AQUELAS HORAS EM BAGÉ
De Bagé eu conhecia o analista, o
truculento e hilário personagem que cura crises existenciais com joelhaços e
pescoções [1]. Mas o próprio autor, Luis Fernando Veríssimo esclarece,
logo no início, que “certas cidades não conseguem se livrar da reputação
injusta que, por alguma razão adquiriram. Algumas das pessoas mais sensíveis e
menos grossas que eu conheço vêm de Bagé”. Certeiro. Passei alguns dias na
cidade e conheci a delicadeza das pessoas e, também, da poesia de Giana
Guterres [2].
Gosto de flertar com livros. Ir a
sebos e livrarias como quem vai a uma festa. Trocar olhares. Espiar. Me
aproximar aos poucos. Deixar acontecer (geralmente acontece). Aconteceu numa
livraria no centro de Bagé, numa prateleira com autores locais e obras sobre a
cidade. Costumo correr os olhos pelos livros. Uma boa capa, uma edição
interessante, um título chamativo atraem para a contracapa, depois para as
orelhas... O livro de Giana Guterres não tem orelhas, mas vem com um singelo
marcador de página que exibe um desenho e um poema cartão de visita:
eu, passarinho
tu, revoada
nós ninho.
O título do livro da poeta Giana
Guterres é justamente Eu, passarinho [3]. Os desenhos, como os do
marcador de página, são da ilustradora Carina Flores [4]. Trata-se de
obra viabilizada por meio de financiamento coletivo. É pura delicadeza o
conjunto formado pelos versos, pelas ilustrações e pelos espaços em branco.
Era uma segunda-feira gelada.
Sensação térmica de -2º graus pela manhã, 10º graus à tarde. Eu já estava na
cidade há uma semana. Já conhecia algumas pessoas. As conversas me deixavam com
a sensação de que o Brasil vale pelos brasileiros, apesar da extrema direita,
que ainda não conseguiu destruir totalmente a cordialidade popular. Eu já havia
provado arroz carreteiro, feijão preto e pudim de leite em mais de uma mesa. Já
havia caminhado sem destino, que é a melhor maneira de conhecer uma cidade
(Certo dia, passando por baixo de uma linha férrea desativada, parei para
observar, um senhor se aproximou, puxou conversa e contou a história da antiga
linha Bagé – Rio Grande. Conversamos sobre trens e cidades, uma prosa sem
pressa, sem medo e sem desconfiança, a tal cordialidade que a extrema direita
não conseguiu destruir totalmente, por enquanto). Eu já havia passado na livraria e adquirido Eu,
passarinho. Como estava livre naquela segunda-feira gelada, caminhei para o
centro da cidade com o livro debaixo do braço.
Iniciei a leitura na mesa de uma
lanchonete, na calçada, apesar do frio. Estava na Rua Pelotas, que é uma
travessa cheia de sombras e percorrida, sobretudo, por ventos e pombos. Um bom
lugar para ler poesia. Logo no primeiro poema, Giana delimita as coisas com
dois versos:
ligar-se à terra é
alçar voos para
dentro, enquanto se
alcança as nuvens.
O segundo poema é forte:
pai, por aqui
eu tento retomar a
rotina
sem saber como é
agora
uma rotina sem você
sem tua voz
me perguntando
se tudo está bem
se o tempo está bom
e sem eu te
perguntando
qualquer coisa
só para te ouvir
um pouco mais.
pai, por aqui
o céu está azul
tem sol
e os passarinhos
cantam.
Li. Reli. Respirei. Olhei em
volta. Percorri a rua estreita com olhos, de ponta a ponta. Espiei as sombras
estacionadas e os pombos em movimento. Escutei os sons da cidade. Toquei o
vento. Pisei firme. Pensei na vida. Percebi que não estava diante de mais um
livro de versos insossos, como tantos que há por aí. Tive certeza de que leria
os poemas sem parar, e assim foi.
Conclui a leitura do livro na
Praça Silveira Martins, onde estava estacionada uma BiblioVan. O responsável
disse que iria, posteriormente, ao Uruguai compartilhar livros e histórias.
