LIBERTEM MARIO QUINTANA
Eles
passaram...
Você
passarinho.
Eles
choraram...
Você
chorinho!
Os poetas têm
seus temas. Ou, como escreveu Carlos Secchin, os poetas cultivam “jardins de
obsessões”. Para Ferreira Gullar, a agonia das frutas e dos legumes que ficaram
por vender, o lento apodrecer das frutas e dos legumes. Para Manoel de Barros,
o “delírio do verbo”, as “insignificâncias” e as visões das crianças, como as
cores das palavras e os bichos que habitam as pedras do calçamento. Para Mario
Quintana, “as coisas simples”: as estrelas, o vento, a morte, o azul, a lua, o
céu de Porto Alegre. Manoel de Barros escuta as crianças e, com elas, olha para
baixo e procura a poesia dos bichos que habitam as pedras do calçamento. Mario
Quintana olha ao redor, poetiza o efêmero e o transitório, daí o humor; mas
também olha para o alto, sente o vento e registra a poesia do céu porto-alegrense,
talvez por isso azul seja a cor que mais aparece nos versos do poeta gaúcho.
Antes de
publicar poemas, Quintana trabalhou na imprensa e fez traduções. Consta que, no
começo do século XX, na cidade de Alegrete, a família do poeta se comunicava em
francês, para que os empregados não entendessem o que se falava. Quintana foi
para Porto Alegre ainda jovem. Traduziu Balzac, Proust, Voltaire e outros. O
francês utilizado pela família, em Alegrete, serviu para alguma coisa além de
disfarçar o conteúdo político das conversas familiares. Já o primeiro livro de poemas,
A rua dos cataventos, foi publicado
em 1940. São 35 sonetos identificados por algarismos romanos. A forma incomum
para a época evitou que Quintana fosse vinculado aos movimentos literários da
primeira metade do século XX, o que, para ele, não era problema: “como o soneto
era uma forma meio desvalorizada, eu fiz questão de estrear com um livro de
sonetos”. É o próprio quem registrou: “pertencer a um escola poética é o mesmo
que ser condenado à prisão perpétua.” A mesma ideia reaparece rearranjada pelo
poeta: “O preço da poesia é a eterna liberdade... E aderir a determinada escola
poética é o mesmo que internar-se, voluntariamente, num asilo de incuráveis.”
Às vezes parece
que os poetas nascem velhos. Quem pensa em Carlos Drummond de Andrade e em Mario
Quintana vê velhinhos calvos e simpáticos. Drummond gostava de desenhar e, para
se antecipar aos caricaturistas, se divertia fazendo desenhos de si mesmo, destacava
a careca vasta, o nariz afilado e os óculos espessos. Com seus desenhos,
Drummond ajudou a fixar a imagem de si próprio que conhecemos. Quintana parecia
ser um senhor simpático, com uma careca vasta e óculos espessos, às vezes
cercado por acadêmicos que lhe atravancam o caminho.Mas as aparências enganam. Drummond
foi um incendiário, disse que talvez fosse um anarquista radical, se não
tivesse casado e constituído família. Quintana foi um homem nem sempre simpático
e bem-humorado, não raro fazia uso da ironia contra chatos e impertinentes.
Causos relacionados ao poeta podem ser lidos no livro Ora Bolas, de Juarez Fonseca. Quintana se definia como “a falta de
assunto predileta das professoras de português da Grande Porto Alegre”. Certa
vez, visitado por um grupo de estudantes, foi questionado sobre o problema da
solidão, se saiu com essa: “O maior problema da solidão, minhas filhas, é
preservá-la.” Mario Quintana não casou nem teve filhos.
A obra do poeta
é grande. São dezenas de livros escritos e traduzidos. Poemas, máximas e
pequenas crônicas. Prevalecem o efêmero, o movimento, o cotidiano, a
simplicidade, o humor e o vento: “Eles passarão... Eu passarinho!”
Com o
desenvolvimento dos meios de transporte e, por tabela, do turismo, é possível
se aproximar fisicamente do universo de poetas e escritores, inclusive, não
raro, visitando locais em que viveram. A Casa Velha da Ponte e os becos de
Goiás, de onde fugiu e para onde retornou Cora Coralina. A rua Lopes Chaves e o
centro da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade. As fazendas, as boiadas e a
casa que Guimarães Rosa habitou em Cordisburgo. Em Itabira, placas de ferro com
poemas formam o Museu de Território Caminhos Drummondianos, também é possível
visitar a casa e a fazenda habitadas pelo poeta, esta última demolida e reconstruída
posteriormente pela Vale do Rio Doce, mas em um ponto distante do terreno
original. Na Fazenda do Pontal, entre mangueiras, o menino Carlos Drummond de
Andrade lia a comprida história Robinson Crusoé, sem saber aquela área seria
transformada em depósito de rejeitos da mineração. O exemplo é suficiente para alertar
sobre os riscos envolvidos na criação de casas-museu.
