AS MENSAGENS PERDIDAS

 

Livro puxa livro, um traz outro, e assim se faz, se não um romance, pelo menos uma coluna [1].  Estava lendo sobre os últimos anos de Belchior [2]. Os autores citam a fuga de Tolstói, em 1910. O que leva um ancião de 82 anos a fugir de casa? Fiquei interessado. Fui ler Tolstói – a fuga do paraíso [3]. A arte de desaparecer é um tema que me atrai. Levou-me, por exemplo, a um escritor interessante como Enrique Vila-Matas, que tratou do tema no romance Doutor Pasavento [4] e nos livros de contos Suicídios exemplares [5] e Exploradores do abismo [6]. A arte de desaparecer compôs o pano de fundo das colunas que falaram de Belchior [7] e Robert Walser [8].

 

Mas conforme avançava pelas muitas páginas de Tolstói – a fuga do paraíso não era exatamente o tema em si que me chamava a atenção. O que me espantava era a capacidade do autor para reconstituir minuciosamente fatos ocorridos há mais de cem anos. Como reproduzir em detalhes acontecimentos do passado distante? Pável Bassinski opera o milagre da reconstituição a partir de cartas e diários de Tolstói, principalmente, mas não só. Utiliza, também, cartas e diários de familiares e amigos. Reconstrói fatos e personalidades de familiares, amigos e pessoas que conviveram com Tolstói. O que me levou a outro tema interessante, a luta da memória contra o esquecimento.  E daí retornei a um romance genial de Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento [9], que se passa na então Tchecoslováquia e é formado por sete partes, sendo duas intituladas As cartas perdidas.

 

Se Pável Bassinski está correto, foram desgastes familiares, especialmente com a esposa (Sófia Andrêievna), que levaram à fuga de Tolstói, aos 82 anos. Estavam em jogo os direitos autorais das obras do escritor e a posse dos diários dele. Mas por que pensei nas cartas perdidas? É que na parte final de Tolstói – a fuga do paraíso, Pável Bassinski reproduz uma carta de Sófia Andrêievna para o marido datada de outubro de 1895. Diz ela:

 

“Mas não posso deixar de lhe dizer (pela última vez, procurarei que seja a última) o que me faz sofrer tanto. Para que, em seus diários, cada vez que menciona meu nome, você se refere a mim com tanta raiva? Para que você quer que todos os nossos descendentes, nossos netos injuriem meu nome, como o de uma mulher leviana e maldosa, a esposa que lhe fez infeliz? Pois quanto mais isso aumentar sua fama como mártir, mais isso vai me prejudicar.

 

[...]

 

Quando nós dois não estivermos mais vivos, essa leviandade será interpretada de qualquer jeito por qualquer um, e eles jogarão lama em sua esposa...” [10]

 

Na primeira parte do Livro do riso e do esquecimento, intitulada As cartas perdidas, Mirek proclama: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” [11] Ele tinha, com sua a vida, a mesma relação que os artistas têm com suas obras. Mirek se reservava o direito de retrabalhar sua própria história, como os romancistas retrabalham os romances. Mas havia um problema. As cartas de amor que escrevera, quando jovem, para uma mulher simpatizante do regime estalinista e, pior, feia. Sim, ele havia cometido o erro imperdoável de escrever cartas apaixonadas para uma mulher feia, um “bucho”, na definição dele [12]. Mirek supostamente conhecia o segredo da vida (antes que sejam ligadas as sirenes das patrulhas ideológicas do bom-mocismo, atenção para as aspas, são palavras do Mirek e não do Cenek): “As mulheres não procuram o homem bonito. As mulheres procuram o homem que teve mulheres bonitas. Portanto, é um erro fatal ter uma amante feia.” [13] Paradoxalmente e contrariando sua máxima grandiloquente, a luta de Mirek é contra a memória e pelo esquecimento. Ele quer recuperar e destruir as cartas de amor que havia escrito para a mulher feia e apoiadora do regime. Ele sentia que o fim se aproximava, que não podia mais esperar, que precisava se livrar de parte do passado. É hilária a luta paradoxal de Mirek contra a memória e pelo esquecimento.

 

Na quarta parte do Livro do riso e do esquecimento, também intitulada As cartas perdidas, um casal foge da Tchecoslováquia após a invasão russa. Vão para uma viagem de férias e não voltam. Mas, para não serem notados, levam poucos pertences. Deixam um embrulho com diários e cartas para não chamar a atenção da polícia. Porque ninguém leva diários e cartas para uma viagem à praia. Sabendo que o apartamento em que morava seria confiscado após a fuga, Tamina deixa o embrulho na casa da sogra. Tempos depois ela fica viúva e a imagem do marido começa a desaparecer da memória dela. Ela tentava reconstruir a lembrança do marido morto a partir da foto carimbada do passaporte. Mas fracassava. As lembranças escapavam. Tamina queria recuperar diários e cartas porque “o edifício vacilante das lembranças caía como uma tenda mal levantada” [14]. Ao mesmo tempo, ela se apavorava com a ideia de ter a intimidade violada por estranhos. Tamina sabia que suas cartas e diários eram destinados apenas a ela própria. Se fossem lidos por terceiros o elo íntimo seria rompido. Ela tenta convencer algum turista francês a passar em Praga para buscar o embrulho, mas não podia explicar exatamente o porquê. A luta de Tamina contra o esquecimento passa por turistas desinteressados e uma sogra hostil.

 

Milan Kundera cria variações geniais sobre alguns temas, como as cartas perdidas e a memória. Mirek quer arrancar e rasgar uma página indesejada do passado. Tamina quer recuperar cartas e diários para reconstruir as páginas borradas do passado. Luta da memória pelo esquecimento. Luta da memória contra o esquecimento. Uma e outra produzindo o riso. Mas há um ponto que une Mirek, Tamina e até Sófia Andrêievna: o pior dos mundos é ter escritos íntimos lidos por terceiros. Os três conhecem os riscos que se corre quando palavras são retiradas do tempo e do contexto. Aqui saltamos das cartas perdidas para as mensagens perdidas.

