ALBERT CAMUS E A ABSOLUTIZAÇÃO DO ABSURDO

    

Como se portar num mundo disparatado e privado de luzes? A vida e a obra do argelino Albert Camus é uma tentativa de responder esta questão, é uma busca da ética.


Da condição inóspita do mundo brota o absurdo. É preciso enfrentá-lo de frente. Camus propõe, primeiramente, que se encare o absurdo como ponto de partida e não de chegada. A questão por ser respondida neste texto é se esse ponto de partida (absurdo) é sólido ou se é também fugidio e contingente.

           

A contrapartida do absurdo é a revolta. Camus esboça a história da revolta ao longo dos tempos misturando o real e o mítico, o literário e o histórico. Um dos homens de destaque na história da revolta é Ivã Karamazov, personagem de Fiódor Dostoiévski. Ivã não submete deus ao julgamento da razão, mas ao da ética. É legítima uma criação que comporta o mal? Para homens como Ivã Karamazov e Albert Camus a respota é negativa. Uma criação que aceita o mal é inaceitável. Deus não passa pelo crivo ético. Este tema é recorrente em Camus, no romance A peste ele renasce no Dr. Rieux, que se recusa a aceitar uma criação que tortura as crianças.

           

Mas a exclusão de deus da equação tem implicações importantes, se não há um criador não há um projeto e uma justificativa para o mundo: os homens serão seres solitários e contingentes. A condição humana torna-se absurda. Como se comportar nestas condições?


Ao liquidar um homem, a morte inviabiliza suas pretensões de continuidade e suprime qualquer possibilidade de sentido. Como a morte é o limite, igualam-se os feitos mais nobres e seus opostos. Não há qualquer julgamento. Deus é retirado da equação e trocado pelo vazio. O desejo de ordenação das coisas choca-se com a realidade disforme. A geometria antieuclidiana do mundo rechaça a sede de síntese da sensibilidade humana. A única possibilidade de ordenação (Deus) está excluída. 

           

Segundo Camus: “Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade”. Confinado entre muros instransponíveis, o homem caminha em círculos, sem recurso possível. Privado das vias que levam para o transcendental, afastada toda e qualquer metafísica, o homem se encontra preso entre espessas paredes, sem saída. Daí o dilema, a pergunta filosófica fundamental pode implicar na resposta derradeira e na devolução do bilhete de entrada na vida, como sugeriu Ivã Karamazov. Dado o absurdo do real concreto experimentado, a auto-aniquilação e o suicídio ganham relevância. É preciso dizer sim ou não à vida. Para Camus o suicídio é a mais fundamental das questões filosóficas. Mas ele diz não ao auto-aniquilamento e afirma a vida absurda. A partir deste passo é preciso forjar uma ética coerente com o absurdo. É preciso caminhar com cuidado por sobre o telhado de vidro do mundo.

           

Suprimida a religião e o transcendental. Sendo a vida unicamente um em si, qualquer sentido ou ausência dele só poderá estar contido nela mesma. Entretanto, não é haver sentido para a vida que levará à negação do auto-aniquilamento, como no caso do próprio Camus. Alguém pode crer no sentido da vida e suicidar-se, ou não crer e continuar vivendo. Ivã Karamázov percebe e expressa essa sutileza: “Eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas sem saber por quê.”

           

Esta sutileza também percebida por Camus, por vezes lhe escapa, como quando afirma que “matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la.” Ora, sendo o absurdo uma experiência sensitiva (é um sentimento e não um fato concreto), ele não pode ser absolutizado, trata-se de um enjôo ou desencanto, surge e se desmancha. Pode inclusive ser superado pelo sol mediterrâneo, pelos “brotos tenros na primavera” ou outras experiências. Sendo o contrário verdadeiro também, o sentimento do absurdo pode surgir em qualquer lugar, inclusive sob o sol mediterrâneo.

