigante: “São Paulo é outra coisa”. O bardo repete, também, o advérbio de negação não. A canção não diz exatamente o que é a cidade. Mas dá pistas: “Não é exatamente amor/ É identificação absoluta [...] São Paulo sou eu [...] Eu não me amo/ Mas me persigo”.

 

Também eu já escrevi sobre São Paulo (aqui, aqui, aqui, aqui). A certeza de que a cidade é outra coisa me acompanha, mas só consegui expressar minimamente essa outra coisa – se é que consegui – por aproximação e pela negativa. Como na canção, São Paulo não se ama (“Eu não me amo [...] São Paulo sou eu”). Como pode se amar uma cidade hipertrofiada que cresce passando por cima de si mesma? Uma boa definição sobre a outra coisa que é São Paulo foi registrada por Mário de Andrade no poema Os cortejos [1]: “Pauliceia – a grande boca de mil dentes”.

 

Estava caminhando pela Pauliceia quando fui convidado para participar do plantio de mudas e mutirão comunitário no Parque da Joia, na zona Oeste de São Paulo. Essas coisas ainda acontecem na cidade. As pessoas se comunicam e se encontram. Conversar é revigorante. Trabalhar a terra idem. O Parque da Joia é uma área verde – com árvores frutíferas, campo de futebol, nascentes e uma simpática sede – que permite a comunicação e o encontro entre as pessoas e com a natureza. A comunidade cuida de tudo e luta para que a área seja oficialmente reconhecida como parque público.

 

Revolvendo o solo e conversando fui conhecendo a história do lugar. Abaixo da primeira camada de terra se encontra entulho, indicando que o parque nem sempre esteve ali. Foi quando me contaram que o local havia abrigado a Favela da Joia, que chegou a ter 260 famílias. Daí o entulho abaixo da primeira camada de terra. Trata-se de um aterro. “São Paulo é outra coisa” – pensei imediatamente. Os moradores da favela conquistaram moradias melhores e se mudaram em 1994, depois a natureza e a comunidade foram retrabalhando o local. Conversando soube, também, que as nascentes do Parque da Joia alimentam o rio da região, o Água Podre (Ypuera). Por ali se fez a libertação das nascentes, como já havia sido feito com as nascentes do Córrego Água Preta, na Praça Homero Silva, na Pompeia. Água Podre: que nome poético. Eu que vivi perto do Água Preta descobri que há um rio irmão com nome igualmente interessante. Por outro lado, Água Podre me remeteu a Itabira e à mineração. Um artigo de 1980 fala das águas de Itabira [2]: “Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem.” Itabira não é apenas uma foto na parede, como queria o poeta, é, também, outra coisa, como São Paulo.

 

Eu já havia conhecido o Parque da Joia e iniciado esse texto quando tive acesso [3] a uma carta de Mário de Andrade [4] para Paulo Duarte datada de 05 de agosto de 1944. O modernista comenta sobre França, Portugal, Catalunha, Florença, Roma, Belém e São Paulo. Diz Mário: “São Paulo... Não São Paulo é outra coisa, não é amor exatamente, é identificação absoluta, sou eu. E eu não me amo. Mas me persigo. Bonita palavra ‘perseguir’ em tudo o que a sua etimologia sugere e confessa. Eu per-sigo São Paulo.” A enigmática canção interpretada por Itamar Assunção é um trecho da carta de Mário de Andrade para Paulo Duarte. Pensando bem. Faz sentido. É do poeta modernista a definição da Pauliceia como uma grande boca de mil dentes. Só não sei se nós que perseguimos a cidade, como na canção, ou se é o contrário. Mas que São Paulo é outra coisa, isso é.

 

São Paulo é outra coisa também porque há espaços como o Parque da Joia. Com mutirões comunitários aos sábados, futebol aos domingos, saraus, festivais de arte e música, encontros diários e diversas possibilidades. Na antiga sede, utilizada para organizar o movimento de moradia, acontecem formações em permacultura, aulas de capoeira e ensaios musicais. A ideia é agregar outras atividades. Fica o convite para uma visita ao Parque da Joia, quem sabe uma caminhada pela mata, ao lado das nascentes. Porque São Paulo é outra coisa. A Pauliceia é uma grande boca de mil dentes que devora tudo, mas que, às vezes, sorri.

 

NOTAS

 

[1] Mário de Andrade. De Pauliceia desvairada a lira paulistana. São Paulo: Martin Claret, 2016. p. 56.

 

[2] Fernando Duarte Gonçalves. Itabira, a prostituta do capitalismo selvagem. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/itabira-a-prostituta-do-capitalismo-selvagem/

 

[3] Soube que a letra da canção Persigo São Paulo saiu de uma carta de Mário de Andrade por meio de uma de uma postagem da Casa Mário de Andrade.

 

[4] Paulo Duarte. Mário de Andrade por ele mesmo. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1977. p. 278.


Publicado originalmente no Passa Palavra