 

Se ter escritos íntimos acessados por terceiros é um pesadelo; Sófia Andrêievna, Mirek e Tamina viveram nos tempos da delicadeza perdida. O que são a Rússia do final do século XIX e a Tchecoslováquia dos anos 1960 perto do tempo presente? Penso nas toneladas de mensagens trocadas, atualmente, por meio de redes sociais controladas por monopólios privados. Pior, no tempo presente se flerta – se é que se pode chamar isso de flerte – por meio de aplicativos controlados por monopólios privados. Sófia Andrêievna teve dificuldade com o marido escritor. Mirek teve dificuldade com uma mulher feia. Tamina teve dificuldade com turistas desinteressados e uma sogra hostil. Como será lidar com monopólios privados?

 

Outro tema explorado com genialidade por Milan Kundera no Livro do riso e do esquecimento é a litost. O romancista esclarece se tratar de uma palavra tcheca intraduzível. Os dicionários traduzem litost por arrependimento. Mas não é exatamente a mesma coisa. Kundera registra que a primeira sílaba se pronuncia de maneira longa e acentuada, como o lamento de um cão abandonado. Litost é um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa miséria subitamente revelada para nós mesmos. Como quando fazemos coisas que jamais imaginaríamos que seríamos capazes de fazer. Exemplo: agredir uma pessoa por nos sentirmos diminuídos pelas qualidades e pelo talento dela. 

 

Tamina sabia que, na então Tchecoslováquia, a imortalidade só existia nos dossiês policiais. Fico pensando que, no século XXI, a imortalidade existirá, será controlada e comercializada por monopólios privados. Não poucos tentarão, sem sucesso, arrancar e destruir páginas do próprio passado. A imortalidade no século XXI será o espetáculo da nossa miséria súbita, constante e comercialmente revelada. Uma espécie de litost agravada. Imagino Mirek tentando apagar mensagens apaixonadas enviadas – pelo Tinder – para uma mulher feia. Além de fracassar, seria acusado de gaslighting e irresponsabilidade emocional. No mínimo.

 

Notas

[1] O trecho de Machado de Assis, que inclusive já apareceu na seção de máximas deste site é: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução.

[2] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021.

[3] Pável Bassinski. Tolstói – a fuga do paraíso. São Paulo: LeYa, 2013.

[4] Enrique Vila-Matas. Doutor Pasavento. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[5] Enrique Vila-Matas. Suicídios exemplares. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[6] Enrique Vila-Matas. Exploradores do abismo. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[7] A longa viagem de Belchior.

[8] A arte de desaparecer.

[9] Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[10] A carta de Sófia Andrêievna está reproduzida na página 369 do livro referenciado na nota 3.

[11] A máxima está na página 18 da edição referenciada na nota 9. 

[12] A palavra bucho está na página 21 da edição referenciada na nota 9.

[13] O trecho está na página 19 da edição referenciada na nota 9.

[14] O trecho está na página 105 da edição referenciada na nota 9.


Publicado originalmente no Passa Palavra

TRÊS PASSEIOS NO INFERNO

  

[...] Caminhava de pijama entre as estações de trabalho. Os aparelhos de ar-condicionado funcionavam com capacidade máxima, resfriando o ambiente. Tocava música estadunidense. Easy listening.  Era uma sala grande, sem divisórias, com luz artificial. Não enxergava nada além das estações de trabalho. Os homens vestiam terno e gravata. As mulheres usavam roupas sociais e cachecóis. Todos se alternavam entre os telefones e as telas dos computadores. Falavam alto. Procurou alguma estação de trabalho vazia. Não encontrou. Tinha tarefas urgentes por fazer. Não lembrava quais. Perderia o emprego. Ficaria sem salário. Não teria como pagar as contas. Seria processado. Seria despejado. Seria preso. Chamou as pessoas. Mas ninguém ouviu. Tocou no ombro de um homem. Teve a mão empurrada e afastada com força e agressividade. Quis se refugiar debaixo de uma estação de trabalho. Foi chutado pela funcionária que trabalhava sem parar. Tinha frio. Tinha família. Tinha medo. Estava perdido. Seria demitido. Ouviu passos firmes e ritmados de sapatos italianos. Era o chefe. Seria xingado. Seria humilhado. Então, puxou um homem da cadeira. Tentou arrancá-lo à força. Precisava trabalhar. Trocaram socos. Levou cabeçadas e cotoveladas. Desmaiou [...] Caminhava de cueca entre os consumidores. O chão era limpo, frio, brilhante. Inclinou-se para frente. Viu o próprio rosto refletido no piso. Estava descabelado e com olheiras, como se não dormisse há meses. Passou por famílias bem vestidas. Era um corredor sem janelas, com vitrines e luz artificial. Não enxergava nada além das lojas.  Namorados passavam de mãos dadas, alguns tinham 100 anos. Crianças passavam correndo. Mulheres passeavam com cães topetudos. Todos exibiam sorrisos branquíssimos. Havia câmeras a cada 2 metros. Havia alto-falantes anunciando promoções. Quis se refugiar na loja de tapetes. Mas estava de cueca. Foi enxotado. Não via o final do corredor. Não havia saídas laterais. Seguiu no sentido contrário das pessoas. Elas vinham. Ele ia. Elas avançavam. Ele voltava. Seria denunciado. Ouviu um chamado para os seguranças pelos alto-falantes. Teria pernas e braços algemados. Seria arrastado. Seria humilhado. Estava frágil. Estava exposto. Tremia. O coração batia 180 vezes por minuto. Com as mãos abria caminho entre as famílias, os namorados, as crianças e as mulheres que passeavam com cães topetudos. Corria. Fugia. Mas o corredor se estreitava cada vez mais. Gritou [...] Caminhava nu entre as camas simetricamente posicionadas. O ambiente era limpo, frio, brilhante. Os aparelhos de ar-condicionado funcionavam discretamente. Médicos e enfermeiros vestiam jalecos brancos. Faxineiros trabalhavam com roupas brancas. Lençóis brancos cobriam as camas brancas. Pacientes usavam camisolas brancas. Brancura do vazio. Havia aparelhos médicos, frascos com líquidos e televisores sobre todas as camas. Era uma sala imensa, com luz artificial. Não enxergava nada além das camas brancas. Gemidos e gritos se misturavam com os apitos dos monitores multiparamétricos e os sons dos televisores. Todos sintonizados num único canal. Transmitiam o mesmo culto religioso. Procurou uma cama vazia. Chamou as pessoas. Elevou a voz. Ninguém ouviu. Tocou no ombro de um médico. Foi ignorado. Tentou puxar um lençol para se cobrir. Não conseguiu. Tinha tosse. Tinha dores. Estava cansado. Estava morrendo. Estava nu. Queria deitar. Reuniu as últimas forças e correu até uma cama que tinha o televisor e os aparelhos desligados. Levantou o lençol branco. Encontrou um corpo frio. Empurrou. Socou com as duas mãos. Queria arrancar o morto da cama. Não foi possível. Como se o corpo estivesse amarrado. Fracassou. Embranqueceu [...]


