CENTO E QUATRO ANOS DE JORGE
AMADO
Um homem pede uma dose de cachaça, pega o copo,
entorna e grita: ÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁGUA. Gargalhadas no boteco. O líquido
transparente tinha sido trocado. O poeta pernambucano Carlos Pena contou
esse causo numa mesa de pôquer, acabou sendo apelidado de Berro D’água
(mesmo não tendo sido seu o berro do causo). Jorge Amado, que estava
naquela mesa, passou a chamar Carlos Pena pelo apelido do apelido:
Berrito. Berro D’água virou título de novela de Jorge Amado: A morte e a
morte de Quincas Berro D’água. O causo do líquido trocado foi atribuído
ao personagem principal do livro, Quincas, que também era chamado de
Berrito, mas só por sua amante, Quitéria do Olho Arregalado, e apenas nos
momentos de “maior ternura”.
Quincas Berro D’água, era Joaquim Soares da Cunha,
um pacato funcionário da Mesa de Rendas Estadual, que se aposentou do
trabalho e da família. Largou mulher e filha (as “jararacas”) e se lançou
na boemia, virou “paizinho” de farrista e desgosto de família. A morte, ou
as mortes, de Quincas promoveram o encontro dos dois mundos: o fedor da
falsidade da família que se alegra com o passamento e a lágrima da trupe
dos becos e ladeiras que chora a perda. As bufas da tia Marocas, ou
“saco de peidos”, que era como Quincas dizia; frente a frente com a ligeireza
de um Pé-de-Vento e o canto de um Curió. Daí em diante a novela é um voo sobre
a Bahia escondida atrás dos pacotes turísticos: cais do porto, ladeiras,
botecos, zonas de meretrício. Enfim, o desaparecimento de Quincas continua
carregado de mistério, mas uma coisa é certa, ele desapareceu como queria,
no mar da Bahia, na rima e na solução.
Vinicius de Moraes disse que Jorge Amado escreveu a
melhor novela e o melhor romance da literatura brasileira,
respectivamente: A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água; e Gabriela, Cravo
e Canela. E isso apesar de Machado de Assis, do seu Dom Casmurro e do seu
Quincas, o Borba. Vinicius disse mais, segundo o poetinha, Jorge Amado é
um escritor que “fecunda a língua”. Esta afirmação é mais fecunda que a
primeira, porque comparações são de menos valia. E para frente com a
“bola de bexiga de boi cheia de ar”.
Jorge Amado é um escritor que vale a pena, é pena
que vale não apenas pelo cento e quatro anos. É baticum de candomblé e
macumba. Sapateado e batuque das águas. Maresia, marulho, cheiro de peixe.
Dendê com tomate e leite de coco. Moqueca de arraia. Espinha de peixe no
prato vazio. Silêncio das casas coloniais. Povo sem eira nem beira na
beira do mar. Ou no “Cu com Bunda”, que é o nome da vila operária no livro
Cacau. Melodia de ladeira e violão. O feitiço, a farofa e a foda na areia da
praia. A escravidão pós-abolição na lavoura de fumo, ou de cacau, ou no
cais do porto. Alma penada arrastando a corrente do tempo da escravidão,
corrente que prende o presente. Sopro de vida no lombo do morro e no
compasso do samba. Baralho na mesa do bar. Espreguiçadeira dolente. Golpe
de capoeira e navalha. O suor, o sonho, a greve. Tudo isso e mais um
pouco. Jorge Amado é escritor e fecundador de uma língua em que
malandragem significa liberdade. Fecundador: fecunda a dor, ou
dor fecunda, ou dor que fecunda. Uma obra que é um trago de cachaça. Uma
pena que vai pintando um povo.
Foto de Miguel Rio Branco |
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