 

A sensibilidade aburda está na “nostalgia da unidade” e no “apetite de absoluto”. O homem camusiano é um desesperado incapaz de religar as luzes do mundo. Há um “divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que ilude”. Mas se, com Ivã, a justificativa para negar o suicídio se encontra “nos brotos tenros na primavera, no céu azul, no amar certas pessoas sem saber por quê” e “a despeito da lógica”; significa que a razão deve aceitar seus limites e que é preciso fazer uso da poesia, da literatura, do teatro, para lidar com o absurdo. É por isso que Albert Camus é mais escritor do que filósofo. Suas definições são mais imagéticas do que categoriais. Sendo o absurdo uma experiência mais sensitiva do que racional, a literatura e a poesia são campos privilegiados para demarcá-lo.

           

Camus pinta o absurdo como um “desabar de cenários”, ou um “divórcio entre o homem e sua vida”. Na poesia semelhante sensibilidade surge através de outras imagens:

 

“Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

(Trecho do poema José – Carlos Drummond de Andrade)



“O recurso de se embriagar.
 O recurso da dança e do grito,
 o recurso da bola colorida,
 o recurso de Kant e da poesia,
 todos eles... e nenhum resolve.”

(Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)


Em Carlos Drummond o absurdo brota da relação de homens que gritam para um mundo surdo, que lhes tortura. A chave na mão não é uma solução porque não existem portas. Todos os recursos são inúteis.

           

Enquanto os versos de Drummond constatam e verbalizam a absurdidade da vida no sentido camusiano; os de João Cabral manifestam o desejo de clareza, tentam negar o vago, o inconstante e o volúvel:

 

“O poema inquieta

o papel e a sala.

Ante a face sonhada

o vazio se cala”

(Trecho de Poema de desintoxicação – João Cabral de Melo Neto)

 

“O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.”

(Trecho do poema O engenheiro – João Cabral de Melo Neto)

 

“Procura a ordem

que vês na pedra:

nada se gasta

mas permanece.”

(Trecho do poema Pequena ode mineral – João Cabral de Melo Neto)

 

Drummond expressa a dor de um José abortado e repelido pelo mundo, Cabral mostra sua sede de síntese e permanência. São os dois lados da mesma face. O homem absurdo de Albert Camus deseja o mundo ordenado e “que nenhum véu encobre”, como na poesia de João Cabral; mas é um “eu todo retorcido”, como o José, de Carlos Drummond. 

           

A questão que surge é: um mundo coerente e ordenado seria capaz de destorcer os seres? Um casamento estável e monogâmico de um homem com sua vida seria reconciliador? São questões complexas. Mas a resposta é negativa. Um mundo coerente e ordenado tenderia a produzir uma humanidade paralítica, posto que sua coerência e ordenação seriam externas e idependentes dos homens. Na exata medida em que nega o humano espírito construtor, o casamento harmônico de um homem com sua vida é inviável, pela simples razão de que produziria um mundo enfadonho e entediante. Seja na arte ou no trabalho não alienado, é somente com a criação que os seres humanos podem se realizar. Qualquer coerência e ordenação impostas ao homem são alienantes e neste sentido opressivas.


O homem é essencialmente um ser que cria, inclusive quando forja sua própria destruição. O auto-aniquilamento é também produto do trabalho, tanto em seu conteúdo teórico quanto no operacional. A possibilidade de criação só é viável na vida, neste sentido, a vida é como um tango, sedutora na exata medida que fugidia, trágica na exata medida que necessária.


No processo de criação forjam-se e alteram-se os sentidos, tudo a partir da experiência sensorial. Sendo assim, a sensibilidade absurda não é exatamente uma “doença do espírito”, como quer Camus; trata-se, mais precisamente de um resfriado ou alergia. E aqui não se enxergue ironia e sarcamos, mas sim uma tentativa de melhorar a definição. Resfriados e alergias vêm e vão com maior frequência, a sensação absurdo também. Essa dimensão parece escapar de Camus quando ele exagera nas cores do absurdo.

           

Não há suicídios filosóficos ou baseados na idéia de que a vida não tem sentido porque o próprio sentimento do absurdo é inconstante, vai e vem. Se não fosse assim, o José do poema se mataria. Mas como explica Drummond:

 

“outros dias virão

e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.”

