O GRITO
O rapaz recém
separado largou tudo para morar num conjunto habitacional na periferia da
cidade – mas isso é o menos importante, até porque ele estava contente e feliz.
A periferia e o trem cheio não eram bichos de sete cabeças, dava pra tirar de
letra. A temida violência também não era coisa de outro Mundo, conforme ele
pensava, ladrão não costuma roubar peão.
E tudo seguia bem,
exceto um detalhezinho, exceto um fato que a teoria e a estatística
antecipavam, mas que não se observava no antigo bairro do rapaz. Sim. Havia um
time verdadeiramente do povo, e não era o dele. Isso o constrangia um
pouco. Ele queria se integrar totalmente na comunidade que o recebia bem e
que ele respeitava, mas havia esse problema. Havia o time do povo, que não era
o dele.
Presenciou
vitórias do time do povo, e alegrava-se sempre, pela simples razão de que todos
ficavam felizes. Os gritos e as explosões de alegria contagiavam o rapaz, que
até chegou a ter vontade de comemorar também.
Mas ele
lembrava-se de seu nome – derivado de jogadores de seu time do coração – e se
reprimia. Lembrava-se das façanhas de seu time – poucas vistas e muitas
contadas por seu pai – e se reprimia. Lembrava-se da primeira vez que viu seu
time campeão – justamente em cima do time do povo – e se reprimia. Enfim, não
comemorava os gols do time do povo, mas se alegrava vendo a vibração nas
janelas, nas ruas, calçadas...
Só que havia um
probleminha. No fundo do coração do rapaz havia uma dor, todas as vitórias do
time do povo, toda aquela alegria não podia compensar a falta de vitórias do
seu próprio time, que já acumulava três tropeços. Chegou a pensar que
seu time poderia ser o do povo, seria maravilhoso. Mas não era verdade,
era preciso encarar a realidade. Seu pai não poderia ter contado aquelas
histórias para todos os filhos do povo.
Ok. Que fosse
assim. Mas, no fundo no fundo, sentia muita necessidade de mostrar que
seu time também era amado, ainda que não fosse o do povo, e apesar dos tropeços.
Eis que um dia os
times do rapaz e o do povo jogaram no mesmo horário, por campeonatos diferentes,
mas no mesmo horário. Ele ouvia o jogo no rádio, e torcia dentro do trem,
balançava os braços e gesticulava. Pensava que o trem era um ótimo lugar para
demonstrar amor por um time. Mas terminou a primeira etapa, terminou a viagem e
o gol que garantiria a classificação não veio.
Acelerou os
passos e chegou em casa para assistir a segunda etapa da partida. Mas... Logo
de início a decepção. Todos os canais de TV transmitiam o jogo do time do povo.
Sentiu um aperto no peito, sentiu-se minoria. Pensava nos craques que jogaram
por seu time, pensava no seu pai torcendo do outro lado da cidade. Aí pensou em
ouvir a partida pelo rádio novamente, mas não teve forças, o adversário parecia
estar sempre a meio caminho do primeiro gol, que seria fatal.
Decidiu acompanhar
tudo pela internet, porque um gol sofrido pela rede de computadores dói menos
que um sofrido pelo rádio, apesar de se saber que a rede balançou da mesma
forma. É como uma injeção letal, um 1 x 0 pela net seria uma morte sem dor.
Então abriu no computador uma tela com os resultados da rodada e as informações
atualizadas: tempo, comentários, placar...
Alguns minutos
depois houve uma explosão de alegria no conjunto habitacional: xingos, fogos,
gritos... Era gol do time do povo. E o computador depois atualizou e confirmou
a intuição. O tempo passava rapidamente. O time do rapaz não levava gols, mas
não os fazia também, e a classificação ia ficando com o adversário. E então
mais xingos, mais fogos, mais gritos... Outro gol do time do povo, intuía angustiado. E pouco depois o computador confirmou as
suspeitas.
Havia alegria no
bairro. Mas ele estava preocupado. Um golzinho! Só um golzinho! Ele queria mostrar seu amor também, queria mostrar que seu time também existia. Mas
o relógio passava dos 40 e nada. Ele não conseguia mais se manter parado em
frente à tela. Levantava-se. Ia da sala pra cozinha e voltava. Os pensamentos
se sucediam. Que histórias do seu time ele contaria? De quais craques falaria?
De que vitórias? Haveria um dia somente o time do povo?
E então ouviu outros gritos. Eram meio estrangulados, meio distantes, meio roucos. Pensou que
aqueles não eram gritos de gol do time do povo. Correu. Ligou o rádio e ouviu:
- ooooooooooooooool!
- Que golaaaaçoooo! Um petardo aos 42 do
segundo tempo!
Foi do rádio pra janela, descontrolado. O verbo se fez carne, a carne se fez verbo, se
fez berro, se fez festa, se fez grito:
- É
goooooooooooool! Goooooooooooool! Gooooooooooooooooooool!
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