O KITSCH, A EXISTÊNCIA E O ROMANCE

 

Emma Bovary desperta paixões violentas, a favor e contra. Com essas palavras iniciei a coluna intitulada A grande adúltera. Ocorre que não apenas a personagem Gustave Flaubert, mas o próprio romance cobra posicionamentos. Não se lê Madame Bovary com indiferença. Em coluna intitulada Milan Kundera, registrei que uma das grandes sacadas do romancista tcheco foi explorar a dimensão existencial do kitsch [1]. Juntando uma coisa com a outra, é possível fazer uma leitura de algumas interpretações do romance de Flaubert usando a sacada de Kundera para destacar a potência da arte do romance.

 

As interpretações kitsch de Madame Bovary podem ser sintetizadas nas palavras do crítico literário Sainte-Beuve e da romancista George Sand [2]. Sainte-Beuve: “A crítica que faço a seu livro é que o bem está muito ausente”, o crítico questiona por que não há “um só personagem que tenha a natureza de consolar, de descansar o leitor com um bom espetáculo”? George Sand registrou que Flaubert escondia o “sentimento” que tinha pelos personagens e transmitia “desolação” aos leitores enquanto ela preferia “consolá-los”: “a arte não é só crítica e sátira”. Flaubert respondeu para Sand que nunca pretendeu fazer nem crítica nem sátira, apenas se esforçava para “adentrar a alma das coisas” [3].

 

Há nas palavras do crítico e da romancista uma dimensão moralizante, mas há, também, o kitsch. É que o kitsch se caracteriza exatamente por “consolar” e “descansar [...] com um bom espetáculo” [4]: “é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação” [5]. No reino do kitsch o bem deve estar ostensivamente presente. Se é assim, o kitsch é uma necessidade existencial dos consumidores de arte, não é apenas um rebaixamento estético.  Ou dito de outra forma, trata-se de um rebaixamento estético demandado pelos consumidores de arte. O fato é que: pelo desconsolo que provoca e pela ausência do bem, não há espaço para Madame Bovary no reino do kitsch.

 

Após publicar Madame Bovary e ser processado por ofensa à moral e aos bons costumes, Flaubert escreveu uma carta a um primo em que registrou: “Eu te confessarei, de resto, que tudo isso me é perfeitamente indiferente. A moral da Arte consiste em sua própria beleza, e eu estimo acima de tudo o estilo, e em seguida o Verdadeiro” [6]. Tivesse caído nas mãos do Ministério Público em tempo, a confissão de Flaubert certamente seria usada na peça de acusação. A “moral da Arte” teria levado o romancista e violar a moral e os bons costumes da sociedade francesa. Mas se o romance precisa “adentrar a alma das coisas”, os choques são inevitáveis, porque de acordo com a moral e os bons costumes há coisas que não devem ser investigadas nem muito menos publicadas.

 

Kundera notou que, para se sustentar, o kitsch exclui “toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério)” [7]. Kundera novamente: “É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para imagens-chave profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.” [8] Por tudo isso que um romance como Madame Bovary não cabe no reino do kitsch. O bem está ausente, o desconsolo é total e, pior ainda, há uma adúltera no primeiro plano. Curioso notar que, Flaubert foi inocentado da acusação por ofensa à moral e aos bons costumes, mas não porque “adentrar a alma das coisas” é fundamental para o romancista e não porque “a moral da Arte consiste em sua própria beleza”. Tese da promotoria: Madame Bovary é um livro imoral porque Emma não se arrepende. Tese da defesa: Madame Bovary é um livro moral porque o fim atroz da adúltera desautorizaria o adultério. Prevaleceu a segunda tese. Mas as duas condenam a arte do romance. Nem acusação nem defesa escapam do kitsch. A adúltera deve se arrepender e pagar pelo que fez. Ponto final.

 

Aqui surge uma questão interessante:  se o kitsch está em todos os cantos, é possível escapar dele? Recorro mais uma vez a Kundera. O romancista divide os homens em dois grupos: os que em alguma medida desconfiam e os que aderem à vida sem ressalvas. Os últimos se baseiam, conscientemente ou não, no ensinamento presente no primeiro capítulo do Gênese: o mundo é o que devia ser, as pessoas são boas e devem procriar. Se o mundo é o que devia ser, o bem é onipresente. Se as pessoas são boas e devem procriar, não há espaço para uma adúltera como Emma Bovary: que achava a própria filha feia e que arruinou a família. Quem adere à vida sem reservas firma o que Kundera definiu como “acordo categórico com o ser”, que é “a fonte do kitsch”. Mas é possível viver em desacordo categórico com o ser? A resposta é não: “Nenhum de nós é sobre-humano a ponto de poder escapar completamente ao Kitsch. Não importa o desprezo que nos inspire, o kitsch faz parte da condição humana.” [9] No romance A insustentável leveza do ser a pintora Sabina trava combate contra o kitsch, mas sem vitória definitiva. Quando assistia filmes sentimentais, os olhos dela se enchiam de lágrimas sempre que a filha ingrata se reconciliava com o pai abandonado. O kitsch da pintora tinha a ver com tudo que ela não teve: um lar sossegado, doce e harmonioso, com uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria.

 

Mas se não há como escapar totalmente do kitsch, é possível confrontá-lo. Kundera outra vez [10]: o verdadeiro adversário do kitsch é o homem que interroga, “a pergunta é como faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás.” Acrescento: outro adversário do kitsch, ainda que não seja imune a ele, é o romance. A arte do romance – entendida como um “adentrar a alma das coisas” – é uma manifestação de individualismo (não raro uma cusparada no rosto do senso comum), mas também de ceticismo (se o romancista recria o mundo é porque desconfia das coisas como estão e são) e ironia (o romancista leva a sério apenas a própria escrita). A arte do romance passa, sobretudo, por interrogar e recriar. Pode, exatamente por isso, confrontar o kitsch, que é a “mentira embelezante” mobilizada para descansar e consolar quem teme e prefere evitar “a alma das coisas”.

