HAIKAI: A POÉTICA DA SUGESTÃO

 

Se a beleza se oferecesse de imediato, os artistas seriam desnecessários. O haikai é um exemplo. Surgido no Japão há mais de três séculos, o haikai é um poema composto por três versos e registra instantes: rã mergulhando no tanque, caramujo escalando o monte Fuji, chuva pingando na roseira. É o instante reconquistado (Octavio Paz): expressa o real, a essência das coisas, a partir da intuição e com simplicidade (O. Svanascini) [1].

 

Mas para reconquistar o instante, para expressar a essência das coisas com intuição e simplicidade, é preciso estar integrado no tempo e no espaço. É necessária uma estesia – sensibilidade, capacidade de perceber o sentimento da beleza – cada vez mais escassa. É a sabedoria do haikai.

 

Paulo Leminski [2], que criou belos haikais, escreveu, também, um poema, limites ao léu, com um compilado de definições de poesia elaboradas por outros poetas, algumas são úteis para pensar o haikai [3]. Octavio Paz: “linguagem em estado de pureza selvagem”. Wordsworth: “emoção relembrada na tranquilidade”. Robert Frost: “aquilo que se perde na tradução”.

 

É impressionante que, no haikai, a linguagem em estado de pureza selvagem e a emoção relembrada na tranquilidade tenham sobrevivido às traduções e ao tempo. Exemplo. Bashô (1644 – 1694):

 

Um doce ruído

interrompe meu sonho:

gotas de chuva sobre a folhagem. [4]

 

O haikai fotografa a insustentável leveza do instante que não vai se repetir. Fixa, por exemplo, o estado de espírito do poeta no Japão, num dia chuvoso do século XVII, que não vivemos, mas imaginamos e sentimos.  Bashô novamente:

 

Chuva cinzenta:

hoje é um dia feliz

mesmo com o Fuji invisível.

 

No haikai, a economia de palavras desperta a imaginação do leitor. Para apreciar os pequenos poemas é preciso imaginar. É a sabedoria do haikai. Se, com Robert Frost, a poesia é “aquilo que se perde na tradução”, talvez a economia de palavras explique a força e a sobrevivência do haikai, que tem a ver com o que é sugerido, e não exatamente com o que é dito. Um exemplo. Buson (1715 – 1783):

 

 O ruído

de um rato sobre o prato

como resulta frio!

 

É impossível não imaginar o rato de Buson. É onde começa o trabalho do leitor. Seria um rato preto se movimentando sobre um prato branco? Um prato branco guardado dentro do armário ou esquecido sobre a mesa? Havia restos de comida? E o poeta, onde estava? Ao lado observando o espetáculo? Estaria lendo tranquilamente, numa noite qualquer? Estaria contemplando o monte Fuji, distraído numa tarde ensolarada? E o que é um ruído frio?

 

Apesar da economia de palavras, o haikai é, também, movimento: primavera – verão – outono – inverno; menino – homem – velho; vento – nuvens – chuva; vida – morte, morte – vida. É a beleza que nasce da leveza do movimento e da transformação, como no poema de Issa (1763-1827):

 

A neve se desfaz

e a aldeia está inundada

de crianças.

 

Há, no poema Issa, o que os entendidos chamam satori (iluminação). Uma revelação que ocorre pelo choque. O que pareceria ser uma tragédia provocada pelo desgelo vira outra coisa, se transforma numa inundação de crianças, provavelmente brincando e felizes. Se me permitem a metáfora futebolística, confesso que o que chamam de satori sempre me pareceu um passe perfeito, que desmonta a defesa adversária e encontra espaço onde não se imaginava. É a sabedoria do haikai. Outro exemplo, também de Issa:  

 

Presentes de Ano Novo:

até a menininha no leito

estende suas mãozinhas

 

Novamente a iluminação – o choque, a mudança de rota, o passe que desmonta a defesa adversária –, o leitor começa imaginando a tristeza do ano novo no leito, mas termina contagiado pela alegria da menininha adoecida: é a poética da sugestão.     

 

Notas

 

[1] O livro dos HAI-KAIS. 2. ed. Massao Ohno Editor: São Paulo, 1987.

 

Nota da nota. Para quem quiser conhecer o belo trabalho do editor Massao Ohno, além dos livros, vale a pena assistir o documentário Massao Ohno – poesia presente.

 

[2] Paulo Leminski. Toda a poesia. Companhia das letras: São Paulo, 2013

 

[3] Vale registrar que isso de pensar o haikai é um tanto quanto contraditório, porque haikai é integração, intuição e simplicidade.

 

[4] Todos os poemas citados – Bashô, Busson e Issa – estão em O livro dos HAI-KAIS, edição de Massao Ohno. As traduções são de Olga Savary.

 

 

Publicado originalmente no Passa Palavra

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