Em 1968, a
cidade natal de Quintana resolveu homenageá-lo. Pediram que o poeta indicasse
um dos seus poemas para ser gravado em praça pública. Sem conseguir escolher,
Quintana explicou a dificuldade ao prefeito e ao presidente da câmara: “um
engano em bronze é um engano eterno”. E foi a frase que ficou registrada na
praça de Alegrete. Tempos depois, em Porto Alegre, foi instalada a Casa de
Cultura Mario Quintana (CCMQ), que ocupa todo o antigo Hotel Majestic, local em
que o poeta morou entre 1968 e 1980. No segundo andar, atrás de uma parede de
vidro, é possível ver o quarto que foi ocupado por Quintana: cama, lixeira,
cinzeiro e outros objetos pessoais. Tudo organizado como se o hóspede tivesse
saído pela manhã para voltar à noite. Detalhe importante. Quarto fechado, ou,
como se diz por lá, chaveado.
“O mais
irritante de nos transformarem um dia em estátua é que a gente não pode
coçar-se.” – escreveu Quintana, que foi transformado em
estátua instalada na praça da Alfândega, também em Porto Alegre. Na Casa Velha
da Ponte, em Goiás, quase nada se fala da relação difícil de Cora Coralina com
sua cidade natal. O mesmo ocorre em Itabira, que não gostou de ser apenas uma
fotografia na parede do poema de Drummond. Mas a contradição é mais explosiva
na Casa de Cultura Mario Quintana, porque o poeta chegou a ser despejado do
então Hotel Majestic. Ironia do destino, Quintana emprestou o nome ao espaço de
onde foi despejado.
Composta por
salas de cinema, museu, mezanino, teatros, bibliotecas, galeria, discoteca, jardim,
passarelas, lojas, café, acervo Elis Regina, Travessa dos Cataventos e o quarto
habitado por Quintana; a CCMQ oferece mais opções e possibilidades que a
maioria aparelhos semelhantes. Vale a pena visitar o espaço e aproveitar todas
as possibilidades, incluindo os bares da rua dos Andradas. Mas com um problema:
a principal referência a Quintana contraria a obra do poeta, e não apenas
porque ele foi despejado do local. O quarto fechado parece um caixão de vidro,
aprisiona e limita um ser que transpirava ventos e estrelas. É um segundo
despejo, mas ao contrário, espécie de recondução coercitiva. Se nos escritos do
poeta prevalecem o efêmero e o movimento, por que trancá-lo num quarto fechado,
longe dos pássaros, da lua e do céu? Um cômodo trancado que se observa por uma
parede de vidro certamente não combina com nenhuma obra poética, mas, no caso
de Mario Quintana a contradição é ainda maior. É o que tentaremos mostrar. Para
isso, orbitemos, minimamente, ao redor da obra do poeta.
Em 1984, Mario
Quintana concedeu entrevista e afirmou: “Minha vida está nos meus poemas, meus
poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”. Se
é assim, busquemos o que o poeta diria sobre o quarto na casa de cultura que
leva seu nome. Comecemos por um trecho do poema que tem o sugestivo título Este quarto:
[...]
Que me importa este
quarto, em que desperto
como se despertasse em
quarto alheio?
Eu olho é o céu!
Imensamente perto,
o céu me descansa como
um seio.
[...]
Antes de prosseguir, vale registrar um
dito/chacota escrito pelo poeta: “Prefiro ser alvo de um atentado a ser alvo de
uma homenagem: um atentado é mais expedito e não tem discursos.” O que diria sobre
o discurso claustrofóbico do quarto fechado na casa de cultura? Que bloqueava a
visão do céu? Que era pior que um atentando? Que parecia uma cela? Outro poema
que dialoga com o quarto da casa de cultura é Canção da janela aberta:
Passa nuvem, passa
estrela,
Passa a lua na
janela...
Sem mais cuidados na
terra,
Preguei meus olhos no
céu.
E o meu quarto, pela
noite
Imensa e triste,
navega...
Deitou-me ao fundo do
barco,
Sob os silêncios do
Céu.
Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o teu
Poeta.
Adeus para sempre,
Amigos...
Vou sepultar-me no Céu!
Aqui o contraste é evidente. No poema: a
janela aberta e as estrelas. No quarto: a janela e a cortina fechadas. Em um passa
a lua, passa estrela e passa nuvem. No outro, através da parede de vidro, se vê
uma cortina, que bloqueia a visão de dentro para fora. A ausência de movimento
denuncia a janela fechada, ou seja, não passa nem lua, nem estrela, nem nuvem,
nem vento. Vale destacar que o poema citado contém palavras e temas que se
repetem na obra do poeta: nuvem, estrela, lua, céu, passagem. É o tal “jardim de
obsessões”.