Publicado originalmente no Passa Palavra


 

A LONGA VIAGEM DE BELCHIOR

 

Belchior (1946-2017) foi um compositor de Música Popular Brasileira (MPB). Nasceu em Sobral, no Ceará. O avô tocava sax e flauta. A mãe cantava na igreja. Tinha tios seresteiros. Ainda menino se apresentava como cantador repentista. Frequentou o Seminário dos Capuchinhos. Foi programador de rádio. Mudou-se para Fortaleza. Participou de festivais de música, se aproximou de outros artistas. Chegou a cursar quatro anos de medicina, mas abandou a universidade. Foi para o Rio de Janeiro e, depois, São Paulo. Viajou de carona num avião do Correio Aéreo Nacional, espécie de prenúncio do que viria depois na obra e na própria vida do artista. Ganhou o IV Festival Universitário da MPB com a canção Na hora do almoço. Criou um estilo próprio em que cabia sua voz peculiar. Teve canções gravadas por Elis Regina e deslanchou. Wilson Simonal, Lenny Andrade, Roberto Carlos, Vanusa, Fagner, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Ivan Lins, Zé Ramalho, João Bosco, Margareth Menezes, Ney Matogrosso e outros também gravaram canções de Belchior. Fez sucesso principalmente nos anos 1970, com os álbuns Alucinação (1976), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978), Era uma vez o homem e seu tempo (1979). Além de músico, foi poeta, pintor, desenhista e leitor de mão cheia. Estudou caligrafia. Dominava vários idiomas. Foi da poesia para a música. Fazia citações eruditas nas canções. Dizia ser um compositor brasileiro nascido no Nordeste que prezava mais suas raízes humanas – que eram amplas, estavam em todos os lugares e em movimento – que suas raízes regionais e folclóricas. 

 

Mais ou menos quando completou 60 anos, Belchior iniciou um movimento inusitado. Foi aos poucos cortando os laços que o prendiam à família, aos amigos, ao passado e à própria música. Separou-se e foi morar num flat com uma artista plástica. Viajaram e se hospedaram em hotéis saindo sem pagar. Moraram de favor em casas de fãs. Passaram um natal numa rádio abandonada. Ficaram por um tempo num mosteiro. Chegaram a morar com o Movimento dos Pequenos Agricultores e em uma comunidade alternativa. Belchior parou de fazer shows. Também parou de pagar pensões e outras despesas. Teve a conta bancária bloqueada e mandados de prisão decretados. Perdeu carros e outros bens. Passou uma noite debaixo de uma ponte. Sofreu com o sensacionalismo midiático. Foi caçado e forçado a dar entrevista para o principal canal de televisão brasileiro. Perambulou entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul. Morreu vitimado por um rompimento na aorta. Tinha 70 anos. A longa e última viagem de Belchior foi reconstituída e contada no livro Viver é melhor que sonhar, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti [1].   

 

O sumiço de Belchior intrigou muita gente. Há vários palpites explicativos. Desde que aspirava à santidade até que foi manipulado pela mulher que o acompanhou. Os autores de Viver é melhor que sonhar entrevistaram mais de 150 pessoas que foram próximas ou que estiveram com Belchior nos últimos anos do artista. Não conseguiram chegar a uma resposta sobre o sumiço. Mas deixaram uma pista interessante que resolvi seguir. A longa viagem do artista poderia ser uma possibilidade contida em algumas canções, como, por exemplo, Comentários a respeito de John.

 

Estradas, viagens e rupturas perpassam a música de Belchior. Um certo “meter o pé na estrada like a Rolling Stone”, como na canção Velha roupa colorida.  Talvez seja, inclusive, a principal linha de força na poética do bardo. Com um detalhe sugerido pelos acontecimentos posteriores: o que poderia parecer certo escapismo juvenil era, na verdade, um projeto, quase uma ética, como se a vida estivesse sempre em outro lugar. Não se tratava apenas da legítima necessidade de respirar num país bloqueado por uma ditadura empresarial-militar, era uma profunda necessidade existencial. Exemplificando com as canções do compositor. Mucuripe: “Vida, vento, vela, leva-me daqui”. Paralelas: “Dentro do carro, sobre o trevo a 100 por hora/ Oh, meu amor!/ Só tens agora os carinhos do motor”.  Comentário a respeito de John: “Saia do meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decida a minha vida”. Tudo outra vez: “Há muito, muito tempo que eu estou longe de casa” [...] “Sentado à beira do caminho pra pedir carona/ Tenho falado à mulher companheira/ Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil” [...] “E um cara que transava a noite no Danúbio Azul/ Me disse que faz sol na América do Sul/ E nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil” [...] “E eu vou viver as coisas novas que também são boas/ O amor, humor das praças cheias de pessoas”. Coração selvagem: “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/ Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente/ Sim, já é outra viagem/ E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver” [...] “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão/ O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver/ E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza/ E arriscar tudo de novo com paixão/ Andar caminho errado pela simples alegria de ser” [...] “Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”.