(Trecho do poema Passagem do Ano – Carlos Drummond de Andrade)


José sabe disso. Depois outros divórcios e desabamentos extinguirão o fogo da vida, que reacenderá, apagará e assim sucessivamente. Matar-se não é afirmar a impossibilidade de compreender a vida, como quer Camus. Matar-se é afirmar a impossibilidade de viver a vida num momento específico, é abrir mão de buscar "novas coxas e ventres", entre outras coisas.


Procurar uma ética imanente e coerente com a singularidade e a contigência da vida é louvável, nesse sentido a obra camusiana é grande e estes apontamentos não lhe desdizem em nada, não lhe alteram nenhuma conclusão. Por outro lado, absolutizar uma sensibilidade (absurdo) também fortuita é um exagero. Para haver divórcios entre homens e suas vidas é preciso que haja uniões. Para haver desabamentos de cenários é preciso que estes estivessem de pé. Esse momento de positividade, inverso da sensação de absurdo, é que às vezes escapa de Camus.

 

SÃO PAULO É OUTRA COISA

 

Persigo São Paulo é uma canção enigmática. Itamar Assumpção repete algumas vezes um verso intrigante: “São Paulo é outra coisa”. O bardo repete, também, o advérbio de negação não. A canção não diz exatamente o que é a cidade. Mas dá pistas: “Não é exatamente amor/ É identificação absoluta [...] São Paulo sou eu [...] Eu não me amo/ Mas me persigo”.

 

Também eu já escrevi sobre São Paulo (aqui, aqui, aqui, aqui). A certeza de que a cidade é outra coisa me acompanha, mas só consegui expressar minimamente essa outra coisa – se é que consegui – por aproximação e pela negativa. Como na canção, São Paulo não se ama (“Eu não me amo [...] São Paulo sou eu”). Como pode se amar uma cidade hipertrofiada que cresce passando por cima de si mesma? Uma boa definição sobre a outra coisa que é São Paulo foi registrada por Mário de Andrade no poema Os cortejos [1]: “Pauliceia – a grande boca de mil dentes”.

 

Estava caminhando pela Pauliceia quando fui convidado para participar do plantio de mudas e mutirão comunitário no Parque da Joia, na zona Oeste de São Paulo. Essas coisas ainda acontecem na cidade. As pessoas se comunicam e se encontram. Conversar é revigorante. Trabalhar a terra idem. O Parque da Joia é uma área verde – com árvores frutíferas, campo de futebol, nascentes e uma simpática sede – que permite a comunicação e o encontro entre as pessoas e com a natureza. A comunidade cuida de tudo e luta para que a área seja oficialmente reconhecida como parque público.

 

Revolvendo o solo e conversando fui conhecendo a história do lugar. Abaixo da primeira camada de terra se encontra entulho, indicando que o parque nem sempre esteve ali. Foi quando me contaram que o local havia abrigado a Favela da Joia, que chegou a ter 260 famílias. Daí o entulho abaixo da primeira camada de terra. Trata-se de um aterro. “São Paulo é outra coisa” – pensei imediatamente. Os moradores da favela conquistaram moradias melhores e se mudaram em 1994, depois a natureza e a comunidade foram retrabalhando o local. Conversando soube, também, que as nascentes do Parque da Joia alimentam o rio da região, o Água Podre (Ypuera). Por ali se fez a libertação das nascentes, como já havia sido feito com as nascentes do Córrego Água Preta, na Praça Homero Silva, na Pompeia. Água Podre: que nome poético. Eu que vivi perto do Água Preta descobri que há um rio irmão com nome igualmente interessante. Por outro lado, Água Podre me remeteu a Itabira e à mineração. Um artigo de 1980 fala das águas de Itabira [2]: “Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem.” Itabira não é apenas uma foto na parede, como queria o poeta, é, também, outra coisa, como São Paulo.