 

Notas

[1] Na sexta parte do livro A arte do romance, intitulada Sessenta e três palavras, Milan Kundera define o kitsch (os grifos são meus):

 

“Quando eu escrevia A insustentável leveza do ser, fiquei um pouco inquieto por ter feito da palavra kitsch uma das palavras-pilar do romance. Na verdade, ainda recentemente, essa palavra era quase desconhecida na França, ou então conhecida em um sentido muito empobrecido. Na versão francesa do célebre ensaio de Hermann Broch, a palavra ‘kitsch’ é traduzida por ‘arte de carregação’. Um contrassenso, pois Broch demonstra que o kitsch é coisa diferente de uma simples obra de mau gosto. Existe a atitude kitsch. O comportamento kitsch. A necessidade kitsch do homem-kitsch (Kitschmensch): é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação. Para Broch, o kitsch está historicamente ligado ao romantismo sentimental do século XIX. Visto que na Alemanha e na Europa Central do século XIX era muito mais romântico (e muito menos realista) que em outra parte, foi lá que a palavra kitsch nasceu, e que ainda é usada corretamente. Em Praga, vimos no kitsch o inimigo principal da arte. Não na França. Aqui, à arte verdadeira se opõe o divertimento. À grande arte, a arte simples, menor. Mas, quanto a mim, nunca me irritei com os romances policiais de Agatha Christie! Em compensação, Tchaikovski, Rachmaninoff, Horowitz no piano, os grandes filmes hollywoodianos, Kramer versus Kramer, Doutor Jivago (oh, pobre Pasternak!), é o que profunda e sinceramente detesto. E fico cada vez mais irritado pelo espírito do kitsch presente nas obras cuja forma se pretende modernista. (Acrescento: a aversão que Nietzsche experimentou pelas ‘palavras bonitas’ e pelos ‘casacos com ornamentos’ de Victor Hugo foi a repugnância pelo kitsch em seus prenúncios.) 

 

[2] Os trechos do crítico, da romancista e de Flaubert foram citados no ensaio de Milan Kundera intitulado Adentrar a alma das coisas, publicado no livro A cortina.

 

[3] Ensaio citado na nota anterior.

 

[4] Ensaio citado na nota 2.

 

[5] O trecho entre aspas está no texto citado na nota 1.

 

[6] A carta de Flaubert ao primo foi citada no livro A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary, de Mario Vargas Llosa

 

[7] O trecho está sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

 

[8] Idem nota 7.

 

[9] Os trechos entre aspas estão na sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

 

[10] Idem nota 7.


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

HERMAN MELVILLE E AS PERSONIFICAÇÕES DA BUROCRACIA

 

Herman Melville foi bancário, vendedor, professor, agricultor, marinheiro, palestrante, fiscal da alfândega e escritor. Embarcou como camareiro de um navio que seguia para Liverpool. Atravessou oceanos num baleeiro.  Desertou e morou com nativos da Polinésia Francesa. Embarcou novamente. Dessa vez num navio comercial australiano. Participou de um motim a bordo, foi preso e fugiu da cadeia.  Também escreveu contos, poemas e romances.

 

Li apenas três livros de Herman Melville: Moby Dick ou a baleia [1]; Bartleby, o escrevente [2]; Billy Budd, marinheiro [3]. Pouco. Mas suficiente para perceber a grandeza do escritor estadunidense. Moby Dick (1851): o obstinado Capitão Ahab persegue uma baleia branca mar adentro. Bartleby (1853): um escrevente contratado por um escritório de advocacia, em Wall Street, passa misteriosamente a recusar todas as ordens respondendo “preferiria não”. Billy Budd, marinheiro (1891): um belo jovem é recrutado para trabalhar num navio de guerra, acusado injustamente de participação num motim, acaba cometendo um crime, mas sem deixar de acatar incondicionalmente todas as ordens recebidas. De Mobby Dick a Billy Budd, passando por Bartleby, se vai do mar ao mar, com um escritório no meio do caminho, mas sempre com o trabalho como pano de fundo.

 

Albert Camus [4] definiu Herman Melville como o Homero do Pacífico. Gilles Deleuze [5] discutiu a radicalidade da “fórmula” de Bartleby – eu preferiria não/I would prefer not to –, que confronta a linguagem com o silêncio. A propósito, Deleuze lembra também que Bartleby anuncia o longo silêncio de Melville, rompido apenas por alguns poemas e, no final da vida, pelo romance Billy Budd.

 

Bartleby é um escrevente. Sabemos já no título do conto. Billy Budd é um marinheiro. Sabemos já no título do romance. A presença do trabalho nos textos é explícita, mas costuma ser ignorada pela crítica [6]. Bartleby é a tese com “eu preferiria não”. Billy Bud é a antítese com “eu preferiria sim”, que ele não diz, mas pratica.  O escrevente recusa num escritório em Wall Street. O marinheiro aceita num navio de guerra. É como se, com Billy Budd, Melville invertesse a fórmula “eu preferiria não/I would prefer not to”. O advogado que é chefe de Bartleby sente compaixão pelo escrevente, o que não o impede de demitir e enxotar o funcionário. Ele faz uma série de propostas para o escrevente: exercer outro ofício (vendedor ou atendente), viajar pela Europa acompanhando jovens cavalheiros e até morar sob o mesmo teto, desde que deixe de atrapalhar no escritório. O capitão Vere, responsável pelo navio de guerra em que trabalhou Billy Budd, sabia que o marinheiro não estava envolvido em nenhum motim, o que não o impediu de exigir a pena capital ao tribunal de guerra que julgou o subordinado. “Firmemente inspirado pela lei e pelo dever”, o capitão Vere se dirige aos membros do tribunal que julgou o marinheiro: “Mas lhes suplico, meus amigos, para que não me interpretem mal. Meus sentimentos por esse infeliz rapaz é o mesmo que o de vocês. Se ele conhecesse nossos corações, tenho certeza de que sua natureza generosa o faria até mesmo sentir pena de nossa situação, subordinados que somos a injunções militares tão pesadas.”