 

Dá para seguir a viagem pelos versos do bardo. Divina comédia humana: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”. Teria interrompido a carreira por não encontrar maneiras de dizer não? Belchior chegou a afirmar que associava a liberdade à possibilidade de dizer não [2]. Velha roupa colorida: “Você não sente nem vê/ Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. A rima implícita faz a palavra amigo, no segundo verso, sugerir comigo na sequência. Como se a mudança fosse acontecer com o poeta.  Brincando com a vida: “Vida, eu não aceito, não! A tua paz/ Porque meu coração é delinquente, juvenil/ Suicida, sensível demais” [...] “A vertigem, o abismo, me atrai/ É esta a minha brincadeira”. O que foi a longa viagem do bardo senão uma busca pelo abismo e uma brincadeira com a vida? Princesa do meu lugar: “Se me der vontade de ir embora/ Vida adentro, mundo a fora/ Meu amor, não vai chorar”. Espécie de alerta prévio do que viria tempos depois. O mesmo acontecendo na canção Passeio: “Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento/ Só têm o momento de fugir no disco voador”.

 

Se não for viagem minha, há uma coerência intrigante entre as canções de Belchior e o sumiço dele. A obra joga luz sobre a longa viagem do artista e o inverso é verdadeiro. Muito se falou contra a última mulher do compositor, que o teria isolado da família, dos amigos e da própria carreira. Pode ser. É uma possibilidade. Mas, pelas canções, percebe-se que o artista precisava de uma companheira para cair na estrada com ele, para ganhar “esse mundo de meu Deus”, como na canção Galos, noites e quintais. Ou, como em Coração selvagem, precisava de uma mulher que lhe compreendesse a solidão, o som, a fúria e a pressa de viver. Uma companheira capaz de deixar a certeza de lado e arriscar com paixão, andando caminho errado pela simples alegria de ser.

 

Os autores de Viver é melhor que sonhar estabelecem paralelos literários para pensar o sumiço de Belchior. Citam a fuga de Tolstói, aos 82 anos [3]. Como Hans Castorp, que foi ficando no sanatório por vontade própria, Belchior ia ficando nas casas de fãs e amigos que o abrigavam [4]. O desaparecimento teria sido tão inexplicável quanto o aparecimento do corvo no quarto, sempre a repetir “nunca mais” [5]. Eu, pelo meu lado, vi na longa viagem de Belchior um “preferiria não” à la Bartleby [6]. Repetidas vezes pessoas próximas tentaram convencer o bardo a tocar, arrecadar dinheiro e melhorar sua situação. Todas as vezes ele deu um jeito de recusar, como Bartleby, o funcionário que respondia “preferiria não” quando o chefe lhe dava ordens. Um fã e amigo que esteve com Belchior nos últimos anos do compositor afirmou: “Ele não queria mais voltar e não voltaria sob hipótese nenhuma. Ainda assim, alimentava-se desses sonhos.” [7]   

 

Mais um paralelo literário por minha conta e risco. Ricardo Piglia escreveu um livro saboroso intitulado O último leitor [8]. Vai de Kafka a Joyce passando por Emma Bovary, Ana Karenina e Ernesto Che Guevara. O último leitor, para Piglia, é justamente o revolucionário argentino: “Guevara é o último leitor porque já estamos diante do homem prático em estado puro, diante do homem de ação.” A conclusão do ensaio sobre Che Guevara é uma daquelas sacadas que só os grandes romancistas são capazes de formular [9]. Mas voltando. Enxerguei um paralelo entre Che e Belchior pela afirmação da identidade latino-americana e porque ambos foram grandes leitores que ficaram quase sem nada, mas nunca sem livros. Che carregava livros quando foi capturado na Bolívia. Belchior jamais se distanciou dos livros, passou os últimos anos lendo, trabalhou numa tradução popular para a Divina Comédia. Outra aproximação possível é pelas viagens. Diz Piglia sobre o jovem Ernesto Guevara, que ainda não era o Che: “Escrever e viajar, encontrar uma nova maneira de fazer literatura, um novo jeito de narrar a experiência.” O mesmo estava posto para Belchior. Como possibilidade nas canções. Como fato consumado e conquistado nos últimos anos de vida. Com a peculiaridade de que o compositor alterou a ordem natural das coisas. Muitos jovens latino-americanos, como Ernesto Guevara, caíram na estrada nos anos 1950, 1960 e 1970. Belchior fez o mesmo décadas depois, nos últimos anos de sua vida, já no século XXI.

 

Se estradas, viagens e rupturas estão nos versos de Belchior; se são uma das principais linhas de força das canções: o sumiço dos últimos anos foi um posfácio radical e coerente para uma obra que sobreviverá. Belchior não ficou em casa contando vil metal. Certamente a longa viagem confundiu fãs, preocupou amigos e magoou familiares. Mas era uma possibilidade contida na obra do compositor. O artista devia estar farto de cantar as mesmas canções para o mesmo público. Preferiu viver os versos na estrada, com outras pessoas, em uma longa viagem: para realizar possibilidades contidas na música, porque viver é melhor que cantar.

 

Notas

[1] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021. 

[2] A entrevista em que o artista associa a liberdade à possibilidade de dizer não está no documentário Belchior – Apenas um coração selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias.

[3] Tolstói abandonou a família no final de 1910. Fugiu de trem. Morreu de pneumonia poucos dias depois da partida.

[4] Referência ao romance A montanha mágica, de Thomas Mann.

[5] Referência ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe.

[6] Referência ao conto Bartleby, o escrevente, de Herman Melville.

[7] O depoimento está no livro citado na primeira nota.

[8] Ricardo Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[9] Trecho final do ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, de Ricardo Piglia. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

MULHERES E NÃO

 

Eduardo Galeano apreciava a grandeza das coisas pequenas. Dizia que teve pouca educação formal, teria se formado escutando histórias nos cafés de Montevidéu. Gostava de citar a poeta estadunidense Muriel Rukeyser, que dizia que o mundo é feito de histórias e não de átomos [1]. Era como se ao escritor coubesse descobrir e ouvir histórias para recontá-las. Quando leio os textos de Galeano tenho a sensação de estar diante de uma sabedoria, e não exatamente de uma literatura. Para ser capaz de falar, saber escutar. Para não ser mudo, começar por não ser surdo. A escrita de Galeano se aproxima de maneira interessante da oralidade, não exatamente pelas palavras e pela linguagem, mas pelo que é ouvido e, posteriormente, recontado. O título do último livro publicado por Eduardo Galeano é certeiro: O caçador de histórias.