 

Eu já havia conhecido o Parque da Joia e iniciado esse texto quando tive acesso [3] a uma carta de Mário de Andrade [4] para Paulo Duarte datada de 05 de agosto de 1944. O modernista comenta sobre França, Portugal, Catalunha, Florença, Roma, Belém e São Paulo. Diz Mário: “São Paulo... Não São Paulo é outra coisa, não é amor exatamente, é identificação absoluta, sou eu. E eu não me amo. Mas me persigo. Bonita palavra ‘perseguir’ em tudo o que a sua etimologia sugere e confessa. Eu per-sigo São Paulo.” A enigmática canção interpretada por Itamar Assunção é um trecho da carta de Mário de Andrade para Paulo Duarte. Pensando bem. Faz sentido. É do poeta modernista a definição da Pauliceia como uma grande boca de mil dentes. Só não sei se nós que perseguimos a cidade, como na canção, ou se é o contrário. Mas que São Paulo é outra coisa, isso é.

 

São Paulo é outra coisa também porque há espaços como o Parque da Joia. Com mutirões comunitários aos sábados, futebol aos domingos, saraus, festivais de arte e música, encontros diários e diversas possibilidades. Na antiga sede, utilizada para organizar o movimento de moradia, acontecem formações em permacultura, aulas de capoeira e ensaios musicais. A ideia é agregar outras atividades. Fica o convite para uma visita ao Parque da Joia, quem sabe uma caminhada pela mata, ao lado das nascentes. Porque São Paulo é outra coisa. A Pauliceia é uma grande boca de mil dentes que devora tudo, mas que, às vezes, sorri.

 

NOTAS

 

[1] Mário de Andrade. De Pauliceia desvairada a lira paulistana. São Paulo: Martin Claret, 2016. p. 56.

 

[2] Fernando Duarte Gonçalves. Itabira, a prostituta do capitalismo selvagem. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/itabira-a-prostituta-do-capitalismo-selvagem/

 

[3] Soube que a letra da canção Persigo São Paulo saiu de uma carta de Mário de Andrade por meio de uma de uma postagem da Casa Mário de Andrade.

 

[4] Paulo Duarte. Mário de Andrade por ele mesmo. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1977. p. 278.


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

FERREIRA GULLAR: A POESIA DAS COISAS ESQUECIDAS

 

Os poetas têm seus temas. Para Mario Quintana, as “coisas simples”: as estrelas, o vento, a morte, o azul, a lua, o céu de Porto Alegre. Para Manoel de Barros, o “delírio do verbo”, as “insignificâncias” e as visões das crianças, como as cores das palavras e os seres que habitam as frestas das calçadas. Para Ferreira Gullar, as coisas esquecidas, as pequenas coisas esquecidas: uma fruta apodrecendo no cesto, uma varanda à margem da tarde [1].

 

“Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia” – declarou Gullar. O poeta se espantava com as pequenas coisas esquecidas: como “um certo jeito de sorrir/ de falar/ que minha mãe identifica como sendo de seu filho/ que meu filho identifica/ como sendo de seu pai” [2]. Há vários caminhos e possibilidades para pensar e desfrutar a poesia de Ferreira Gullar: as relações entre as palavras nos poemas concretos e neoconcretos; as impurezas da vida e da matéria orgânica; o engajamento, como quando escreve sobre as palafitas de São Luís. Minha hipótese é que a principal linha de força da poesia de Ferreira Gullar está nas pequenas coisas esquecidas: que ele recriou, espalhou por toda a obra e concentrou no Poema sujo. Apesar do título, a potência poética do Poema sujo está sobretudo nas pequenas coisas esquecidas, e não exatamente nas impurezas da vida e da matéria orgânica. É que estas são parte daquelas. O próprio poeta esclareceu em versos: “Não quero a poesia, o capricho/ do poema: quero/ reaver a manhã que virou lixo” [3]. No auge de sua capacidade poética, com o Poema sujo – escrito em Buenos Aires, entre maio e outubro de 1975 –, Gullar recriou a cidade de São Luís e a vida utilizando pequenas coisas esquecidas:

 

Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas

balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas

cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do

jantar [4]

 

O espanto diante das pequenas coisas esquecidas tem a ver com a passagem do tempo, as impurezas da vida e o apodrecimento da matéria orgânica. Dois exemplos presentes no primeiro livro do poeta, A luta corporal (1950-1953). 1º) As pêras [5]: “As pêras no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?” [...] “O dia das pêras/ é o seu apodrecimento.” 2º) Um programa de homicídio [6]: “Porque estou morto é que digo: o apodrecer é sublime. Há porém os que não apodrecem. Os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, súbito, ao se buscarem, não estão... Esses são os assassinos da beleza, os fracos. Os anjos frustrados, papa-bostas! Oh como são pálidos!”

 

Se “apodrecer é sublime”, inevitavelmente Gullar se espantaria com a passagem do tempo. Não foi o único que seguiu esse caminho. O haikai, por exemplo, fotografa a insustentável leveza do que que não vai se repetir. É o instante reconquistado, como definiu Octavio Paz [7]: rã mergulhando no tanque, caramujo escalando o monte Fugi, chuva pingando na roseira. No movimento captado pelo haikai, a iluminação (satori) sugere imagens que associamos ao belo e ao agradável. Com Gullar é o contrário. O poeta reconquista o instante para registrar a turva passagem do tempo, fixando o que é banal e repetitivo, o que está abandonado e apodrece, as impurezas da matéria orgânica e, sobretudo, as pequenas coisas esquecidas. É comum as famílias decorarem suas casas com imagens naturais e reconfortantes: crianças felizes correndo na grama, frutas coloridas no cesto. A poesia de Ferreira Gullar nos lembra que o tempo passa e que toda matéria orgânica apodrecerá, incluindo as crianças felizes, as frutas coloridas do cesto e as famílias. Nem os retratos dos mortos escapam da decomposição. Mas, para o poeta, “apodrecer é sublime”. É preciso contemplar a beleza da decomposição e das impurezas [8]: “O odor/ do corpo é impuro,/ mas é preciso amá-lo.”

 

No Poema sujo é sublime a reconquista do instante por meio de pequenas coisas esquecidas num canto do planeta, nas primeiras décadas do século XX, mais precisamente em São Luís, no estado do Maranhão, no nordeste do Brasil:

 

graves cheiros indecifráveis

como símbolos

do corpo [9]

 

[...]

 

sobrados cobertos de limo,

cheios de redes e lembranças

na obscuridade [10]

 

[...]

 

vozes perdidas na lama

domingos vazios [11]

 

Gullar utiliza um método interessante para reinventar pequenas coisas esquecidas: altera a velocidade de dias, tardes e noites. Se há muitos dias dentro do dia, muitas tardes dentro da tarde e muitas noites dentro da noite; é porque há muitas pequenas coisas esquecidas. Já existem recursos para acelerar áudios, reduzindo a porosidade entre palavras, sílabas e frases. Tudo ocorre duas ou três vezes mais rápido que o normal. Gullar costuma fazer o inverso, reduz a velocidade para aumentar a porosidade entre palavras, sílabas, frases e versos. É quando surgem as pequenas coisas esquecidas: como os “ventos soprando verde nas palmeiras” [12]. Daí a constatação de que há muitos dias dentro do dia, muitas tardes dentro da tarde e muitas noites dentro da noite. Se a poesia está nas pequenas coisas esquecidas, é preciso reduzir a velocidade para contemplar o que normalmente não se enxerga. Uma maçã apodrecendo na fruteira, por exemplo. Gullar concentra o foco na maçã e reduz a velocidade do movimento. Cresce o espanto. É como se estivéssemos na cena sentindo a passagem do tempo. Uma maçã não apodrece na fruteira com a mesma velocidade que um cadáver se decompõe num quarto vazio. Uma cárie não cresce no dente com a mesma velocidade que o sol se movimenta na tarde de uma Cidadezinha qualquer [13]. Para contemplar a beleza do apodrecimento é preciso reduzir a velocidade. Drummond se diverte e diverte com a lentidão de uma cidadezinha qualquer: “Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar./ Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar./ Devagar... as janelas olham./ Eta vida besta, meu Deus.” Gullar vai devagar pela cidadezinha qualquer: registra o beijo assustado entre as árvores frutíferas, o apodrecer de bananas e laranjas caídas no quintal, olha para dentro das janelas captando cenas esquecidas nas cozinhas e coitos esquecidos no fundo dos quartos. Em suma: “a vida a explodir por todas as fendas da cidade” [14]. Por mais risível e besta que seja, a vida em qualquer cidadezinha tem uma dimensão única: é composta por pequenas coisas esquecidas. É o que intrigava o poeta e o levou a revelar e reinventar a cidade de São Luís, no Maranhão, nas primeiras décadas do século XX: “constelações de alfabeto/ noites escritas a giz/ pastilhas de aniversário/ domingos de futebol/ enterros corsos comícios/ roleta bilhar baralho” [15].