Na Canção
do amor imprevisto, o poeta se define como um homem fechado e solitário.
Mas alguém surge com passos leves e a boca fresca de madrugada. O amor
imprevisto provoca a alegria atônita:
[...]
A súbita, a dolorosa
alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os
passarinhos!
Mas um quarto fechado dispensa os espantalhos,
inclusive os inúteis; e o passarinho pode até se confundir e bater na parede de
vidro, como acontece nos edifícios discutíveis das grandes metrópoles.
Canção
de barco e de olvido é outro poema que contém palavras e
temas freqüentes na obra do poeta: efêmero, passagem, nuvens. Os versos também contrastam
com o quarto fechado na casa de cultura. Clausura x movimento. Baú do morto x
mapa das nuvens:
Não quero a negra
desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas…
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e
passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…
No mesmo instante
olvidando
Tudo o de que te lembrares.
Tudo o de que te lembrares.
Quintana registrou que os livros de
poema precisam conter páginas em branco e margens largas, para as crianças
preencherem com desenhos. São justamente páginas em branco e margens largas que
faltam no quarto da casa de cultura, que não deixa brechas para a imaginação. Vejo
Quintana caminhando por uma rua perdida numa cidade fantasma, contemplando o
“desvario do vento”, porque “à noite as almas deste mundo vagam em alcatéias
como lobos.” Não vejo Quintana trancado num quarto fechado como um caixão de
vidro. O poeta preso no quarto é um ser triste como um passarinho empalhado, “um
espantalho inútil”, um morador de rua sem cachorro, ou o vencido que procura a
lua no poema Floresta:
[...]
E o vencido... são duas mãos e a
cabeça do
[Vencido que
se arrastam
Que se arrastam
penosamente para o poço da Lua,
Para o frescor da Lua,
para o leite da Lua para a
[lua da lua!
(Filha, onde teria ficado o resto do
corpo?)
A morte é também tema recorrente na
obra de Quintana. Como nos versos acima, o poeta às vezes registra pequenos
testamentos. Todos libertação e movimento. Sempre contrastantes com o quarto na
casa de cultura. Exemplo, poema Seiscentos
e sessenta e seis:
[...]
E se me dessem – um dia
– uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em
frente...
e iria jogando pelo
caminho a casca dourada e inútil das horas.
Temática retomada em O morituro: “Quero morrer na selva de
algum país distante... Quero morrer sozinho como um bicho!” Ideia semelhante
reaparece no último livro publicado por Quintana, Velório sem defunto: “Quando eu me for, os caminhos continuarão
andando... E os meus sapatos também!” A mesma ideia escrita com outras palavras
reaparece no mesmo livro: “Morrer, enfim, é realizar o sonho que todas as
crianças têm... O motivo? Só elas sabem muito bem: fugir... fugir de casa!”Aliás,
o título do livro de Mario Quintana (foi último publicado em vida) é a melhor definição
para o quarto do poeta na casa de cultura: velório sem defunto.
Milan Kundera registrou que, antes de
sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch, porque o kitsch é a estação
intermediária entre o ser e o esquecimento. É o risco que assumem as
casas-museu: contrariar o objetivo manifesto e a preservação da memória,
transformar os homenageados em kitsch contribuindo para o esquecimento. No caso
de Mario Quintana, o poeta acabou preso no local de onde foi despejado, teve a
intimidade revelada e a obra contrariada.
Se, como escreveu o
poeta, “amar é mudar a alma de casa”: libertem Mario Quintana. Por amor e por
coerência. Que o poeta não apreciava “dias sem pássaros e noites sem estrelas”,
nem espaços confinados. Porque poesia não tem a ver com quartos fechados,
paredes de vidro e intimidades reveladas. Porque arte não tem a ver com os
reality shows que infestam o tempo presente. Porque a morte – e também a poesia
– “é quando finalmente podemos estar deitados com sapatos.” Eles passaram. Quintana
passarinho. Eles choraram. Quintana chorinho. O poeta é chorinho tocado na
beira do Guaíba, nos bares do país, nas praças e – por que não? – no café
instalado no último andar da Casa de Cultura Mario Quintana, de onde se pode tocar
o vento e contemplar o pôr do sol porto-alegrense.
Por fim, perguntarão: o que fazer com o
quarto no hotel transformado em casa de cultura? Registrem que o poeta foi
despejado e sejam coerentes com a obra de Mario Quintana:
abram a porta e a cortina, levem livros, plantem flores, instalem comedores
para os passarinhos e não esqueçam os cata-ventos.
Quarto do poeta - 1 |
Quarto do poeta - 2 |
Quarto do poeta - 3 |
Quarto do poeta - 4
Por do sol - Porto Alegre |
Texto publicado originalmente no Passa Palavra.
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