 

Marx [7] notou que o capitalista apenas personifica o capital: “sua alma é a alma do capital”. Melville não definiu o que são personificações da burocracia, nem sequer usou a expressão, mas deixou dois exemplos: o advogado chefe de Bartleby e o capitão Vere. Se é possível encontrar personificações da burocracia nos textos de Melville, é porque há grande concentração delas no mundo do trabalho, que é retratado com maestria pelo escritor estadunidense. Se a alma do capitalista é alma do capital, a alma do burocrata é a alma da burocracia. Não importa quão esclarecido, humano, piedoso e compassivo seja o burocrata, sua alma será sempre a alma da burocracia. Personificações da burocracia são absolutamente incapazes de dizer “eu preferiria não” para ordens que venham de cima, sejam quais forem. Uma personificação da burocracia não hesita em demitir um subordinado ou açoitá-lo em praça pública, no máximo criará justificativas para injustificável. O advogado patrão de Bartleby sente compaixão pelo escrevente, mas não deixa de atuar no interesse do escritório. O capitão Vere era um homem esclarecido, mas não deixa de exigir a pena capital para o marinheiro, em nome da “lei e do dever”. Labirintos do trabalho: a tese de Bartleby e a antítese de Billy Budd conduzem ao mesmo fim. Para piorar, não nos enganemos: como há personificações da burocracia no mundo real.

 

Os nomes nos títulos dos livros somados à radicalidade das apologias e dos rechaços empurram o foco para Bartleby e Billy Budd. Alguns chegam a procurar, candidamente, os personagens no mundo real. Žižek [8] viu Bartleby como um precursor do movimento Occupy Wall Street... Mas, se não há Bartlebys nem Billy Budds no mundo real, as personificações da burocracia, como os chefes de ambos, estão em todos os cantos: das multinacionais ao serviço público, das universidades ao trabalho precarizado, das igrejas aos partidos de esquerda. As almas das personificações da burocracia são as almas da burocracia.  As justificativas são diversas – ordens superiores, a lei, o dever, não posso fazer nada, está fora da minha alçada, sinto muito –, mas as práticas pouco variam: atuam em nome da burocracia e para resguardar interesses rasteiros. O capelão que acompanhou Billy Budd antes da execução também estava ciente de que o marinheiro não participou de nenhum motim, mas se calou: intervir “teria sido uma audaciosa violação dos limites de sua função” – justificou. Espécie de princípio fundamental das personificações da burocracia: jamais contrariar ordem superiores! O capitão Vere afirma, contra o marinheiro, que “a Lei do Motim, filha da guerra, imita a mãe. A intenção ou a ausência de intenção de Budd não vem ao caso.” O advogado chefe de Bartleby e narrador do conto homônimo conclui dizendo: “Ah, Bartleby! Ah, humanidade!” O capitão Vere morreu murmurando palavras incompreensíveis para o enfermeiro que o atendia: “Billy Budd, Billy Budd.” São indícios de remorsos do advogado e do capitão, que não os absolvem, apenas reforçam que ambos atuaram como personificações da burocracia. Provocação de Melville, as últimas palavras de Billy Budd são: “Deus abençoe o capitão Vere!” O que atesta e reafirma a fórmula do marinheiro: “eu preferiria sim” – incondicionalmente. 

 

Jorge Luis Borges [9] afirmou que “Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz posterior.” Acrescento que o inverso é verdadeiro – Bartleby projeta uma curiosa luz antecipatória sobre Kafka – e o mesmo se aplica a Billy Budd. A explicação é a presença do trabalho nos textos. Só que Melville é direto e explícito, enquanto Kafka é indireto e implícito. Ambos se completam. O escritor tcheco faz uso literário e genial do idioma da burocracia: sobressai o absurdo e as personificações da burocracia se esquivam atrás de normas e portarias, como se fossem engrenagens incapazes de intervir sobre os acontecimentos. Melville faz uso apenas circunstancial da linguagem burocrática, resultado: expõe a cumplicidade sem véus das personificações da burocracia. A burocracia pode ser absurda, mas ela tem seus cúmplices. O caso Billy Budd, por exemplo, teria ocorrido em momento “complicado”, após motins duramente reprimidos e contestação da autoridade naval, o que exigiria prudência e rigor de homens como o capitão Vere – segundo o próprio... É a tal cumplicidade sem véus das personificações da burocracia: a justificativa para o injustificável. O fato é que o capitão Vere atua na defesa da posição que ocupa e, como não poderia deixar de ser, da burocracia. Um marinheiro terminar enforcado é só um detalhe, ainda que inconveniente, uma parte do jogo a que o capitão é incapaz de se opor por covardia e, sobretudo, por interesse próprio.