 

1901. Espanha. Duas mulheres se encontram num curso para professoras e experimentam um amor urgente e proibido. Elisa Sánchez e Marcela Gracia. A mãe de uma descobriu e tentou separar a filha da outra. Mas tempos depois elas se reencontraram. Talvez por um veio anarquista, ou legítima vontade de cuspir na cara dos moralistas: decidiram casar na igreja. Elisa se transformou em Mario, casaram com direito à certidão. Há uma foto do casamento em que elas parecem rir por dentro. Tempos depois, descoberta a fraude, foram caçadas. Fugiram para Portugal, foram presas na cidade do Porto. Escaparam. Atravessaram o oceano Atlântico. Foram vistas pela última vez em Buenos Aires.

 

A poeta Alfonsina Storni também foi para Buenos Aires na primeira metade do século XX, levava sapatos velhos e um filho novo. Trabalhou como pôde. Quando sobravam, comia migalhas dos pães que o diabo amassava. Mas abriu brechas e atravessou as muralhas do mundo masculino. “Sua cara de camundongo travesso nunca falta nas fotos que reúnem os escritores argentinos mais ilustres” – a frase é de Eduardo Galeano. Os poemas de Alfonsina falam do rio caudaloso e do mar enorme: “Yo tengo el corazón como la espuma. Mar, yo soñaba ser como tu eres.” Ela se considerava uma flor perdida, nascida na beira de um rio caudaloso, entre plantas e ervas. Com 43 anos, descobriu um câncer. Com 46 anos, se matou. Escreveu o poema Voy a dormir, enviou ao jornal da cidade e se lançou no mar: “Pela branda areia que lambe o mar, sua pequena pegada não volta mais”os versos estão na canção Alfonsina y el mar, de Ariel Ramírez e Félix Luna, mas poderiam ser de Eduardo Galeano. Imagino as pegadas de Alfonsina nas areias de Mar Del Plata: os passos levam para o mar, desaparecem aos poucos.

 

1904. Espanha novamente. Nasce uma menina que não foi batizada, o que não era comum. Matilde Landa cresceu e se aproximou do movimento popular. Em 1936, ingressou no Partido Comunista. Lutou ao lado dos antifascistas na guerra civil espanhola: recebeu treinamento militar, organizou hospitais, apoiou a retirada de combatentes, auxiliou os refugiados. Em 1939, foi presa: organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Em 1940, foi presa novamente: novamente organizou as detidas e resistiram como puderam, evitaram execuções, melhoraram as condições do cárcere. Mas a tenacidade e a coerência de Matilde Landa eram um exemplo a apagar. Em 1942, o regime – apoiado pela igreja – decidiu batizá-la à força. Ela – que não acreditava em Deus – devia se arrepender de todos os pecados. Matariam dois coelhos com uma única cajadada: fariam propaganda e golpeariam o moral dos que resistiam. No dia marcado para o batismo, ela se lançou do telhado. A cerimônia foi realizada mesmo assim. Batizaram o corpo caído. Matilde Landa resistiu até o último suspiro. Morreu resistindo. Resistiu morrendo.           

 

1945. Itália. Elio Vittorini, escritor e membro da resistência, publicou o romance Homens e não [2]. O tema é a luta antifascista, a ação ocorre durante a segunda guerra mundial. É um romance curto, mas não deve ser lido numa única tacada. Perto do fim é preciso parar, tomar um café e respirar fundo antes de continuar a leitura. Os personagens não têm nome, como são combatentes, se tratam por apelidos, siglas e números. O título sempre me intrigou, talvez porque remete à Itália que aprendi a amar por conta de homens que resistiram, mas, sobretudo, pela palavra não estampada na capa espessa. O nome do autor quase não aparece. Quem passa o olho rapidamente lê Homens não. No romance de Vittorini também as mulheres compõem a resistência e são identificadas por apelidos, siglas e números.

 

Há uma edição com saborosos textos de Eduardo Galeano [3] sobre mulheres que, de diversas maneiras, resistiram e disseram não. Entre elas Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni e Matilde Landa. Às vezes fico imaginando um livro que gostaria de encontrar e ler. Seria meio Galeano, meio Vittorini. A sabedoria do escritor uruguaio, o realismo do escritor italiano. Seria infinito, absurdo, preciso. Entrariam Elisa Sánchez, Marcela Gracia, Alfonsina Storni, Matilde Landa... Chamaria Mulheres e não. Contaria as histórias individuais e coletivas de todas as mulheres que resistiram e disseram não, especialmente as anônimas.

 

Notas

[1] Essa e outras falas do escritor uruguaio podem ser conferidas no documentário Eduardo Galeano Vagamundo.

 

[2] Elio Vittorini. Homens e não. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

[3] Eduardo Galeano. Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2015. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

A GRANDE ADÚLTERA

 

Emma Bovary provoca paixões violentas, a favor e contra. A favor: o escritor Mario Vargas Llosa [1] e mais alguns. Contra: o Ministério Público Francês e o promotor Ernest Pinard, que levaram Gustave Flaubert para o banco dos réus por ofensa à moral e aos bons costumes. Componho o primeiro grupo. Foi paixão à primeira leitura. Talvez por saber, desde o início, que o destino dela seria trágico, e por constatar, a cada página, que ela não recuaria. Vale pontuar que Emma Bovary era grande leitora de romances, também ela sabia o destino reservado às adúlteras. Enfim. Sempre que posso, retorno ao romance de Flaubert. Costumo ler, também, o que encontro sobre a Madame.

