EMMA BOVARY: A CONDENAÇÃO PERPÉTUA
“Lembrou-se então das heroínas dos
livros que lera, e toda aquela legião lírica de mulheres adúlteras começou a
cantar-lhe na memória, com vozes de irmãs que a seduziam. Tornava-se ela mesma
agora parte autêntica dessas imaginações e realizava o longo devaneio da sua
juventude, enquadrando-se naquele tipo de mulher apaixonada que tanto invejara.
Além disso, Emma sentia uma satisfação de vingança. Já sofrera bastante! Mas
agora triunfava, e o amor, por tanto tempo reprimido, jorrava livremente em
alegre efervescência. Saboreava-o sem remorsos, sem inquietude, sem
desassossego. O dia seguinte passou-se numa nova doçura. Fizeram juramentos um
ao outro. Rodolphe interrompia-a com os seus beijos; ela pedia-lhe, fixando-lhe
as pálpebras semicerradas, que a chamasse mais uma vez pelo nome e lhe
repetisse que a amava.” (Gustave
Flaubert – Madame Bovary)
Emma Bovary provoca paixões violentas,
contra e a favor. Uma minoria a favor: como o escritor Mario Vargas Llosa. Uma
maioria contra: como o Ministério Público francês e o promotor Ernest Pinard.
Por que Emma Bovary incomoda tanto? Quando
li o romance pela primeira vez, senti uma forte identificação com a madame, não
era paixão pela mulher: pelos pés, pelo cabelo, pelo corpo... Era consentimento
(sentimento compartilhado) com um ser que se rebela e combate contra tudo e
contra todos; apesar de tudo e de todos, combate; inconscientemente ou não,
combate; com ou sem razão, combate. Luta inglória, egoísta, quixotesca,
absurda, sem futuro e sem remissão: luta insana e insustentável, luta de uma
mulher contra toda a sociedade. "Acostumada
à calma, atraía-se, inversamente, pelos aspectos acidentados. Gostava do mar
apenas pelas tempestades e da vegetação apenas quando esta se encontrava
dispersa em ruínas."
Emma é uma negação inexpugnável. Daí a minha
identificação. Emma exige posicionamentos, diz não!
“O único jeito de
suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua” – escreveu
Flaubert em carta citada por Vargas Llossa no livro A orgia perpétua, que esquadrinha Madame Bovary, poro por poro.
Além da prosa inteligente e temperada, Llosa se diz apaixonado por Emma, sua
identificação é parecida com a que sinto, é puro consentimento (sentimento
compartilhado). Exemplificando com palavras do escritor peruano: 1) “Porque sua fantasia e seu corpo,
seus sonhos e apetites, se sentem oprimidos pela sociedade é que Emma sofre, é
adúltera, mente, rouba e, finalmente, se suicida. Sua derrota não prova que ela
estava errada [...], mas simplesmente que a luta era desigual: Emma estava
sozinha”. 2) “As ambições que levam Emma a pecar e
morrer são aquelas que a religião e a moral ocidentais combateram mais
barbaramente ao longo de sua história. Emma quer gozar, não se conforma em
reprimir em si essa profunda exigência sensual que Charles não consegue
satisfazer porque nem sabe que existe”. 3) “A rebeldia de Emma nasce dessa
convicção, raiz de todos os seus atos: não me resigno a meu destino, a duvidosa
compensação do além não me importa, quero que minha vida se realize plena e
totalmente aqui e agora.”
4) “A história de Emma é uma rebelião
cega, tenaz e desesperada contra a violência social que sufoca o direito ao
prazer e à realização de seus desejos.”
A questão se esboçou, para mim, quando
manifestei meu apresso e ouvi comentários depreciativos contra Emma Bovary,
inclusive de pessoas progressistas. Exemplo: “fazer tudo que se quer é
imaturidade e não coragem” – escreveu uma amiga, e eu fiquei pensando no
inverso, abrir mão de tudo que se quer é um ato corajoso? Se Emma Bovary foi
vítima do capital e do patriarcado, por que nenhuma manifestação de apoio? Um
somos todas Emma Bovary! Ou: Emma Bovary, presente! Apoio crítico à Emma
Bovary! Respeitamos a luta, mas não concordamos com o método de luta! Por que o
silêncio rompido por comentários depreciativos quando as pessoas são forçadas a
se manifestar? Por que tanta revolta contra a mulher e nenhuma revolta contra o
comerciante que a arruinou? Por que tanta revolta contra a adúltera e nenhuma
revolta contra os amantes dela? Minha hipótese: a negação de Emma é radical
demais, não deixa brechas, é inaceitável e irreconciliável. Ela recusa a
família e a maternidade, o casamento e o patriarcado. No limite, recusa a
sociedade estabelecida. Como se fosse pouco, ama fora do casamento (se é que é
possível amar dentro do casamento), Emma é adúltera “sem
remorsos, sem inquietude, sem desassossego”.
Daí a condenação perpétua. Emma Bovary é um tapa na cara dos moralistas,
dos carolas e dos hipócritas.