 

Camus [10] registrou que Melville “não escreveu senão o mesmo livro indefinidamente recomeçado.” Acrescento: Melville pode ter escrito o mesmo livro indefinidamente recomeçado, mas com variações. Se é assim, a recusa de Bartleby e a apologia de Billy Budd se completam e servem, sobretudo, para desmascarar as personificações da burocracia, que diferem na forma, mas não no conteúdo. Ainda e por fim, registrei dois exemplos de personificações da burocracia nos textos de Melville, fecho com um contraexemplo, para contrastar e problematizar. O obstinado capitão Ahab perseguiu impiedosamente a baleia branca. Mas sua alma não era alma da burocracia. Ele caçou uma baleia e não um cargo na burocracia. O capitão Ahab seguia, sobretudo, a lei do coração, por mais violenta e irracional que fosse. Alguém pode argumentar que ele foi terrível, quase uma personificação do mal. Ao que eu perguntaria, mas o “cruel” capitão Ahab faria com um de seus homens o que o esclarecido capitão Vere fez com Billy Budd? Moral da história: as personificações da burocracia podem ser tão perigosas quanto os homens mais terríveis e, para piorar e encerrar: é difícil encontrar Ahabs no mundo real, mas as personificações da burocracia estão em todos os cantos.

 

Notas

[1] Herman Melville. Moby Dick ou a baleia. Editora 34: São Paulo, 2019.

 

[2] Herman Melville. Bartleby, o escrevente. Grua livros: São Paulo, 2014.

 

[3] Herman Melville. Billy Budd, marinheiro. Porto Alegre: L&PM, 2010.

 

[4] Albert Camus. Herman Melville. In: Camus, A. A inteligência e o cadafalso. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 25 – 30.

 

[5] Gilles Deleuze. Bartleby, ou a fórmula. In: Deleuze, G. Crítica e clínica. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 91 – 117.

 

[6] Bartleby: insegurança, adoecimento e morte de um trabalhador.

 

[7] Karl Marx. O capital – Livro I. São Paulo: Boitempo, 2014.

 

[8] Slavoj Žižek. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2011

 

[9] Jorge Luis Borges. Bartleby, o escrivão de Herman Melville. Acesso em 09 de jul. 2023 

 

[10] O trecho seguinte, entre aspas, está no texto referenciado na nota 4.


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

COMPANHEIROS, POR FAVOR!

 

O grande revolucionário estava no leito de morte. Era questão de tempo. Estava lúcido. Sabia que o fim se aproximava e que dificilmente sairia vivo do hospital. Mas, mesmo assim, estava tranquilo. Os militantes do partido se dividiram para acompanhá-lo e apoiá-lo. Revezavam com a família. Naquela tarde o grande revolucionário recebeu a visita de dois companheiros de longa data, que não tinham o mesmo prestígio no partido, mas haviam travado diversas lutas, vivido muitas experiências e se tornado amigos. Divertiram-se contando causos da vida e da militância: prisões, frustrações, derrotas, traições (políticas e amorosas), manobras partidárias, paixões antigas, amores fracassados e por aí vai. A conversa estava tão boa que o tempo passou rápido.

 

No começo da noite chegou um companheiro jovem. Tinha aproximadamente 50 anos a menos que o grande revolucionário. O companheiro jovem substituiria os outros dois. Só que, como a conversa estava boa, eles não foram embora imediatamente. Para encurtar o percurso e não aborrecer o leitor, basta dizer que o papo dos velhos incomodou o jovem. Era como se ele quisesse aproveitar os últimos minutos com o grande revolucionário. Queria ensinamentos e sugestões. Queria dicas de leitura. Queria, sobretudo, demonstrar o carinho e o respeito que sentia pelo grande revolucionário. Cada segundo perdido com futilidades e brincadeiras, sem falar da revolução, parecia um enorme desperdício para o jovem. Aqueles causos de gosto duvidoso sobre outros militantes e sobre o próprio partido irritavam o companheiro mais novo. Ele tentava mudar de assunto. Não tinha coragem de cortar a fala do grande revolucionário, apesar da vontade. Mas interrompia os outros. Quando um deles estava falando, o jovem dizia para todos: “companheiros, por favor!” Ele não completava a frase, mas era como se dissesse “companheiros, por favor, vamos mudar de assunto!” Foi inútil. Os outros seguiam papeando e contando histórias. Riam como se estivessem numa mesa de bar e não num leito de hospital. Apenas o mais novo não se divertia.

 

Quanto mais o jovem militante tentava mudar de assunto dizendo “companheiros, por favor!”, mais os outros riam e se divertiam. O jovem se viu forçado a elevar o tom de voz e a completar a frase: “companheiros, por favor, vocês podem me dizer exatamente qual é a minha tarefa, o que devo fazer? Daqui a pouco vocês vão embora e eu não sei o que fazer.” Todos se calaram. O silêncio foi rompido por um companheiro mais velho, que olhou fixamente para o companheiro mais jovem e perguntou: “não te disseram exatamente qual é a sua tarefa?” O jovem balançou a cabeça para os lados, negativamente. Depois corrigiu-se dizendo que a tarefa não estava muito clara, que precisavam discutir a questão, que não podiam perder tempo. Foi quando o interlocutor opôs o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto – e chacoalhou a mão. O companheiro mais jovem pareceu não entender. O companheiro mais velho olhou fixamente e disse: “isso mesmo que você tá pensando, sua tarefa é bater uma pra ele, ele não dorme sem uma boa punheta, daqui a pouco vamos embora e você pode começar.” O grande revolucionário conteve o riso. Os companheiros mais velhos idem. O jovem ficou espantado. Realmente a tarefa não estava clara, ou ele não tinha entendido bem. Realmente precisavam discutir a questão.

 

Mas a conversa esquentou novamente. Os velhos contaram outros causos e piadas. O jovem ficou calado. Vez ou outra o companheiro mais velho olhava para o companheiro mais jovem, juntava o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto –, chacoalhava e dizia: “sua tarefa, hein, não esquece!”  O grande revolucionário se esforçava para conter o riso. O jovem refletia.

 

No meio da noite os velhos companheiros se despediram do jovem militante e do grande revolucionário. Ao sair um deles opôs o polegar aos outros dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto – e repetiu chacoalhando a mão: “sua tarefa, não esquece!” Depois foram embora.

 

O jovem militante pediu licença ao grande revolucionário, foi até o corredor, se aproximou dos dois companheiros, opôs o polegar aos demais dedos formando um círculo – como se segurasse algum objeto –, chacoalhou e perguntou: “por que eu?” “É que você é novo e de confiança. Tem energia, é discreto e não tem preconceitos” – disse um. O outro assentiu e, para não cair na gargalhada, disse apenas “Exatamente!” Despediram-se outra vez. O jovem militante voltou para o leito do grande revolucionário. Os outros entraram no elevador e foram embora rindo.

 

O jovem militante sentiu raiva e orgulho ao mesmo tempo. Por que ele? Por outro lado, havia sido escolhido para uma tarefa delicada, o que era uma forma de reconhecimento. Mas ter o sexo do grande revolucionário entre os dedos não era o que ele planejava. Mais que isso, ocorreu-lhe que não sabia se devia executar a tarefa com o grande revolucionário na cama ou se precisaria conduzi-lo ao banheiro. Considerou a possibilidade de consultar a equipe médica. Mas lembrou se tratar de tarefa delicada, provavelmente secreta, designada para um militante “de confiança”, jovem, discreto, com energia e sem preconceitos. Aliás, quem teria executado a tarefa anteriormente? – pensou. Quem havia aliviado o grande revolucionário? Devia ter perguntado aos companheiros. Mas, enfim, pouco importava, o partido sabia o que fazia – tranquilizou-se.

 

Apesar do incômodo, a possibilidade de compartilhar um segredo e uma intimidade com o grande revolucionário parecia-lhe instigante, uma verdadeira honra, reconhecimento pela atuação no movimento estudantil. Ele não se dizia à disposição da revolução, do partido e do movimento? Ele não se autoproclamava livre da moral burguesa? Não daria a própria a vida pela causa? Um punheta era o mínimo que podia fazer. Além disso, ele realmente amava e admirava o outro. Estava disposto a dar a vida pelo grande revolucionário, pelo partido e pela revolução...

 

Não vou contar o desfecho da noite. O leitor que imagine o que aconteceu no leito do hospital entre o jovem militante e o grande revolucionário. Mas alguém pode perguntar: se ia omitir o final, por que começou a história? É que o desfecho não é o mais importante. O desencontro é o que importa. Seja qual for o final imaginado por cada um, o que ocorreu foi apenas um desencontro – geracional, estético, existencial, político – entre uma esquerda que está morrendo e outra que não sabe rir. Um desencontro – geracional, estético, existencial, político – entre uma esquerda que está desaparecendo e outra que leva absolutamente tudo a sério, não raro se transformando em piada exatamente por isso. 


Publicado originalmente no Passa Palavra

 

MILAN KUNDERA

 

Quarta-feira, 12 de julho de 2023. Acordei mais ou menos às 06:00. Li normalmente. Como costumo fazer. Mais ou menos às 08:30 tomei café da manhã. Depois liguei o telefone celular e o computador. A primeira mensagem que li dizia “rip Kundera”. Confirmei na internet. O gênio tcheco estava morto. A notícia que chegaria mais dia ou menos dia – um homem nonagenário não tem muito tempo pela frente – havia chegado. Curiosamente, recebi mensagens de amigos. Era como se estivessem se solidarizando comigo pela perda de um familiar. É compreensível. Sou um leitor de Milan Kundera que, não raro, avança para o papel de defensor e divulgador voluntário. Não sei se com sucesso. Tenho dúvidas. Afasto ou aproximo as pessoas dos livros do escritor tcheco? Mas, enfim, pouco importa. Naquela quarta-feira escrevi apenas: “O mundo encolheu! Adeus, Milan Kundera!” Agora, com tempo, dá para completar a mensagem.

 

Desde que comecei a frequentar sebos, lembro da presença dos livros de Milan Kundera. Eram muitos e relativamente baratos. Mas nosso encontro demoraria uns dez anos para acontecer. Faltava um “empurrãozinho”. Minha intuição de leitor – que falhou feio – me dizia que Kundera era um escritor de best sellers que as pessoas compram, não leem e descartam. Nunca havia ouvido falar de dele nem tinha lido nada sobre ele. Tudo começou a mudar num final de semana em que assisti o filme A insustentável leveza do ser (Philip Kaufman). Fiquei intrigado. Tempos depois um amigo me entregou o romance A insustentável leveza do ser e disse “você precisa ler esse livro”. Era o “empurrãozinho” que faltava. Na verdade, foi um empurrão duplo: o filme e a indicação do meu amigo. Começava ali meu encontro com Milan Kundera. Li tudo que achei dele, sobre ele e mais. O que me fascina em Kundera é a erudição e a sagacidade que confluem para uma espécie de lucidez zombeteira, qualidades que passei a procurar em outros romancistas tchecos e no que no Brasil ficou conhecido como Novelle Vague Tcheca. Li Jaroslav Hašek (O bom soldado Švejk); Ivan Klíma (Amor e lixo); Bohumil Hrabal (Eu servi o rei da Inglaterra); Josef Skvorecky (A história do saxofonista e Engenheiro de almas). Assisti filmes maravilhosos: As pequenas margaridas (Věra Chytilová); Um dia, um gato (Vojtěch Jasný); O baile dos bombeiros (Miloš Forman); A pequena loja da rua principal (Ján Kadár e Elmar Klos), Valerie e sua semana de deslumbramentos (Jaromil Jireš); Amores de uma loira (Miloš Forman); Trens estreitamente vigiados (Jiří Menzel); A piada (Jaromil Jireš); Ninguém vai rir (Hynek Bocan) [1]. Tanto nos romances como nos filmes encontrei a tal lucidez zombeteira, ainda que nem sempre com tanta erudição e sagacidade, como em Kundera.