 

Num sebo, procurando livros na seção de crítica literária, encontrei Os ovários de Mme. Bovary, de David Barash e Nanelle Barash [2]. Comprei, li e recomendo. São dez ensaios que analisam obras literárias com instrumental darwiniano. Os autores passam por Jane Austen, Shakespeare, Faulkner, Dostoievski, Joyce, Philip Roth, Flaubert e outros. Os ovários de Mme Bovary... Uma sacada provocativa, explicita a ideia que perpassa todos os ensaios: a biologia tem muito a dizer sobre o comportamento humano, seria “uma chave [...] que abre mais portas, dá acesso a mais lugares e lança mais luz do que qualquer de suas alternativas menos versáteis”. Os autores não se arriscam a ponto de afirmar que a biologia explica totalmente a literatura, sabem que os seres humanos são animais culturais, com imaginação e intelecto. Mas lembram, por outro lado, que não é por ter imaginação e intelecto que os homens deixam de ser animais. Se é assim, seria possível “encontrar raízes na biologia, o leito comum que todos os seres humanos compartilham com focas, alces, gorilas e grande parte do mundo animal”.

 

Por meio da Madame Bovary, de Flaubert, David Barash e Nanelle Barash discutem “a biologia do adultério”. Afirmam, por exemplo, que pesquisadores analisaram diversas espécies e perceberam que, em alguns casos, 70% das crias nascem de traições, ou seja, de relações extraconjugais. Emma Bovary, por exemplo, teria ouvido um sussurro darwiniano subliminar que lhe provocou comichão nos ovários, empurrando-a para a cama com Rodolphe e Léon. Os autores vão mais longe. Argumentam que a tendência à infidelidade da Madame Bovary aumentou quando o marido sofreu um revés profissional. No que ela se aproximaria das fêmeas de chapim-real, que geralmente são fiéis, mas às vezes traem os parceiros, especialmente quando eles fracassam socialmente. De acordo com os autores, a ausência de inclinação para a maternidade também pode ter aumentado a tendência à infidelidade de Emma Bovary, que pouco se preocupava com a filha.

 

É interessante reler a personagem de Flaubert a partir dos ovários. Mas, para mim, que sou do time dos apaixonados por ela, a interpretação biologizante pareceu insuficiente e até desrespeitosa com a adúltera, como se a rebaixasse. Onde David Barash e Nanelle Barash enxergam a “biologia do adultério”, vejo “a poesia do adultério”. Curiosamente, o promotor que acusou Flaubert concorda comigo. A expressão “poesia do adultério” é dele, que, além disso, definiu o romance como “uma pintura admirável sob o ponto de vista do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista moral.” [3] Detalhe. Vargas Llosa lembra que o promotor que acusou Flaubert por ofensa à moral e aos bons costumes escrevia, secretamente, versos pornográficos...

 

Emma Bovary era uma leitora incansável: “mesmo à mesa levava um livro e virava as páginas enquanto Charles comia e falava-lhe” [4]. Flaubert informa que, após a primeira traição, ela lembrou-se das heroínas dos livros que lera, aquela legião lírica de mulheres adúlteras tomou-lhe a memória de assalto, como irmãs que a seduziam. Realizou, então, o longo devaneio de juventude e se tornou uma mulher apaixonada. Além disso e ao mesmo tempo, sentiu-se vingada. Sofrera muito. Mas, finalmente, triunfava. O amor, por tanto tempo reprimido, “jorrava alegremente em alegre efervescência.” [5] Se é assim, por mais provocativa que seja a ideia, não dá para limitar Emma Bovary aos ovários.

 

Mais interessante do que explicar as paixões de Emma Bovary é pensar por que ela continua apaixonante um século e meio depois da publicação do romance. Como explicar o amor pela personagem de Flaubert? O que dizer da paixão dos leitores, como eu, por uma adúltera sem ovários, posto que é uma personagem? Será que, inconscientemente, gostaríamos de fazer amor com ela? Transmitir nosso material genético para a posteridade junto com ela?  Se fosse isso, ponto para o romancista, que teria irritado o Ministério Público, iludido a seleção natural e despertado a atração sexual dos leitores por uma personagem. Mas não é por aí. O instrumental da biologia é insuficiente para explicar por que amamos Emma Bovary. Ela apaixona devido à escrita de Flaubert [6], que recorta e reorganiza a realidade, reposicionando e revalorizando objetos (leques, buques, frascos de perfume) e partes do corpo humano (mãos, unhas, pulsos). O romancista humaniza as coisas e coisifica as pessoas, exceto a personagem principal, que se destaca. Mas não é só isso. Emma Bovary apaixona, sobretudo, por suas apologias e rechaços: sim para os livros, sim para os sonhos, sim para a imaginação, sim para o amor; não à filha, não ao marido, não ao casamento, não à monogamia e, seguindo por esse caminho, não ao patriarcado. Ela afirma e recusa ao mesmo tempo e com a mesma radicalidade. Morreu com um “riso atroz, frenético, desesperado.” [7] Acrescento: desespero libertador dos que não esperam absolutamente nada.

 

Emma foi uma leitora que teve contato, pelos romances, com uma legião lírica de adúlteras. Ela certamente conhecia o destino reservado às senhoras que amam fora do casamento. Que seja difícil, quase impossível, amar dentro do casamento, não alivia a condenação dela e das demais. O destino de Emma Bovary é parecido com o de Ana Karenina e tantas que as precederam. Mas ela não se intimidou. Vargas Llosa [8]: “Emma quer gozar, não se conforma em reprimir em si essa profunda exigência sensual que Charles não consegue satisfazer porque nem sabe que existe.” Se é assim, a personagem de Flaubert pode ser considerada uma espécie de feminista avant la lettre. Além disso, ela foi liquidada por um agiota e pelo patriarcado, mas não costuma contar com a simpatia nem dos setores progressistas. Provavelmente porque sua recusa é demasiadamente radical: rebelou-se contra a maternidade (“como essa criança é feia” – murmurou ao lado da filha, que dormia), arruinou as finanças familiares, amou fora do casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”) [9].

 

Mas a leitora incansável devia morrer porque ousou ser ousada. Seus amantes seguiram suas vidas normalmente. A poligamia lhes era permitida. Eles dormem enquanto o corpo dela é velado: “Rodolphe, que para distrair-se andara o dia todo, dormia tranquilamente em seu castelo; e León, lá em Rouen dormia também.[10] Ela se despede da vida. Eles não se despedem dela.