 

Em poema dedicado à escultura de Mary Vieira, João Cabral [16] cravou: “dar a qualquer matéria/ a aritmética do metal” [...] “dar à escultura o limpo/ de uma máquina de arte”. Com Gullar é o contrário. O poeta se espanta com a aritmética da matéria orgânica, inclusive e principalmente quando se decompõe, como numa composteira. Para Gullar, apodrecer é sublime e, se é assim, o poema precisa ter cheiro, deve ser sujo e poroso:

 

Há quem pretenda

que o seu poema seja

mármore

ou cristal – o meu

o queria pêssego

pêra

banana apodrecendo num prato [17]

 

O contraste Cabral x Gullar é interessante. Nos versos dedicados a Mary Vieira é como se Cabral falasse da sua própria poética, que é mineral. O poeta, como o engenheiro [18], “sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água.” Já a poética de Gullar é orgânica, “porque nos vegetais/ é que mora o delírio” [19]. Na vertigem do dia [20], o poeta se espanta com a carnalidade turva das horas, explora a finitude e as impurezas da vida e da matéria orgânica:

 

Introduzo na poesia

a palavra diarreia

Não pela palavra fria

mas pelo que ela semeia [21]

 

Curiosamente e de forma quase indiscreta, o interesse de Gullar pelas pequenas coisas esquecidas e, por tabela, pela passagem do tempo e pelas impurezas da matéria orgânica, está presente nos poemas que escreveu sobre a morte. A finitude da existência sempre intrigou os poetas, que em geral exploram a saudade, a ausência e o vazio. O próprio Gullar fez isso mais de uma vez. Exemplo [22]: “Se morro/ o universo se apaga como se apagam/ as coisas deste quarto/ se apago a lâmpada”. Mas há outra dimensão da morte, quase indiscreta em Gullar: o espanto diante da decomposição e do apodrecer do corpo. Sobre a morte de Oswald de Andrade [23], ele provoca dizendo que o lenço em que o modernista assoou o nariz pela última vez foi uma bandeira nacional, mas o espanto e o sublime do apodrecimento também aparecem: “mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical”. No poema sobre a morte de Clarice Lispector [24], o espanto diante da ausência se mistura à indiferença do mundo, passando pelo apodrecimento da matéria orgânica: “Enquanto te enterravam no cemitério judeu/ do Caju/ (e o clarão de teu olhar soterrado/ resistindo ainda)/ o táxi corria comigo à borda da Lagoa/ na direção do Botafogo”. Clarão do olhar resistindo à escuridão do enterro ou aos vermes? Talvez as duas coisas, inclusive porque uma não está separada da outra. Já no poema Glauber morto [25], Gullar descreve a cena – o cadáver em cima da cama no quarto vazio – sem se preocupar com a indiferença do universo, concentra-se na equipe médica: “Como já não come/ como já não morre/ enfermeiras e médicos/ não se ocupam mais dele./ Cruzaram-lhe as mãos/ ataram-lhe os pés. Só falta embrulhá-lo/ e jogá-lo fora.” Acrescento: para apodrecer. Mas um cadáver no quarto vazio não apodrece como uma banana no balcão da quitanda, não forma “um sistema de moscas e de mel” [26]. Há muitos apodrecimentos dentro da decomposição. Há quem filme enterros, como Glauber Rocha fez com Di Cavalcanti e depois fizeram com o próprio cineasta. Há quem, como Gullar, se espante com impurezas e decomposições, essas pequenas coisas esquecidas, essas pequenas coisas que tentamos esquecer. O poeta nos faz lembrar que uma mulher na cozinha não apodrece como uma pera no cesto, que um operário na fábrica não apodrece como um bife na marmita, que um gato no apartamento não apodrece como a ração do gato na varanda do apartamento, que um burguês não apodrece como o legume que ficou por vender.