 

Como explicar a lucidez zombeteira dos tchecos e, sobretudo, de Milan Kundera? Talvez porque a língua tcheca tenha sido um idioma utilizado em ambientes menos formais, que não se levavam totalmente a sério. Talvez porque o país dos tchecos fica no meio do caminho – no centro da Europa – e costuma ser invadido quando estouram grandes guerras. Se é assim, a brincadeira, a ironia e o humor viram armas dos desarmados e se tornam ainda mais libertários e cortantes, atuam para revelar farsas e desmoralizar invasores. Exemplificando. Durante a Primavera de Praga um soldado invasor vindo de uma república soviética asiática, que nunca tinha visto portas de vidro, chocou-se com uma delas no metrô de Praga. Os tchecos responderam com um cartaz: “Nada detém o soldado soviético.” [2]

 

Quase duas décadas depois da Primavera de Praga e já exilado na França, Kundera escreveu que não estava ligado a praticamente nada. O futuro não representava um valor, nem Deus, nem a pátria, nem o povo. Ele sentia-se ligado apenas à herança depreciada de Cervantes. É uma outra chave para se pensar a lucidez zombeteira, se não dos tchecos, pelo menos de Milan Kundera. “O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor.” [3] No início o romance era sobretudo divertimento, ainda que sem jamais excluir a gravidade. Lucidez zombeteira de Milan Kundera: examinar a existência com humor e sem esperança.

 

A investigação da existência e dos acontecimentos sociais com humor e sem esperança não raro fez Kundera irritar a direita e a esquerda. É que o romance é uma “sabedoria da incerteza” que costuma se chocar com verdades ideológicas. Aceitar a ambuiguidade do mundo e das coisas não é tranquilo para quem tem a mente travada na ideologia. Eu me divertia repetindo provocações kunderianas para militantes formados com cartilhas partidárias. Provavelmente mais afastei do que aproximei pessoas dos livros do romancista. Mas acho que ele não reclamaria, gostava de escrever contra todos e mais de uma vez ridicularizou militantes que buscam o idílio coletivo. Exemplos. O poeta em A vida está em outro lugar. Franz em A insustentável leveza do ser. Carlos Fuentes: “A ilusão do futuro foi o idílio da história moderna. Kundera ousa dizer que o futuro já aconteceu, bem debaixo do nosso nariz, e cheira mal.” [4] Acrescento: é por essas e outras que o escritor tcheco irritou a direita e a esquerda.

 

Milan Kundera publicou o primeiro romance em 1967. A brincadeira tem o espírito libertário da Primavera de Praga. Tornou-se símbolo do movimento. Kundera tinha 38 anos. Idade relativamente avançada para se publicar o primeiro romance. É que antes havia transitado pelo cinema e pela música. Podia ter seguido qualquer um dos dois caminhos, na verdade nunca abandou nenhum deles. Em 1995, quando a sétima arte completou um século, Kundera publicou um texto cujo título fala por si: Esta festa não é minha. A reflexão sobre os destinos de Fellini e do próprio cinema é daquelas que apenas os grandes romancistas são capazes de formular, porque enxergam o mundo com olhos de criadores. Já a música sempre esteve no radar de Milan Kundera. Além das brilhantes reflexões musicais presentes nos ensaios, ele escrevia romances como se fossem música: com temas, variações, pausas, movimentos. Se Kundera optou pela literatura foi porque viu nela as melhores possibilidades para explorar as ambiguidades da existência. O romance seria capaz de integrar a filosofia e a poesia sem perder a identidade, que passa justamente pela capacidade de absorver outros gêneros e saberes: “a forma do romance é liberdade quase ilimitada.” [5] Além disso, em tempos de especialização e acelerada divisão do trabalho, a literatura ainda permite “guardar relação com a vida em seu conjunto.” [6] O romance é – para Kundera – capaz de dizer sobre a condição humana muito mais que qualquer reflexão sociológica. Em 1969, publicou Risíveis amores, hilária coletânea de contos. Em 1973, publicou o romance A vida está em outro lugar, ironizando e denunciando o lirismo adesista dos que sonhavam com o idílio [7]. Em 1975, foi para a França devido às perseguições do regime estalinista, havia sido do partido comunista, mas acabou expulso duas vezes. Em 1976, publicou A valsa dos adeuses, romance em que brinca com a insignificância e a finitude da vida, questões que retomaria em outros textos. Em 1978, publicou O livro do riso e do esquecimento, composto por variações geniais sobre temas como a memória, o riso, os anjos, a litost [8], a fronteira. Em 1981, publicou Jacques e seu amo, peça de teatro que é uma variação sobre Jacques o fatalista, de Denis Diderot. Em 1984, publicou A insustentável leveza do ser, romance que tornou Kundera mundialmente conhecido. Em 1990, publicou o romance A imortalidade, retomando temas como a memória, a finitude e a insignificância da existência. Publicou ainda os romances A lentidão (1995), A identidade (1997), A ignorância (2000), A festa da insignificância (2014).

 

Mas mesmo um escritor genial, como Milan Kundera, não pode prescindir de bons leitores. Numa leitura rápida e superficial do romance A insustentável leveza do ser aparecem apenas as relações amorosas. É provavelmente o que explica por que o livro se tornou um best seller. Para piorar, o leitor mediano não apenas estanca na primeira camada da leitura, como não lê nada além do livro mais famoso do escritor. Perde, dessa forma, contos, romances e ensaios de primeira qualidade. Nas releituras do romance A insustentável leveza do ser surgem infinitas possibilidades, como se o texto estivesse vivo e em movimento. É uma característica dos clássicos. Kundera escreveu A insustentável leveza do ser a partir de palavras-tema: peso, leveza, alma, corpo, merda, kitsch, compaixão, vertigem, força, fraqueza. Sempre com a Primavera de Praga como pano de fundo. Mas tudo isso só se percebe nas releituras.