 

A palavra adultério vem do latim adulterĭum, no sentido de traição, mas também como mudança e alteração. Na terceira parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada As palavras incompreendidas, Milan Kundera [11] discute a traição a partir da pintora Sabina, que é legitima integrante da legião lírica de mulheres adúlteras, uma espécie Madame Bovary da Boêmia: “A traição. Desde nossa infância, papai e o professor nos repetem que é a coisa mais abominável que se possa conceber. Mas o que é trair? Trair é sair da ordem. Trair é sair da ordem e partir para o desconhecido. Sabina não conhece nada mais belo do que partir para o desconhecido.” Contra Emma Bovary joga a moral cristã a ensinar que a carne não vale, que sexo é pecado, que a mulher deve ser submissa, que é preciso se arrepender. Ela trava um combate desigual contra a culpa, a submissão, o arrependimento e a repressão sexual. Que Emma tenha traído o marido porque sentiu comichão nos ovários é apenas uma parte da história. É preciso lembrar que ela foi uma leitora que disse não, que não cabia numa sociedade provinciana ao lado de um homem medíocre. Por tudo isso, vejo Emma Bovary para além dos ovários: é a grande adúltera no melhor sentido da palavra – como mudança e alteração, como quem sai da ordem e parte para o desconhecido. Evoé, Madame Bovary! 

 

Notas

[1] Mario Vargas Llosa. A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

[2] David P. Barash e Nanelle R. Barash. Os ovários de Mme. Bovary – um olhar darwiniano sobre literatura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

[3] As palavras do promotor que acusou Flaubert foram citadas por Vargas Llosa, na edição referenciada na nota 1.

[4] Gustave Flaubert. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM, 2016.

[5] O trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota anterior.

[6] Emma Bovary: a condenação perpétua

[7] O trecho está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[8] O trecho está no livro referenciado na nota 1.

[9] Os trechos entre aspas estão no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[10] O trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.

[11] Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das letras, 2008. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 SANTO

 

Um homem, afinal de contas, não devia conhecer tudo, sobressair-se em múltiplas atividades, iniciar a mulher nas energias da paixão, nos refinamentos da vida, em todos os mistérios? Mas aquele ali não lhe ensinava nada, não sabia nada, não desejava nada. Achava que era feliz; e ela o detestava por aquela calma tão assentada, por aquele peso sereno, pela própria alegria que ela lhe dava.

(Gustave Flaubert - Madame Bovary)

 

Estava no túnel de entrada para o segundo tempo da vida. Havia se acostumado com o substantivo masculino senhor. Em algum momento, talvez no terceiro quarto do primeiro tempo da vida passou, precocemente, a ser chamado de senhor. Não se incomodava. Era casado, tinha duas filhas e usava roupas discretas: sapatos e cintos da mesma cor, camisas por dentro da calça, blusas de lã com gola v. Mas, como registrou um escritor um pouco anterior ao nosso tempo: um dia surge o “por quê e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro.”

 

Era bancário. Fazia pagamentos e transferências. Os valores que movimentava na agência faltavam-lhe no bolso. Geralmente ficava sem dinheiro no meio do mês. Usava o cheque especial com a moderação permitida pela correlação de forças familiares. Na economia doméstica, ele era neoliberal, enquanto a mulher e as filhas eram neodesenvolvimentistas. Ele defendia o corte de gastos e o equilíbrio das contas. Elas exigiam a ampliação dos investimentos e das despesas sociais. Aquele lar era um bom exemplo de que as economias familiares não podem ser comparadas com as economias nacionais.

 

De manhã cedinho o cão o levava para passear. Às seis em ponto o animal corria e latia no quintal. Davam voltas no quarteirão até o cachorro se aliviar. Recolhia as fezes do animal e as depositava no cesto de lixo, devidamente embrulhadas. Daí seguiam para a padaria. Amarrava o cachorro e comprava pães para o café da manhã. Depois deixava as filhas no colégio e seguia para o banco. Às vezes fazia horas extras. Nesses dias ajudava a preparar o jantar, lavava a louça e dormia. Quando chegava no horário normal, aproveitava para assistir TV com a família. Não gostava de novelas, mas elas o faziam relaxar e esquecer o dia a dia, além de proporcionarem algum contato com a mulher e as filhas, que exigiam silêncio quando ele puxava assunto. Às vezes se repreendia por falar sempre na hora errada. Às vezes se retirava e ia para o quintal brincar com o cachorro, se acalmava e voltava. Era o melhor amigo do cão. Às vezes tentava colocar o animal dentro de casa, mas era repreendido pela esposa. Se pudesse, pelo menos, acompanhar a novela junto com o cão... Às vezes tinha vontade de assistir telejornais e programas esportivos, mas declinava para não contrariar a esposa e as filhas. Nem cogitava a possibilidade de assistir telejornais e programas esportivos no quarto, longe da mulher e das meninas.

 

Duas vezes por semana buscava as filhas no balé. Não se incomodava com o trânsito parado. Mas, nas apresentações semestrais, no ginásio do clube, esforçava-se para não cochilar, e aplaudia coreografias que não entendia. Pensava ser a desvantagem de ter filhas. Assistir um filho jogando futebol talvez fosse mais interessante – cogitava sem muita convicção. Queria tentar mais uma gravidez, quem sabe viesse um menino, mas a esposa não aceitava.

 

Aos sábados fazia pequenas manutenções na casa. Sempre sob supervisão crítica da esposa, que reclamava das limitações dele como reparador de interiores e exteriores. Ela dizia que qualquer homem da família dela faria o mesmo trabalho melhor e mais rápido. Ele trocava o telhado, pintava a fachada, limpava a caixa d’água, consertava o portão automático. À noite saía com a família. Deixava a mulher e as filhas escolherem o restaurante, em geral elas escolhiam algum shopping da cidade, para jantar e ir ao cinema. Ele não se incomodava com as filas e a lotação, nem se irritava com a dificuldade para estacionar. Elas desciam e faziam compras enquanto ele esperava aparecer alguma vaga no estacionamento, assim a mulher e as filhas aproveitavam melhor os passeios. Além de fazer compras, elas gostavam de filmes de ação. Ele não tinha preferências. Quando enjoava dos filmes que elas escolhiam, se escondia atrás dos óculos 3D e dormia. As filhas diziam que o pai vivia cansado, que só dormia. Ele concordava e ria: era verdade!

 

Aos domingos jogava futebol. Mais importante era papear com amigos depois da pelada. Mas tinha pouco tempo. Almoçava na casa da sogra. Era sempre o primeiro a deixar o clube. Saía antes de terminarem as primeiras cervejas. Porque começava a sentir dores nos joelhos e tinha que almoçar na sogra, pensou em largar o futebol. Apesar de não atrasar mais que quinze minutos, quando chegava na casa da sogra era lembrado de que o almoço já estava pronto, sendo interpelado por olhares inquisidores. Elas perguntavam por que ele continuava correndo atrás de bola, se já não tinha mais idade.

 

Nos almoços dominicais, depois do macarrão vinha um assado, frango ou carne de boi, mais raramente costelinhas de porco; depois do macarrão e do assado vinha a sobremesa, geralmente pudim de leite condensado, porque as meninas gostavam; depois da sobremesa vinha o café; depois do café vinha o dominó, que jogavam até anoitecer, deixava a sogra e as filhas ganharem. Alegrava-se com a alegria delas.

 

Nos aniversários era sempre ele que puxava a parte do “e pra fulana nada”, ao que as demais respondiam “tudo”, ele perguntava “então como é que é?”, e elas retrucavam com “é pique, é pique, é pique, é pique, é pique.” É graças a homens como ele que, em nenhuma mesa e em nenhum salão, nunca o “parabéns pra você” parou no meio por falta de alguém que emende o “e pra fulano nada?”.  Estranho acordo ontológico, mesmo sem nenhum contato prévio e sem nenhum treinamento, sempre haverá alguém para dizer “e pra fulano nada”. O que faz um homem saber que chegou a sua vez de ser protagonista no “parabéns pra você”? Seja como for, o fato é que tais homens são as vigas de sustentação das famílias.

 

Quando as filhas brigavam porque uma queria ir ao shopping e a outra à pizzaria, ou porque uma não queria que a outra usasse suas roupas, ou porque uma acusava a outra de bagunçar o quarto, ou porque uma dizia que a outra tinha comido todo pudim de leite condensado: ele intervinha. Explicava calmamente que elas eram irmãs e precisavam se entender, que uma tinha razão, mas a outra também, que o papai amava as duas igualmente. Não raro acontecia das irmãs, com apoio da mãe, se juntarem contra ele. As brigas nunca começavam com ele, mas costumavam se virar contra ele: como se o pai fosse culpado pelos desentendimentos e por todos os problemas da família e do mundo. Era como culpar um pernilongo por uma hemorragia. Ele desconhecia a comparação, mas certamente estaria disposto a aceitar que um pernilongo pode causar uma hemorragia, especialmente se fosse para acalmar os ânimos familiares. Ele era um pernilongo que nem picava nem fazia barulho, mas, às vezes, mulher e filhas tinham vontade de esmagá-lo com as mãos.

 

Vendeu um dos carros para bancar a lipoaspiração e o silicone da esposa. Ficou sem o veículo que usava para se locomover, mas a alegria da mulher compensou com vantagem o esforço para enfrentar o transporte público, mesmo nas épocas de chuva. O que era um sapato molhado durante todo o dia perto da alegria da esposa? O que eram duas horas chacoalhando nos coletivos perto da felicidade dela? Podia ouvir música pelo fone. Usava o tempo disponível para pensar na família e planejar o futuro.

 

Com a cintura fina, as pernas torneadas, os peitos duros e duas horas diárias de academia, a esposa passou a implicar com a barriga dele. Havia tantos homens que estavam melhor que ele, uns 60 só no clube – pelas contas dela. Um homem que não se cuida não merece uma mulher bem cuidada – dizia a esposa. Ele concordava e prometia se matricular na academia, ou, pelo menos, comprar uma bicicleta ergométrica e um banco de supino. Faltava-lhe tempo e energia. Mas sabia que ela tinha razão. Desconfiava, inclusive, que no clube havia mais de 60 homens que estavam melhor que ele, o número era arbitrário, bondade e complacência da esposa. Sentia ciúmes dos homens que estavam melhor que ele, especialmente aqueles 60 ou mais. Sonhar com o barulho de pernilongo pode significar que há pernilongos no quarto. Mas ele tinha certeza de que a mulher nem reparava nem se interessava por outros homens, se falava deles era para incentivá-lo a se cuidar. Estava realmente barrigudo e fora de forma. Ela tinha razão. Estava corretíssima.

 

É verdade que reparava em outras mulheres. Nutria algum interesse por dormir com outra mulher. Era o invariável desejo de variar. Inclusive porque a esposa foi a primeira e a única namorada dele. Mas o receio de magoar a mulher e as filhas o continha. O risco não compensava o investimento – pensava aquele trabalhador da área financeira. Sou casado, minha vida é boa, não posso arriscar – dizia para si próprio. Foi legítimo herdeiro da tradição inaugurada por Charles Bovary, apesar de não conhecer literatura nem ter tempo para livros. Enfim. O bovarismo – entendido como alteração do senso de realidade – foi pensado a partir de Emma Bovary, mas é preciso estudar o fenômeno também a partir de Charles Bovary.

 

Certa vez precisou renovar documentos e certidões. Pediu liberação do trabalho no período da manhã e agendou a visita ao posto de atendimento. Passeou com cão. Comprou os pães. Foi a pé renovar os documentos e as certidões. Era a primeira quebra de rotina em muitos anos. Constatou que as ruas em que crescera estavam lotadas de edifícios e automóveis. No posto de atendimento foi solicitado a confirmar as informações pessoais anotadas pela atendente. Data de nascimento: correto. Pai: correto. Mãe: correto. Estado civil: correto. Cor dos olhos: correto. Cabelos... Grisalhos? Foi quando surgiu-lhe o por quê. Sentiu, espantado, a passagem do tempo, como se tivesse ficado grisalho naquela manhã. Por que o tempo passa tão rápido? Convivia com o substantivo senhor, mas era a primeira vez que se deparava com o adjetivo grisalho. Tinha algumas dezenas de cabelos brancos, era fato, mas nunca havia sido chamado de grisalho.  


Publicado originalmente no Passa Palavra