Pensei em Eduardo Galeano. Pensei na pequeneza das cidades turísticas (havia passado
por algumas), que têm muitas lojas, mas poucas histórias e livrarias sem graça.
Pensei na grandeza de Bagé, que tem muitas histórias e livrarias simpáticas.
Falei sobre Eu, passarinho, que havia terminado de ler num banco da
praça. Elogiei bastante. Disse que tinha dúvida apenas em relação ao título,
que vinculava Giana Guterres a Mario Quintana, sendo que a poesia dela tem asas
e vida própria. Talvez se fosse Eu, passarinha ajudasse a demarcar
limites, ou não, além de ser muito modernoso, é preciso evitar vinculações?
Enfim. O interlocutor respondeu que precisaria ler o livro para opinar. Depois
contou histórias do lugar, dos livros que escreveu e das viagens na BiblioVan
(novamente pensei na cordialidade que a extrema direita não conseguiu destruir
totalmente, por enquanto). Imagino aquele homem percorrendo o Pampa, como se
fosse um passarinho compartilhando livros e histórias. Que caminhos terá
percorrido? Onde estará?
Giana Guterres inicia o penúltimo
poema alertando para que não se acredite em poetas que não falam de suas
cidades. Ela não cita nem Bagé (o poeta é um fingidor) nem outras cidades
nominalmente (e não precisa), basta dizer, como ela diz, que:
as ruas da minha
cidade têm a medida
certa para abrigar
tudo isso que trago
no peito
Mario Quintana é o autor
do famoso verso “Eles passarão... Eu passarinho!”. O poeta gaúcho registrou,
também, que os livros de poesia devem deixar espaços em branco para as crianças
preencherem com desenhos. Não sou criança há tempos e não sei desenhar,
infelizmente, mas tive vontade de preencher os espaços em branco do livro de
Giana Guterres com cenas e cores de Bagé, como “verde-pampa” e os passarinhos,
citados por ela. Como não consegui desenhar e colorir, escrevi essas linhas.
São os passarinhos e o Pampa – a
leveza, a imensidão, o vazio, a delicadeza – que encantam nos poemas de Giana
Guterres, especialmente para quem vive emparedado por edifícios. A poeta
sobrevoa a planície em zigue-zague, dançando, como uma andorinha, no ritmo do
vento:
o pampa é uma
paisagem
na janela
que me convida
a pôr os pés na
grama
na terra crua
sob meus pés
como uma parte de
mim.
Percorrendo as estradas da região,
o Pampa, pela janela, repetidas vezes me convidou a parar o carro e fotografar,
apenas para constatar, em seguida, que a imensidão e o verde não cabem nos
registros fotográficos.
Reli as histórias do analista de
Bagé antes de visitar a cidade. Mas a Bagé que conheci – pelas pessoas e pela
poesia de Giana Guterres – é leve e delicada, não tem a ver com o personagem de
Luis Fernando Veríssimo. Num dos poemas a poeta pergunta: “Você já parou para
pensar no que te faz sentir vivo?” O analista de Bagé provavelmente responderia
com uma cara feia, no mínimo. Já eu diria que me sinto vivo graças a coisas
como aquelas horas em Bagé – o arroz carreteiro, o feijão preto e o pudim de
leite; desenhar e colorir os espaços em branco de um livro de poesia (se eu
soubesse); bater-papo sem pressa , sem medo e sem desconfiança embaixo de uma
linha férrea desativada; parar o carro na estrada vazia e fotografar apenas
para perceber, repetidas vezes, que a paisagem não cabe na foto; contemplar as
cores e a imensidão do Pampa; caminhar sem rumo por ruas desconhecidas (mas com
a medida certa para abrigar o que trago no peito, como no verso); ler os poemas
de Giana Guterres numa segunda-feira gelada, no centro de Bagé.
Notas
[1] Luis Fernando
Veríssimo. O analista de Bagé. Porto Alegre: L & PM Editores, 1982.
[2] Giana Guterres publica
poesias e textos na internet, ver @floresciversos.
[3] Giana Guterres. Eu,
passarinho. Bagé: Edição da autora, 2021.
[4] Para conhecer um pouco do trabalho de Carina Flores, ver Arte com Afeto | Criativo Curioso
Publicado originalmente no Passa Palavra
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