 

É também nas releituras do romance A insustentável leveza do ser que aparece a sacada brilhante sobre a dimensão existencial do kitsch. O romancista divide os homens em dois grupos: os que em alguma medida duvidam e os que aderem à existência sem reservas. Estes se baseiam, conscientemente ou não, na crença presente no primeiro capítulo do Gênese: o mundo é o que devia ser, as pessoas são boas e devem procriar. É o que Kundera chama de “acordo categórico com o ser”. Quem adere sem reservas à existência exclui tudo que contradiz sua crença. É por isso que se substituía a palavra merda por m. A merda é um problema metafísico. Se a merda fosse aceitável, ninguém precisaria se trancar no banheiro. Se a merda é problemática, das duas uma: ou o homem não foi criado a imagem e semelhança de Deus, ou Deus tem intestinos e caga. Nascida na Alemanha, na segunda metade do século XIX, a palavra kitsch tem a ver com uma atitude estético-existencial de negação da merda. Quem firma o “acordo categórico com o ser” sente nostalgia pelo idílio, não importa se o localiza no passado que é preciso restaurar (como costumava fazer a direita) ou no futuro que é preciso construir (como costumava fazer a esquerda). O kitsch é: 1) O ideal estético de quem busca o idílio. 2) Um lirismo adesista e rebaixado. 3) A “mentira embelezadora” mobilizada para sustentar o “acordo categórico com o ser”. Se kitsch e comunismo se encontraram na Tchecoslováquia estalinista foi porque era preciso excluir do campo de visão absolutamente tudo que pudesse comprometer a adesão ao regime e a ilusão no idílio coletivo. A lucidez zombeteira que aprendi a apreciar com Kundera e com os tchecos é, sobretudo, um combate contra o kitsch.  

 

Durante algum tempo tive vontade de escrever uma carta para Milan Kundera. Queria perguntar-lhe sobre Machado de Assis. Onde o gênio tcheco colocaria o bruxo do Cosme Velho na metáfora dos três tempos da literatura? Machado está cronologicamente no segundo tempo, com os realistas, mas é uma espécie de ponte que liga o primeiro tempo (Rabelais, Cervantes, Sterne) ao terceiro tempo (Broch, Musil, Gombrowicz). Mas acabei satisfeito ao encontrar um texto de Carlos Fuentes significativamente intitulado O milagre de Machado de Assis, onde o escritor mexicano, que foi amigo de Milan Kundera, cita o tcheco e diz mais ou menos o que imagino que este responderia sobre a minha pergunta: “E o convite ao jogo, ao sonho, ao pensamento, ao tempo, exclama Kundera em capítulo intitulado ‘A Desprezada Herança de Cervantes’, onde foi parar? A resposta é, se não miraculosa, surpreendente: foram parar no Rio de Janeiro e renasceram na pena de um mulato carioca pobre, autodidata, que aprendeu francês em uma padaria, que sofria de epilepsia, como Dostoiévski, que era míope, como Tolstói, e que ocultava seu gênio sob um corpo tão frágil como o de outro grande brasileiro, Aleijadinho”.

 

Aliás, é também Carlos Fuentes quem deixou uma pista importante para se compreender a Primavera de Praga e, por tabela, a obra de Milan Kundera. O escritor mexicano lembra que a Tchecoslováquia era um país razoavelmente desenvolvido, o socialismo não precisava garantir o mínimo para a população, era necessário dar o passo seguinte. Era possível e urgente “passar do reino da necessidade para o reino da liberdade.” [9] A população começou a ocupar espaços da burocracia estalinista, o que era intolerável e imperdoável. A Primavera de Praga foi a tentativa abortada – pelos russos – de dar um passo em frente. A genialidade da obra de Milan Kundera sugere o conjunto de possibilidades contidas na Primavera de Praga.

 

Além da busca por outros romancistas tchecos e pelos filmes da chamada Nouvelle Vague Tcheca, Milan Kundera potencializou a minha paixão pela escrita ensaística. Os quatro livros de ensaios que deixou (A arte do romance, Os testamentos traídos, A cortina e Um encontro) são tão geniais quanto romances como A insustentável leveza do ser, O livro do riso e do esquecimento, A imortalidade, A brincadeira e A vida está em outro lugar. Leio os ensaios que encontro de grandes romancistas e pensadores em geral. Posso afirmar tranquilamente que muito poucos chegam no nível Kundera. Talvez pela erudição do escritor tcheco, talvez pela sagacidade, talvez pela lucidez, talvez pelo humor e por tudo isso ao mesmo tempo. Compartilho algumas reflexões curtas presentes nos ensaios de Milan Kundera para dar ideia do que estou dizendo.

 

Sobre Dostoiévski e Kafka [10]:

 

“Raskolnilkov não pode suportar o peso de sua culpabilidade e, para encontrar a paz, ele consente voluntariamente na punição. É a situação bem conhecida em que a falta procura o castigo. Em Kafka, a lógica é invertida. Aquele que é punido não conhece a causa da punição. O absurdo do castigo é tão insuportável que, para encontrar a paz, o acusado quer encontrar uma justificativa para a sua pena: o castigo procura a falta.”

 

Sobre o humor [11]:

 

“O humor: centelha divina que descobre o mundo em sua ambiguidade moral e o homem em sua profunda incompetência para julgar os outros: o humor: embriaguez de relatividade das coisas humanas; estranho prazer nascido da certeza de que não há certeza. Mas o humor, para lembrar Octavio Paz, é ‘a grande invenção do espírito moderno.’ Não existiu sempre e tampouco vai existir para sempre. Com o coração apertado, penso no dia em que Panurge não mais fará rir.”