 

Era 1975, Gullar estava em Buenos Aires, já havia escapado das ditaduras brasileira e chilena, pensou que não escaparia dos militares argentinos, que ensaiavam mais um golpe de Estado. Então, resolveu escrever uma espécie de testamento poético, saiu o Poema sujo: recriação da cidade de São Luís por meio de pequenas coisas esquecidas, lembrete indelével de que a vida é provisória e suja. Mas um poeta não apodrece como uma fruta porque é “um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas” [27]. O sonho do poeta Ferreira Gullar – especialmente no Poema sujo – é cheio de pequenas coisas esquecidas, de impurezas e decomposições: como um “trem sem destino [...] cantando pela serra do luar” [28]; ou uma “bocetinha que parecida sorrir entre as folhas de/ banana entre os cheiros de flor e bosta de porco” [29]; porque “o apodrecer de uma coisa/ de fato é a fabricação/ de uma noite” [30].

 

Gullar declarou que a poesia nasce do espanto com as coisas que via. O espanto com a poesia de Gullar nasce sobretudo das pequenas coisas esquecidas, especialmente as empoeiradas e as sujas, que o poeta recriou, reinventou e reposicionou.

 

Notas

[1] Ferreira Gullar. Toda a poesia. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 16.

 

[2] Ibid., p. 239.

 

[3] Gullar, op. cit., p. 304.

 

[4] Gullar, op. cit., p. 235.

 

[5] Gullar, op. cit., p. 18-19.

 

[6] Gullar, op. cit., p. 22.

 

[7] O livro dos HAI-KAIS. 2. ed. Massao Ohno Editor: São Paulo, 1987.

 

[8] Gullar, op. cit., p. 45.

 

[9] Gullar, op. cit., p. 238.

 

[10] Gullar, op. cit., p. 263.

 

[11] Gullar, op. cit., p. 242.

 

[12] Gullar, op. cit., p. 245.

 

[13] Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião: 23 livros de poesia – volume 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. p. 30-31.

 

[14] Gullar, op. cit., p. 236.

 

[15] Gullar, op. cit., p. 234.

 

[16] João Cabral de Melo Neto. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 47-48.

 

[17] Gullar, op. cit., p. 362.

 

[18] João Cabral de Melo Neto. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 34.

 

[19] Gullar, op. cit., p. 388.

 

[20] Na vertigem do dia é o livro que reúne poemas de Gullar escritos entre 1975 e 1980, é, também, o nome da coluna semanal que o poeta manteve na Rádio Cultura FM de São Paulo entre 2013 e 2016.

 

[21] Gullar, op. cit., p. 156.

 

[22] Gullar, op. cit., p. 217.

 

[23] Gullar, op. cit., p.73.

 

[24] Gullar, op. cit., p. 303.

 

[25] Gullar, op. cit., p. 351.

 

[26] Gullar, op. cit., p. 332.

 

[27] Gullar, op. cit., p. 233.

 

[28] Gullar, op. cit., p. 245-246.

 

[29] Gullar, op. cit., p. 233.

 

[30] Gullar, op. cit., p. 258.


Publicado originalmente no Passa Palavra