Passe Livre para a
Luta
Virada Cultural, maio
de 2013, uma sensação: a cidade vai explodir. Faltava uma fagulha, que veio
pouco depois, foi o aumento das tarifas. Outra sensação: grandes incêndios
podem nascer de pequenas fagulhas.
Quinta-feira, 13 de
junho (13J), sirenes e barulho de helicópteros o dia todo. Vou cruzando a
cidade a pé. Levo comigo a sensação de que eles (burguesia, grande mídia,
polícia e Estado) estavam vencendo a batalha política, fazendo passar a versão
de que os manifestantes contra o aumento das passagens são vilões e eles
mocinhos.
Chego na Praça Ramos
pela Xavier de Toledo, o aparato policial bloqueia o Viaduto do Chá para
impedir o acesso à Prefeitura: são uns vinte “homens” do choque, algumas
viaturas e motos. Manifestantes detidos são levados para o outro lado do
Viaduto, apesar da manifestação já ter avançado. Quem foi pego com vinagre foi
pro vinagre. Vinagre virou crime.
Me oriento pelo
movimento dos helicópteros midiáticos e pelas informações da população. Corto
para a Praça da República, encontro o Ato um pouco à frente: com as costas na
Ipiranga e o peito na Consolação. O aparato policial é disparatado, a
manifestação é pacífica. Chego a pensar que a violência policial não daria a
cara, porque seria um tiro no pé deles, a mídia estava presente e a
manifestação era claramente pacífica. Minha ilusão durou 100 metros e 10
minutos. Os “homens” da lei (do capital) fecham a Consolação, uma coluna de
“homens” com escudo corta a manifestação pela direita, explodem as primeiras
bombas (esse começo foi amplamente divulgado e é incontestável). A manifestação
grita “sem violência”, a polícia atira bombas. É o começo da nossa vitória
moral e política. Os mocinhos atiram bombas enquanto os violões gritam “sem violência”?
Não cola. Dezenas de vídeos mostram quem são os vândalos, os bárbaros, quem
começou, quem é violento...
“A burguesia fede” e peida gás lacrimogêneo, são peidos explosivos, com som de bomba.
O fedor é insuportável. Desespero. Não vejo nada e não sei para onde ir. Desço
para a Amaral Gurgel. Encosto na parede e tento respirar. Mais peidos. Tento
encher o peito de ar, dobro a esquina para a Cesário Mota. Um companheiro (ou
companheira) não consegue correr, é cercado (ou cercada) e apanha dos fardados.
Agonia. Que agonia. Um companheiro ou companheira apanha porque ficou para
trás. Impotência e revolta. Bombas e viaturas circulam em alta velocidade.
Muito gás. Me abrigo num bar. Um homem bebe cerveja e defende a violência
policial. Não digo nada, apenas olho nos seus olhos. Esse homem recalcou toda a
história do Brasil, toda violência e todos massacres, tem tanto medo da polícia
que passou a amá-la, tem ódio dos que o fazem lembrar daquilo que ele recalcou,
é a ética da servidão: amar o opressor sobre todas as coisas e a ordem como a si
mesmo. O aparato militar disparatado serve para isso: dissuasão, internalizar a
repressão e o medo. A ética da servidão corre nas veias daquele homem, ele vive
embriagado pela ética da servidão. Lembro-me das palavras de Euclides da Cunha: “Canudos
não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia
5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.” Porque não suporta seu
temor pelos 5 mil soldados, o homem embriagado pela ética da servidão
transforma seu medo em amor, é um amor medroso e covarde.
Viaturas e sirenes
arrancam, freiam e derrapam. Barulho insuportável. Bombas. Medo. Mas um copo
salta de algum prédio para o teto de uma das viaturas, e estilhaça, nem todos
são seguidores da ética da servidão.
Recuperado, tento avançar
para a Avenida Paulista: Frei Caneca fechada pelos “homens” de farda, Augusta,
Bela Cintra e Consolação idem. Os “homens” da lei do capital param a cidade.
Vou sendo empurrado para Higienópolis. De dois apartamentos a burguesia
higienopolista nos xinga, porque o barulho de bomba atrapalha a novela. Gás
lacrimogêneo sobe para os apartamentos higienopolistas: a burguesia experimenta
seus próprios gases.
Um garoto desce
carregado, ajudo como posso, ele se recupera uns dois quarteirões depois, fica
em pé com as próprias pernas e diz que quer voltar, que quer lutar até a morte.
Tento subir novamente
a Angélica rumo à Paulista, vou pela calçada da Praça Buenos Aires. Bombas.
Gás. “Homens” com escudos descem a Angélica. Todos correm. O inusitado
acontece: um sujeito com fones de ouvido se exercita, faz cooper, corre na
direção das bombas, alheio à situação, alerto-o, ele vira e dispara, me
ultrapassa e some.
Encontro um grupo de
manifestantes, mais ou menos quinhentos, eles dizem que os “homens” de farda estão
cercando a região. Sigo com o grupo por alguns quarteirões. São quase 21:30.
Estou exausto. Apesar do risco, me separo do grupo e me retiro sozinho.
Encontro uma viatura da tropa de elite de SP, aquela que arrota morte, pneus e
rodas brilham no escuro, impecavelmente polidos com a cera da morte. Sigo em
frente na rua escura.
Resultado final:
centenas de presos, jornalistas agredidos, não manifestantes baleados, dezenas
de feridos. Mas a verdade explode em vídeos e fotos: policiais quebrando o
vidro da própria viatura, atirando em jovens ajoelhados e em moradores que
filmavam de suas casas. Uma denúncia para cada bomba. De um lado gritos de “sem
violência”, do outro bombas. A força bruta dos cassetetes e microfones perdeu a
luta política, os microfones da grande mídia não puderam redimir os cassetetes.
Os mocinhos fardados da burguesia apareceram de cara limpa, como são:
repressores.
Nos olhos cheios de
lágrimas e orgulho de todos se lia “amanhã vai ser maior”. E vai
mesmo. Pequenas fagulhas podem causar grandes incêndios, especialmente no solo
seco de São Paulo. A impressão é que o problema não é só o aumento nem só o
transporte público precário. É tudo isso e muito mais. Os gestores da
burguesia, se tiverem siso, recuarão (e assim ganharão algum tempo), se não...
Ninguém sabe o que pode acontecer. “Amanhã será maior”. O escudo não pode
conter o oceano.
Última sensação: a
revolta e a solidariedade dos manifestantes e o tamanho da repressão me fazem
pensar que esse 13 de junho pode marcar a virada da maré, pode colocar o Brasil
no mapa dos levantes mundiais.
Allende: “não
se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é
nossa e a fazem os povos.” Novamente se abrem grandes alamedas para a
passagem do homem livre, como previu Allende há 40 anos. Parafraseando
Drummond: Uma rua sai de São Paulo e vai dar em qualquer lugar do mundo. “Ó
abre alas que eu quero passar. Eu sou da lira, não posso negar”
E por fim. Ernestito,
felicitaciones por su cumpleaños.
São Paulo, 14 de
junho de 2013
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