 

Sobre a vida, o Quixote e o romance [12]:

 

“Os heróis da epopeia vencem ou, se são vencidos, conservam a grandeza até o último suspiro. Dom Quixote é vencido. E sem nenhuma grandeza, pois imediatamente tudo fica claro: a vida humana como tal é uma derrota. A única coisa que nos resta diante dessa inelutável derrota que chamamos de vida é tentar compreendê-la. Eis aí a razão de ser da arte do romance.”

 

Sobre a Primavera de Praga [13]:

 

“Ah, os queridos anos 1960. Eu gostava de dizer, então, cinicamente: o regime político ideal é uma ditadura em decomposição; o aparelho opressivo funciona de maneira cada vez mais defeituosa, mas está sempre ali para estimular o espírito crítico e zombeteiro. No verão de 1967, irritados com o congresso corajoso da União dos Escritores e achando que o atrevimento tinha ido longe demais, os chefes do Estado tentaram endurecer sua política. Mas o espírito crítico havia contaminado até o comitê central que, em janeiro de 1968, decidiu que o presidente seria um desconhecido: Alexandre Dubcek. A Primavera de Praga começou: hilário, o país recusou o estilo de vida imposto pela Rússia; as fronteiras do Estado foram abertas e todas as organizações sociais (sindicatos, federações, associações), originalmente destinadas a transmitir ao povo a vontade do partido, tornaram-se independentes e se transformaram em instrumentos inesperados de uma democracia inesperada. Nasceu um sistema (sem nenhum projeto preestabelecido, quase por acaso) que foi verdadeiramente sem precedentes: uma economia 100% nacionalizada, uma agricultura nas mãos das cooperativas, nada de pessoas muito ricas, nada de pessoas muito pobres, o ensino e a medicina gratuitos, mas também: o fim do poder da polícia secreta, o fim das perseguições políticas, a liberdade de escrever sem censura e, a partir daí, o desabrochar da literatura, da arte, do pensamento, das revistas. Eu ignoro quais eram as perspectivas de futuro desse sistema; na situação geopolítica de então, certamente nulas; mas numa outra situação geopolítica? Quem pode saber... Em todo caso, esse segundo durante o qual esse sistema existiu, esse segundo foi soberbo.”

 

Quando soube do desaparecimento do romancista tcheco escrevi “O mundo encolheu! Adeus, Milan Kundera!” Completo agora. O mundo encolheu porque sempre que se falar daquele “segundo soberbo” da humanidade, conhecido como Primavera de Praga, falarão de Milan Kundera e por meio dos ensaios, contos e romances dele. O mundo encolheu porque perdeu um escritor capaz de transitar, com a mesma genialidade, entre o romance e o ensaio. O mundo encolheu porque em algum canto de Paris morreu um nonagenário que emplacou pelo menos 5 romances e 4 livros de ensaio entre o que se produziu de melhor.

 

Notas

[1] A piada e Ninguém vai rir são baseados em textos de Milan Kundera, que participou das filmagens.

[2] O caso do soldado soviético que trombou com uma porta de vidro do metrô de Praga foi relatado no ensaio Milan Kundera: o idílio secreto, de Carlos Fuentes, no livro Geografia do romance.

[3] Trecho do discurso O romance e a Europa, publicado no livro A arte do romance.

[4] O trecho citado de Carlos Fuentes está no ensaio Milan Kundera: o idílio secreto, publicado no livro Geografia do romance.

[5] Entrevista concedida por Milan Kundera para Christian Salmon, publicada no livro A arte do romance.

[6] O trecho entre aspas está no ensaio Anotações inspiradas por Os sonâmbulos, publicado no livro A arte do romance.

[7] A lucidez zombeteira de Milan Kundera travou combate contra o lirismo adesista dos que firmam acordos categóricos com o status quo, com a burocracia, com o próprio ego, com o ser.

[8] Os dicionários traduzem a palavra tcheca litost como arrependimento. Mas não é exatamente a mesma coisa. Kundera registrou que a primeira sílaba se pronuncia de maneira longa e acentuada, como o lamento de um cão abandonado. Litost é um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa miséria subitamente revelada para nós mesmos. Litost é quando fazemos coisas que nunca nos imaginamos capazes de fazer, como agredir uma pessoa por nos sentirmos diminuídos pelas qualidades e pelo talento dela.

[9] O trecho citado de Carlos Fuentes está no ensaio Milan Kundera: o idílio secreto, publicado no livro Geografia do romance.

[10] O trecho está no ensaio Em algum lugar do passado, publicado no livro A arte do romance.

[11] O trecho está no ensaio O dia que Panurge não mais fará rir, publicado no livro Os testamentos traídos. Em Pantagruel, Panurge se apaixona e tenta possuir uma mulher. Dirigi-lhe obscenidades dentro de uma igreja... Ignorado, se vinga esfregando o sexo de uma cadela no cio na roupa da amada. Seiscentos mil e quatorze cães perseguem e mijam na mulher. Kundera conta que os operários tchecoslovacos riam com Panurge, apesar da moral conservadora que vigorava. Riam das obscenidades e do fracasso amoroso dele. Riam com a vingança mijatória. Não havia condenação, apenas riso e divertimento. A sorte de Rabelais – e dos seus leitores – é que as patrulhas ideológicas do bom-mocismo não leem romances, do contrário já estariam todos condenados e cancelados. No reino sacrossanto do bom-mocismo politicamente correto não há espaço para a arte do romance.

[12]O trecho está no ensaio Pobre Alonso Quijada, publicado no livro A cortina.

[13] O trecho está no ensaio Sobre as duas grandes primaveras e os Škvorecký, publicado no livro Um encontro. 

Publicado originalmente no Passa Palavra