A história é famosa, Madame Bovary arrastou
Flaubert para o banco dos réus por “ofensa
à moral pública é à religião”. Intimado a dizer em quem se baseou para criar
a personagem, Gustave Flaubert teria respondido “Emma Bovary sou eu”. Na acusação o Ministério Público e o promotor
Ernest Pinard. Na defesa o advogado e ex-ministro Jules Sénard. Curiosamente os
nomes de ambos terminam “ard”, e não é apenas os nomes que rimam. A batalha foi
travada para se saber se o romance de Flaubert é ou não imoral. Para a
promotoria era um romance imoral porque Emma não se arrepende, o destino atroz
não a redime: ela morre “não porque é
adúltera, mas porque o quis”. Fico pensando o que fariam com Emma Bovary se
ela fosse capturada viva... Linchamento? Pena de morte por adultério?
Esquartejamento público? Para a defesa era um romance moral porque a “assustadora expiação final” serviria
para desautorizar o adultério. É certo que, se a defesa ousasse se contrapor
frontalmente ao moralismo da acusação, Flaubert seria condenado. Tivesse o
autor registrado sua verdadeira convicção no processo, e não em carta a um
primo, o desfecho seria diferente: “Eu
te confessarei, de resto, que tudo isso me é perfeitamente indiferente. A moral
da Arte consiste em sua própria beleza, e eu estimo acima de tudo o estilo, e
em seguida o Verdadeiro”.
Questão interessante levantada por Vargas
Llosa é o promotor Pinard ser autor secreto de versos pornográficos. Velho
moralismo? Pregar uma moral conjugada apenas para os outros, na segunda pessoa
do plural, o que vale para vós não vale para nós? Ou inveja da escrita
revolucionária de Flaubert? Escrita que o próprio promotor reconhece: “uma pintura admirável sob o ponto de vista
do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista moral.”
Como notou Vargas Llosa, a escrita de
Flaubert é revolucionária porque secciona e reorganiza a realidade, reposiciona
e revaloriza objetos (leques, buques, frascos de perfume) e partes do corpo
humano (mãos, unhas, pulsos), ou seja, humaniza objetos (recriados por palavras
e frases gregárias), coisifica pessoas (retalhadas por palavras e frases
cortantes). “Enquanto
em Madame Bovary as coisas se espiritualizam e se animam, acentua-se a
materialidade dos homens.”
O resultado é um quadro complexo formado por
pessoas e coisas em igualdade de importância e valor. Um trecho destacado por
Vargas Llossa ressalta a técnica de Flaubert:
“Na fila de mulheres sentadas, os
leques pintados se agitavam, os buquês semiencobriam os sorrisos, e os frascos
de perfume com tampa de ouro volteavam nas mãos entreabertas, cujas luvas
brancas marcavam o formato das unhas e apertavam a carne nos pulsos. Os
enfeites de renda, os broches de diamante, as pulseiras de medalhão tremeluziam
nos corpetes, cintilavam nos peitos, tilintavam nos braços nus. As cabeleiras,
bem coladas na testa e torcidas na nuca, tinham, em coroas, em cachos ou em
ramos, miosótis, jasmins, flores de romã, espigas, centáureas. Pacíficas em
seus lugares, as mães carrancudas usavam turbantes vermelhos.”
Curioso notar que, a acusação contra Madame
Bovary, além da ausência total de arrependimento da adúltera, menciona a
mistura de “imagens voluptuosas a
elementos sagrados”, ou seja, é a escrita de Flaubert que incomoda o
Ministério Público. A forma determina o conteúdo e o inverso é verdadeiro,
dialeticamente. Ao pintar imagens voluptuosas e elementos sagrados com o mesmo
brilhantismo e no mesmo quadro, o romancista igualou umas e outros, daí a raiva
dos moralistas, como o promotor que vê no romance a “poesia do adultério”, mas secretamente escreve versos
pornográficos. Desconfio que, mesmo que seguisse o conselho de Drummond e
tentasse ser "docemente
pornográfico", o promotor jamais seria capaz de transformar igrejas em
gigantescas alcovas, como na escrita de Flaubert:
"León, a passos lentos,
caminhava rente à parede. Nunca a vida lhe parecera tão boa. Ela chegaria
dentro de pouco tempo, adorável, agitada, espiando atrás de si os olhares que a
seguiam – e com seu vestido de folhos, seu lornhão dourado, suas
botinas finas, com toda a elegância que ele ainda não saboreava e com a
inefável sedução da virtude que sucumbe. A igreja, como uma gigantesca alcova,
disporia-se em torno dela; as abóbodas inclinariam-se para recolher na sombra a
confissão de seu amor; os vitrais resplandeceriam para iluminar seu rosto e os
incensórios queimariam para que ela aparecesse como um anjo, no vapor dos
perfumes."
Por fim a pergunta inicial. Por que Emma
Bovary incomoda tanto? A resposta passa pela negação radical dela e pela escrita
de Flaubert, como no trecho acima. Num quadro mecânico em que os objetos são
personificados e os homens são coisificados, em igualdade de condições e de
status, Emma Bovary se destaca, ela é demasiadamente humana num mundo
absolutamente desumanizado: realiza desejos; frustra-se; tenta novamente; ama
fora do casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem
desassossego”); se rebela contra a condição de esposa e de mãe (“como essa criança é feia” – murmurou
no leito, ao lado da filha que dormia); e, sobretudo: as coisas se submetem a
ela, como a igreja, as abóbodas, os vitrais e os incensórios, no trecho citado
acima. Quem vai “dominar essa mulher”?
– pergunta o promotor Pinard em sua peça de acusação. A reposta é nada nem
ninguém: nem o tempo, nem os tribunais, nem os moralistas, nem a condenação
perpétua.
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