O
MORALISTA
Aconteceu
no começo do século XXI, depois do desenvolvimento da telefonia móvel e da
música da dupla Kleiton e Kledir.
Rodrigues
era casado. Tinha esposa, filhos e amantes. A Carol entre estas. Ele costumava
repetir para os amigos: “Minha mulher serve para esfregar minhas cuecas, minhas
amantes servem para tirar minhas cuecas”.
Rodrigues se dizia bacharel em artes amorosas. Os sujeitos que acreditam
nas bobagens que dizem costumam ser engraçados, o Rodrigues entre estes. Quando
contava suas aventuras eróticas, ele respirava fundo, batia no peito e soltava
sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”. Os amigos brincavam dizendo não saber
se o Rodrigues era melhor como amante ou como contador de histórias. Fato é
que, para ele, não havia nada mais belo do que contar vantagem. Certa vez, numa
roda de amigos, alguém perguntou se o Rodrigues frequentava bordéis, ao que ele
respondeu de pronto: “Nunca! Eu nunca pagaria pra transar com uma mulher, elas
que deveriam pagar pra transar comigo!”. Quando os amigos conseguiram parar de
rir, Rodrigues emendou sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”.
Carol
estava namorando e, por isso, havia rompido com o Rodrigues. Mas não há barreira
que não possa ser superada pela ousadia de um amante somada às possibilidades
da telefonia móvel. Ela respondeu a mensagem dele, que pensou: “Eu sô bom nisso!
Agora vai!”. Dias depois, se reencontraram.
Algumas
palavras jogadas fora e decidiram ir para um lugar mais tranquilo para
conversar melhor. Mais palavras jogadas fora e a Carol levantou e debruçou na
janela. O Rodrigues – que raciocinava por meio de metáforas futebolísticas –
pensou: “A bola do jogo. É agora!”. E abraçou a parceira por trás. Sem soltá-la
e sem saber bem o que fazer ou dizer, improvisou, cantou baixinho um trecho do
Kleiton e do Kledir: “Esse quarto é bem pequeno / pra te suportar / tanto amor
/ tanto veneno / pra pouco lugar”.
Ela
se surpreendeu com a novidade:
-
Que é isso? O que cê tá fazendo? Tá maluco?
Mas,
lá no fundo, Carol aprovou a novidade, também ela gostava do Kleiton e do
Kledir. Percebendo a conjuntura favorável, Rodrigues emendou:
-
Tô maluco por você. Malucão. Eu sei o que tô fazendo! Confia em mim! Deixa
comigo! Vai ser como nos velhos tempos. Baby, confia em mim! – Empolgado,
Rodrigues quase soltou sua frase preferida: “Eu sô bom nisso!”. O que, com
certeza, teria posto tudo a perder. Mas o pior não aconteceu.
Ele
avançava e, ao mesmo tempo, começava a comemorar a vitória sobre os amigos, que
não acreditavam na possibilidade dele reatar com a Carol. Rodrigues via a cara
de espanto dos amigos quando soubessem dos versos do Kleiton e do Kledir. Não é
difícil imaginar as frases que ele utilizaria para narrar aquela aventura: “Gol
de placa. Jogada de craque. Eu sô bom nisso!”.
Existem
as leis do amor, a gramática das coisas do coração espera por ser redigida, mas
existe. A debruçada na janela da Carol prova a existência das leis do flerte. E
prova que o Rodrigues conhecia a legalidade do amor. Claro que o emprego da
canção do Kleiton e do Kledir ajudou, mas não era só isso. Ele gostava de dizer
que “no amor, assim como no futebol, o improviso ajuda, mas não resolve sozinho,
é preciso dominar todos os fundamentos do jogo”. Se fosse um pouco mais
teórico, Rodrigues poderia escrever a gramática das coisas do coração, mas ele era
um homem de ação, preferia a prática e a narração das práticas.
Machista,
canalha, reacionário, estúpido... Digam o que quiserem do Rodrigues, mas, uma
coisa é certa, ele dominava os tempos de bola do amor. Essa metáfora é dele,
mas tem a ver, era assim que ele explicava suas conquistas para os amigos. Com
certeza, Rodrigues diria que aquele abraço aconteceu no momento exato, que um
segundo antes ou depois seria fatal.
Os
amantes se conheciam, tinham sido parceiros. Aquele debruçar na janela era a
senha, a luz verde, o siga em frente, o venha agora ou nunca mais. Como um
toque de truco, aquele gesto sinalizava e autorizava a próxima jogada do
parceiro.
Empiria
ou não, é inegável que o Rodrigues identificou corretamente a simbologia do
debruçar na janela, antes daquele gesto, qualquer passo seria um salto no
abismo. A Carol mantinha uma superioridade total até aquele debruçar, até
aquele “venha”. Na corrida do amor, queimar a largada é fatal. Depois daquele “siga
em frente” ela se integrava às batalhas do amor, se perdia a ponto de confundir
o toque do celular com as batidas do coração do Rodrigues. Os amantes vibravam
e emitiam sons na cama, o telefone da Carol também, até que... Pof!
-
Meu telefone caiu. Calma home, calma! Quem tá me ligando? Meu namorado! Caramba!
-
Desliga isso, Carol.
-
Alô. Oi coração. Como cê tá? Tudo bem? Já jantou? Tem que se alimentá bem, hein....
Hein... Beijo! Beijo! A gente se fala então! A gente se fala depois! Te ligo!
Beijo!
-
Rô, vem Rô! Vem, seu safado! Cachorro!
Rodrigues
estranhou, mas não se intimidou com a situação. Avançou. Mordeu o pé da
parceira. Essa técnica, no jargão dele, era uma jogada ensaiada, que ele
repetia porque funcionava. “Em time que tá ganhando não se mexe” – dizia.
