De vira-lata a pit bull: a evolução de um complexo


“Não deixe o futebol perder a dança” (Nana Vasconcelos)

Começo com um gancho de uma postagem deste blogue (Cri-crítica da razão tupiniquim). Roberto Gomes afirma que, para produzir algo, é preciso se conceder ampla liberdade de criação. O crítico da razão tupiniquim se refere à filosofia, literatura, poesia etc. Um homem que domine estas artes, mas que não se conceda a necessária liberdade de criação, será, no máximo, um bom historiador da matéria, e não criador. Será um historiador da filosofia e não um filósofo.

Muito bem. Fiquei pensando que o mesmo raciocínio se aplica ao futebol. Um craque é alguém que conhece a matéria, domina os fundamentos da arte e se concede ampla liberdade de criação. Encerrei uma outra postagem deste blogue (Futebol e silicone) afirmando que silicone, fast food e futebol retranqueiro têm tudo a ver. Caminhemos por essa vereda.

O futebol brasileiro perdeu o viço, está murchando, tornou-se previsível, parece um poema com rimas forçadas: meio parnasiano, meio esgoto a céu aberto. Vivemos a anglo-saxonalização do futebol brasileiro. Anglo-saxonalização: uma palavra tão feia quanto o futebol tupiniquim atual.

Cândido Portinari: Futebol (1935)
O câncer maligno do futebol brasileiro é o cancelamento da liberdade de criação, tumor causado pelas escolinhas de futebol, pelos dos professores (Manos, Muricys, Parreiras, Zagalos, Dungas) e pela lógica empresarial aplicada ao esporte. O moleque começa no ataque e é castrado: vai para a zaga. Escolinhas de futebol e professores (Manos, Muricys, Parreiras, Zagalos, Dungas) precisam ser abolidos. A lógica empresarial precisa ser banida, e não apenas do futebol, o meio-ambiente que o diga. Mas voltemos para os gramados. O atual professor da seleção brasileira deve perder o emprego em breve, e isso não vai melhorar as coisas, nosso professor é somente uma uva na parreira da mediocridade.

O atual campeão da Copa do Brasil marcou 23 gols nas onze partidas que disputou. Média de 2,09 gols por jogo. Razoável. Destes 23 tentos, 10 nasceram de bolas paradas (escanteios, faltas e penalidades), ou seja, 43,48%. O atual campeão da Libertadores anotou 6 tentos nas últimas seis partidas da sua campanha vitoriosa. Média de um gol por jogo, sendo 3 nascidos de bolas paradas. É a siliconização do futebol tupiniquim, ou anglo-saxonalização, ou como queiramos chamar. Dizem que a equipe campeã da Libertadores/2012 é uma das melhores do Brasil, fico imaginando a seleção canarinho jogando como essa equipe, com onze jogadores no campo de defesa. Feio, muito feio, ridículo!

A bola parada é a negação do futebol, que é bola rolando de pé para pé. Um escanteio é mais valorizado que um drible, uma falta é mais valorizada que uma tabela. Essa é a lógica dos astutos professores, por isso eles treinam bolas paradas exaustivamente. No curto prazo ganham um ou outro caneco, no longo prazo assassinam o jogo. O futebol tupiniquim está colhendo as uvas da parreira da mediocridade. Sai a malemolência e a ginga do povo, entra a rigidez do silicone. O fast-food substitui a seiva e o viço da terra.

A especulação imobiliária e a extinção dos campos de várzea asfixiam o futebol brasileiro. Uma safra de craques não nasce no asfalto, nem em playground de prédio. Mas não creio que esse seja o câncer mais maligno, o pior é o pragmatismo que infesta o país. O professor de futebol é uma das manifestações desse tumor, incorpora a lógica comercial do resultado cancelando a liberdade de criação e a arte, no longo prazo cancela o próprio futebol.

No tempo em que o Brasil não vencia, Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-latas”. Depois o futebol tupiniquim ganhou cinco Copas. Hoje, no Brasil do crédito, do marketing e dos três volantes, passamos para complexo de pit bull.

O futebol brasileiro foi transformado em cão feroz e agoniza com hemorragia, porque mordeu o próprio rabo.

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