O LEITOR CLANDESTINO

 

Sempre gostei de bibliotecas. Queria dominar todos os livros das bibliotecas. Aos poucos fui percebendo se tratar de um sonho impossível: porque há muito livros nas bibliotecas e porque há muitas bibliotecas no mundo (mesmo que dominasse uma, haveria outras tantas). Conheço apenas alguns autores, a posição de uns poucos livros nas prateleiras (porque costumo flertar com as obras antes de iniciar a leitura) e só. Nem pequenos nichos do conhecimento posso dizer que domino ou que dominarei. É que na leitura sou anarquista. Sou leitor e não pesquisador. Uma capa atrai. Um título intrigante idem. Um livro puxa o outro: sem governo, sem continuidade e quase sem método.

 

O ensaísta André Comte-Sponville [1] registrou que o estilo é tônico. Ler uma frase limpa, sólida e bem construída revigora como o ar puro. Concordo. Mas não é apenas o estilo que reconforta, às vezes é a própria leitura: forma e conteúdo, ter o livro nas mãos, folhear, grifar, anotar. O poeta Carlos Drummond de Andrade [2] contou que recebeu uma carta de um homem que tinha pensamentos suicidas, mas mudou de ideia depois de ler o poema José. Os versos expressavam exatamente o que o homem sentia, mas não conseguia pôr para fora. Quando descobriu que aqueles sentimentos estavam registrados no poema José, percebeu que não estava sozinho no mundo. Sentia o mesmo que o poeta. Abriu mão do suicídio. É nesse sentido que a leitura é tônica.  

 

Com o tempo passei a me reconhecer como um leitor: um leitor que às vezes escreve. A escrita é, para mim, uma forma de compartilhar o que li. Daí as inescapáveis citações, que devem aborrecer os leitores. Há textos tônicos sobre a leitura. Ricardo Piglia [3]. Alberto Mangel [4] [5] [6]. Um dos ensaios de Piglia discute Che Guevara como leitor, a sacada final é daquelas que só os grandes romancistas são capazes de formular. Na lousa da escolinha boliviana em que foi aprisionado antes de ser assassinado, Guevara leu uma frase e indicou uma correção para a professora local, Julia Cortés, que lhe havia entregado um prato de comida (ela foi a única que se solidarizou com o guerrilheiro). Falta o acento em “Yo se leer” – disse o Che. O revolucionário que havia sido capturado com livros, porque nunca se afastou da leitura, nem quando cercado por tropas inimigas, encerrava sua passagem pelo mundo com um digno e preciso “eu sei ler”. Naquele segundo mágico, o leitor reencontrou o guerrilheiro. Manguel registrou notas para a definição do leitor ideal, compartilho algumas: “Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que, se não tivesse lido, o mundo seria mais pobre” [...] “O leitor ideal julga o livro pela capa” [...] “Quando lê um livro de séculos atrás, o leitor ideal se sente imortal” [...] “O leitor ideal não tem uma nacionalidade precisa.” [...] “O leitor ideal não se preocupa com anacronismos, a verdade documentada, a exatidão histórica, a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.” [...] “Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.” [...] “Pinochet, que proibiu D. Quixote por pensar que incitava a desobediência civil, foi o leitor ideal desse livro.”

 

As notas para a definição do leitor ideal, de Alberto Manguel, me fizeram pensar no leitor real em um país miserável em muitos sentidos, como o Brasil. Por aqui as pessoas consideram a leitura inútil e entediante, por isso costumam puxar conversa quando encontram alguém lendo. É como se fizessem um favor e uma caridade. Por aqui – se não se vive da exploração do trabalho alheio – a leitura é um ato de resistência, que se faz na clandestinidade, contra quase tudo e quase todos. É neste sentido que, partindo de Manguel, registro algumas notas sobre o leitor clandestino, que sou um pouco eu, mas não só (os leitores do Passa Palavra certamente podem ampliar e completar essas notas):

 

- Para o leitor clandestino, um dia sem leitura é um dia irremediavelmente perdido.

 

- O leitor clandestino frequenta pontos de troca de livros, principalmente os espaços que ficam em vias públicas e são discretos.

 

- O leitor clandestino prefere livros usados e com anotações.

 

- O leitor clandestino aprende a ignorar a poluição sonora para ler no transporte público.

 

- Quando está no transporte público e consegue viajar sentado, o leitor clandestino prioriza os livros maiores.

 

- Quando está no transporte público viajando em pé (maior parte do tempo), o leitor clandestino prioriza edições de bolso.

 

- O leitor clandestino nunca é visto sem mochila, porque sempre carrega livros.

 

- O leitor clandestino se alegra quando vê pessoas lendo, mas se consegue espiar as capas, costuma se frustrar por serem livros de autoajuda ou empreendedorismo.

 

- O leitor clandestino julga as pessoas pelos livros que leem e também pela falta de leituras.

 

- O leitor clandestino acha as leitoras atraentíssimas. Ele sonha em conhecer uma leitora de romances no transporte público para trocar impressões literárias e o que mais for possível.

 

- O leitor clandestino já viajou com leitoras de romances no transporte público, mas não percebeu a presença delas porque estava com a cara enfiada em um livro.

 

- O leitor clandestino é apaixonado por Emma Bovary e Ana Kareninna: em todos os sentidos.

 

- Para ler, o leitor clandestino acorda mais cedo que familiares e amigos.

 

- O leitor clandestino aluga filmes e paga canais fechados para a família se entreter enquanto ele lê.

 

- O leitor clandestino não é absolutamente contra o casamento e a família, mas teme e evita uma coisa e outra porque precisa de tempo livre.

 

- O leitor clandestino lê livros eletrônicos no escritório como se fossem contratos e procurações, como se estivesse trabalhando.

 

- Porque é obrigado a ler clandestinamente no escritório, o leitor clandestino usa edições impressas e eletrônicas. Estas no escritório, aquelas no transporte público.

 

- O leitor clandestino lê no escritório da mesma maneira que um estudante cola na escola: com tranquilidade, sereno, como se não estivesse acontecendo nada anormal.

 

- O leitor clandestino não arrisca abrir um livro impresso no escritório, só quando cai a energia ou os sistemas operacionais.

 

- O grande pesadelo do leitor clandestino é o chefe lhe interromper a leitura clandestina no meio de um parágrafo. É quando ele tem vontade de pegar um livro de capa dura para bater no chefe.

 

- O leitor clandestino sabe que a palavra escritório tem a ver com escrita. Scriptorim era a oficina em que se produziam e reproduziam livros. Se é assim, ler no escritório é uma questão de coerência.

 

- O leitor clandestino está convencido de que Bartleby [7] era um grande leitor e não um simples escrevente.

 

- O leitor clandestino defende que o patrão de Bartleby interrompeu uma leitura clandestina do escrevente naquele escritório de Wall Street, seria essa a origem da fórmula “eu preferiria não”.

 

- O leitor clandestino sustenta que os filósofos não entenderam a fórmula de Bartleby porque nunca precisaram ler clandestinamente nem trabalhar, muito menos num escritório.

 

- O leitor clandestino suspeita que Bartleby disse “eu preferiria não” porque não podia dizer “me deixe ler em paz”.

 

- O leitor clandestino desconfia de escritores e poetas que comentam e explicam a própria obra. Apenas e tão somente os textos devem falar.

 

- Porque é obrigado a usar diversas edições e traduções, o leitor clandestino compara trechos e sabe valorizar o trabalho dos tradutores.

 

- Textos escritos de uma só vez, sem tópicos e divisões, dificultam a vida do leitor clandestino, que precisa se alternar entre edições impressas e eletrônicas.  

 

- O sonho do leitor clandestino é ter um cômodo silencioso e confortável para organizar uma biblioteca.

 

- O leitor clandestino é progressista. Às vezes até se aproxima de partidos e organizações socialistas. Mas ele aprecia mais as conversas literárias que ocorrem em bares, após as reuniões, do que as falas cronometradas sobre a conjuntura.

 

- As amizades do leitor clandestino giram em torno de livros.

 

- O leitor clandestino é discreto e pouco fala de si próprio. A única forma de conhecer minimamente um leitor clandestino é ler as anotações que ele faz a lápis nos livros que lê.

 

- Conta-se que um leitor clandestino quase apanhou no transporte público. Lia o Quixote e ria. Um passageiro se irritou e foi tomar satisfação. O leitor clandestino contou as aventuras do cavaleiro da Triste Figura. Riram e ficaram amigos.

 

- Conta-se que um leitor clandestino leu todos os volumes de ‘O Capital num escritório, numa edição eletrônica, como se o texto de Marx fosse o trabalho diário: apesar dos que dizem que O Capital não é um livro para trabalhadores.

 

Mas há quem dê marteladas nos leitores. Nietzsche [8] zomba dos “doutos” que nada mais fazem do que misturar livros, perdendo completamente a faculdade de pensar por conta própria. Se não se empanturram de livros, não pensam: “o douto emprega a sua força em dizer ‘sim’ ou ‘não’, em criticar o que já foi pensado por outros; quanto a ele, todavia, não pensa mais.” O filósofo define os doutos como decadentes. Chocava-lhe haver quem, de manhã – “quando o espírito reflui em leveza, ao despertar das energias” – se pusesse a ler: “Para mim, isto é um vício!” Nietzche encarava a leitura como uma “recreação”, um hábito que o afastava de si próprio: “Nas épocas em que eu trabalhava muito não se viam livros ao redor de mim: esquivar-me-ia bem de permitir a outrem de falar ou de pensar em minha presença. E ler, seria dizer precisamente isto...” Montaigne [9] não dá marteladas nos leitores, como Nietzsche, mas tampouco se empolga com eles, como eu. Para Montaigne a leitura é um consolo na velhice e na solidão, suaviza o peso do ócio enfadonho, livra de companhias que aborrecem, distrai de ideias inoportunas e até suaviza algumas dores. Pensando em Nietzche e Montaigne, registro mais três notas sobre o leitor clandestino:

 

- O leitor clandestino pode até ser um viciado em livros, mas não é um “douto” que lê para escrever artigos e bater metas acadêmicas. O leitor clandestino lê por paixão.

 

- O leitor clandestino lê para viver e não para matar o tempo. A grande luta do leitor clandestino é por tempo livre para a leitura.

 

- Leio, logo existo – diria o leitor clandestino, se fosse menos afeito ao silêncio; quiçá arrematasse com uma provocação –: quem lê para matar o tempo deveria considerar seriamente a possibilidade de se matar.

 

Enfim, se tive acesso às sacadas de Comte-Sponville, Drummond, Piglia e Manguel; se tive acesso às críticas de Nietzsche e Montaigne foi porque me dispus a ler na clandestinidade ou de manhã cedo, “quando o espírito reflui em leveza, ao despertar das energias”. Que outros falem em minha presença – inclusive os filósofos –, especialmente por escrito. Nietzsche provavelmente diria que meu leitor clandestino é um decadente viciado em livros, que lê muito e pensa pouco. Pode ser. Mas para pensar é preciso imaginar. Não há pensamento sem imaginação, assim como não há imaginação sem leitura. Por essas e outras que ler pode até ser um vício, mas não é apenas recreação e divertimento.    

 

Notas

[1] André Comte-Sponville. Do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

 

[2] A fala do poeta está em alguma das entrevistas disponíveis na net, mas não encontrei o link.

 

[3] Ricardo Piglia. Ernesto Guevara, rastros de leitura. In: Ricardo Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

[4] Alberto Manguel. Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

[5] Alberto Manguel. O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

 

[6] Alberto Manguel. Notas para uma definição do leitor ideal. In: Alberto Manguel. Notas para uma definição do leitor ideal. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020. p. 163 – 166.

 

[7] Herman Melville. Bartleby, o escrevente. Grua livros: São Paulo, 2014.

 

[8] Friedrich Nietzsche. Ecce homo. [S.l.] Edições de ouro. Coleção Universidade. [s.d]. p. 59 e 71.

 

[9] Michel de Montaigne. Sobre três relações. In: Michael de Montaigne. Os ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


Publicado originalmente no Passa Palavra