-
Carol, você não anda, levita. Que pezinho! Posso fazer cosquinha?
Drim.
Drim. Drim.
-
Carol, que que é isso? Meu estômago tá roncando?
-
Não, não. É o meu celular tocando debaixo de você. Afasta aí pra eu ver quem é.
Outra vez. Espera. Rô, espera.
-
Oi meu amor. Jantou? O quê? Hum... Que delícia. Ops. Vou entrar no Metrô. Não
tô te ouvindo. Oi? Não tô te ouvindo. Oi? Oi? Vai cair. Beijo. Vai cair. Beijo.
Até. Também te amo.
-
Vem, Rô. Vem.
Carol
passou os dedos entre os cabelos do Rodrigues, segurou firme e puxou com força.
Ele quase gritou de dor. Esses detalhes das aventuras não costumavam ser contados
para os amigos.
Drim.
Drim. Drim.
-
Outra vez! Deixa eu tomar um ar. Rô, afasta um pouco. Espera. Espera.
Ela controlou a respiração e atendeu:
-
Oi coração! Também te amo. A ligação tá ruim. Te amo. Beijo. Até.
-
Vem Rô. Rô, cadê você?
Estava
na janela. Olhou para o horizonte, acendeu um cigarro e começou a matutar. Há
quem diga que começar a pensar é começar a broxar. Como pensar não era o forte
do Rodrigues, ele não considerou esse risco.
Drim.
Drim. Drim.
Mais
conversa dos namorados. Da janela Rodrigues ouvia e pensava. Como ela podia
fazer aquilo? Ficar jogando conversa fora sem passar a bola para ele. Que
fominha! Por que não desligou o telefone? Que canalhice. Os maus pensamentos do
Rodrigues sobrevoavam como aves de rapina. Teria ela atendido alguma ligação
dele na cama com outro homem? Pior ainda, teria alguma ligação dele tocado
debaixo de algum amante dela? Teve náusea só de pensar na pele suada
e na pulsação de outro homem. Que mania! Levar o telefone para a cama, onde já
se viu isso? E que cara chato esse namorado dela, tinha que levar chifre mesmo,
não dá um tempo, marcação sob pressão no campo adversário o jogo todo, parece
time alemão, assim não tem jogo, a bola não rola. Retranqueiro. Covarde. Nem
joga nem deixa os outros jogarem. O ciúme crescia junto com a raiva. Rodrigues
teve uma ideia terrível, seria ele reserva do namorado da Carol? Logo ele: que
sempre dizia “sô bom nisso”, que conhecia os tempos de bola do amor, que armava
jogadas tão bem quanto finalizava. Reserva de um perneta? Teve vontade de falar
essas verdades. Carol trocava frases batidas com o namorado: “também te amo”,
“tô com saudade”... No jargão do Rodrigues, aquilo era fazer cera. Carol conversava
com um e sorria para o outro. Rodrigues se irritava. No jargão dele, aquilo era
catimba. Ele tentava se controlar, sabia que o pior erro de um amante
experiente é cair na catimba do adversário. Mas não teve jeito. A raiva só
aumentava. Reserva de um perna de pau... Onde já se viu isso?
-
Então tá, amor. Minha bateria tá acabando. Desliga você primeiro. Te amo, viu.
Te amo. – Disse Carol para o namorado ao mesmo tempo em que piscava para o
Rodrigues.
O
namorado não desligou, mas ela sim. Depois encarou Rodrigues com olhar provocador
e disse:
-
Rorô, vem. Te quero! Quero você! É hoje!
Rodrigues
se animou, subiu do inferno para o céu. Olhou para a parceira e pensou: “Eu sô
bom nisso!”. Mas, no caminho da janela para a cama, ouviu o toque do celular.
Drim.
Drim. Drim.
-
De novo! – Reclamou a Carol.
O
pior tombo é o que o sujeito leva quando está se reerguendo. Rodrigues despencou
do céu para o inferno. Como ela podia fazer aquilo com ele? Que canalhice. Sem
vergonha. Logo a Carolzinha... Logo a sua pequena preferida... A que ele mais gostava.
Cada “eu te amo” dito para o outro era uma cusparada na cara do Rodrigues. A
ideia de ser o reserva imediato do namorado da Carol voltou a atormentar. Como
ele contaria aquela aventura?
Parênteses
para uma metáfora à la Rodrigues: o último chamado da Carol, aquele “Te quero!
Quero você!” foi a bola do jogo, ele empurraria a pelota para a rede se não
tivesse sido anotado impedimento, ou seja, se o telefone dela não tivesse
tocado outra vez.
Tomado
de fúria, Rodrigues contraiu os músculos do rosto e avançou com raiva nos olhos.
Tomou o telefone da mão da amante e ouviu a voz que vinha do outro lado da
linha:
-
Amor. More. Môr, cadê você? Tá tudo bem?.
Considerando-se
injustiçado, autopromovido ao topo do edifício da superioridade moral,
Rodrigues fuzilava sua parceira com o olhar. Encheu o peito para falar, queria
colocar os is nos pingos. Mas não conseguiu dizer nada. Bufou como burro
cansado e respirou fundo. Tinha que falar, precisava retomar
a rédea das coisas, mas foi novamente driblado pelas palavras, que lhe escapavam.
Os pensamentos mordiam os miolos do Rodrigues: “Como a Carolzinha faz isso
comigo? Logo a minha pequena preferida?”.
Desesperado, jogou o telefone na cama, bateu a porta e partiu: com os olhos marejados,
soluçando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário